01/09/2023

A colheita dos direitos ancestrais

Por Hellen Loures – Assessoria de Comunicação do Cimi – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 458 DO JORNAL PORANTIM

Nos últimos anos, o Brasil tem sido assolado por uma praga jurídica conhecida como marco temporal, que tem devastado os direitos dos povos originários e dos biomas do país. Por outro lado, lançando suas sementes de justiça em solo fértil, num terreno que permeiam intensas batalhas jurídicas, ideológicas e políticas, os povos indígenas seguem na esperança de colher o reconhecimento de seus direitos constitucionais e ancestrais.

A tese do marco temporal diz que os povos indígenas teriam direito a ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição, desconsiderado todo o histórico de expulsões, remoções forçadas e violências cometidas contra essas populações. Ela surgiu em 2009 de uma vitória do povo indígena de Raposa Serra do Sol, localizada em Roraima, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os indígenas tinham direito à terra pois estavam lá na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. A partir disso, passou-se a questionar a validade de outros territórios em detrimento desta data e, desde então, a tese tem se alastrado por todos os tribunais do país, quando inúmeros juízes passaram a usar o expediente para anular demarcações de terras, trazendo danos irreversíveis aos povos originários e ao meio ambiente, ampliando o terreno de incertezas e medos.

Em 2019, o STF reconheceu a repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, caso que discutia uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina. Logo, a decisão tomada no julgamento dessa controvérsia constitucional teria consequências para todos os povos indígenas do Brasil.

No dia 21 de setembro de 2023, após séculos de violências, 14 anos de retrocessos nos processos de demarcação e quatro anos do início da semeadura dos povos indígenas contra a praga que se infiltrou em suas vidas, o STF deu um passo importante para que fosse possível realizar uma colheita histórica. Por 9 a 2, a Corte reafirmou os direitos indígenas e julgou o marco temporal inconstitucional.

Naquele dia, um misto de alegria e alívio tocou profundamente as almas daqueles que há muito tempo plantavam a semente da justiça e do reconhecimento dos direitos territoriais dos povos indígenas. A colheita, no entanto, não pôde ser completa, pois na conclusão do julgamento, na semana seguinte, foi concebida a validação dos títulos incidentes sobre as terras indígenas, além da possibilidade de indenização no valor da terra nua e o direito de retenção da posse por não indígenas até o pagamento do valor incontroverso desta indenização. Essas questões tornam o processo demarcatório mais complexo, aumentam as incertezas e atrasam, ainda mais, a colheita dos direitos ancestrais.

Vale lembrar que antes mesmo da derrubada do marco temporal, a tese já havia se alastrado em mais de 200 ações judiciais em todas as instâncias do Poder Judiciário, buscando reaver terras indígenas e interromper processos de demarcação. Por isso, o rastro deixado por esta epidemia jurídica foi alarmante, com aumento da violência sofrida pelos povos indígenas e ainda com as elevadas ameaças à biodiversidade do país.

Ou seja, a praga do marco temporal além de resistente, é alimentada por diversos setores econômicos e políticos do país, que buscam aproveitar qualquer oportunidade para avançar em suas agendas contrárias aos direitos indígenas.

A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 48/2023, por exemplo, tem se revelado o novo meio de plantio da ideia de um marco temporal, buscando alterar o artigo 231, que é cláusula pétrea e direito fundamental. Ao mesmo tempo, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei (PL) 2903/2023, recentemente aprovado, que busca retirar direitos constitucionais dos povos indígenas e aplicar a tese como critério para as demarcações de terras, além de outras medidas também contrárias aos direitos destes povos.

Neste momento de alívio e também de incertezas, é fundamental que a luta siga no sentido de buscar a proteção dos direitos territoriais dos povos indígenas, de acordo com a Constituição e as convenções internacionais. A decisão do STF é um passo positivo na colheita, mas a jornada continua em busca de justiça e respeito aos direitos dos povos originários.

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