28/07/2023

Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão realizam 14º Encontrão

O Encontrão, que reuniu cerca de 900 participantes, ocorreu entre os dias 20 e 25 de julho, no Quilombo Bica, Território Aldeia Velha, em Pirapemas-MA

14° Encontrão da Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão, Quilombo Bica, Território Aldeia Velha, Pirapemas-MA. Foto: Jesica Carvalho/Cimi-MA

Por Jesica Carvalho, da Assessoria de Comunicação do Cimi Regional Maranhão

“O espiral simbolizado pela mandala representa o tecimento de uma articulação pautado na circularidade, na horizontalidade e na complementaridade, na qual cada uma e cada um têm a mesma importância no processo de tecimento do Bem Viver”, aponta Meire Diniz, missionária do Conselho Indigenista Missionário (Cimi)  Regional Maranhão. Nesse espírito de comunhão, a Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão realizou, entre os dias 20 e 25 de julho, o 14º Encontrão, no Quilombo Bica, território Aldeia Velha, em Pirapemas-MA.

Nesses dias, a reflexão realizada foi pautada pelo tema “Com corpos e territórios livres, tecemos o Bem Viver”. A roda de discussão envolveu lideranças dos povos Akroá Gamella, Awá Guajá, Anapuru Muypurá, Tremembé de Engenho e da Raposa, Guajajara, Krenyê, Memortumré-Canela, Apanjêkrá-Canela, Kari’u Kariri, Ka’apor, Gavião, Krepym, Krikati e Tupinambá. Também participaram do evento quilombolas, pescadores e pescadoras artesanais, ribeirinhos e ribeirinhas, camponeses e camponesas, sertanejos e sertanejas e quebradeiras de coco.

“Cada uma e cada um têm a mesma importância no processo de tecimento do Bem Viver”

A roda de discussão foi integrada ainda por inúmeras organizações sociais como o Movimento Quilombola do Maranhão (Moquibom), o Movimento Interestadual das Quebradeiras de Coco (Miqcb), o Cimi Regional Maranhão, a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Conselho Pastoral de Pescadores (CPP), o Núcleo de Estudos e Pesquisa em Questões Agrárias (Nera) da Universidade Federal do Maranhão; a Justiça nos Trilhos (JnT) e os coletivos Reocupa, Rama, Emaranhadas, Crespas e Cacheadas, entre outros que, junto aos moradores do Território Aldeia Velha, somaram mais de 900 participantes.

O pedido de licença à Mãe D’água e aos encantados e às encantadas do lugar deu início às atividades do Encontrão. O ritual, com cantorias e o balanço dos maracás, realizado em frente à Bica, uma queda d’água que abastece a comunidade, mostrou a força e a beleza da cultura dos povos no processo de articulação da Teia Indígena no Maranhão, que abriu espaço para o tecimento do 14º Encontrão da Teia.

O pedido de licença à Mãe D’água e aos encantados e às encantadas do lugar deu início às atividades do Encontrão

Ritual de abertura e saudação à Mãe D’água. Foto: Jesica Carvalho Cimi-MA

Sobre a Teia Indígena, Marli Krikati, ressalta que sem a visão da articulação em Teia não se conheceria as necessidades pelas quais os demais parentes estavam passando. “Hoje, através da Teia, temos esse conhecimento e podemos ajudar os outros, dá uma força, pois somos todos irmãos”, acrescenta a liderança.

Após a acolhida, ocorreu um momento de escuta e memória dos quilombolas da comunidade Bica. Na oportunidade, as articuladoras do Encontrão no território Aldeia Velha, Rosa e Antônia, destacaram a necessidade de receber o encontro na comunidade. “A partir de quando começamos a participar dos encontros, vimos quais são os nossos direitos. Refletimos que estamos deixando os invasores tomarem de conta do nosso território. Então, decidimos nos reunir para lutar por um território livre. Vamos lutar pelo nosso território até o fim”, aponta Rosa, liderança da comunidade Pontes.

“Hoje, através da Teia, temos esse conhecimento e podemos ajudar os outros, dá uma força, pois somos todos irmãos”

O território Aldeia Velha é composto por 11 comunidades que vivem constantemente com o medo, pois são muitos os relatos de violência desencadeada pela grilagem, pelo cercamento das áreas comuns, pela destruição das palmeiras e dos pequenos plantios de roça, além do pagamento de foro que, de certa forma, inviabiliza a soberania alimentar dos povos que vivem na região. “Nós, como comunidade, temos que avançar na soberania alimentar, no pertencimento, na força da luta. Se temos comida, o governo não nos submete a nada”, afirma Raniere Roseira em relação ao tema.

Os participantes também fizeram a memória dos 13 encontrões da Teia ocorridos em outros territórios. Kaw Akroá Gamella pontuou a importância do Encontrão para o processo de retomada do território Taquaritiua. “O Encontrão em Taquaritiua foi o momento de retomar a nossa identidade, que podemos dizer que é o aspecto mais significante em uma comunidade indígena”, enfatizou.

“Nós, como comunidade, temos que avançar na soberania alimentar, no pertencimento, na força da luta”

Soberania alimentar é um dos esteios da Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão. Foto Jesica Carvalho Cimi-MA

Sobre o tecimento da teia e as conquistas nos territórios, Durval Tremembé evidenciou a importância da Semana de Lutas, realizada pela Teia no início de 2023, para o processo de demarcação do território Kaura. “Temos que agradecer essa luta que temos hoje, para caminhar, para fortalecer e valorizar o nosso modo de viver”, apontou.

Seguindo as atividades do encontro, o segundo dia foi iniciado com o ritual do fogo, em uma alvorada preparada pelos quilombolas e pelas quilombolas. Nesse dia, as atividades do encontro voltaram-se à discussão sobre as situações de conflitos nos territórios, os processos de resistência, autocuidado e proteção. Na fila do povo, as comunidades relataram as invasões de grileiros, a destruição da natureza encabeçada pelo agronegócio, denunciaram a falta de direitos básicos, entre outros processos que os distanciam do Bem Viver.

“Temos que agradecer essa luta que temos hoje, para caminhar, para fortalecer e valorizar o nosso modo de viver”

O terceiro dia foi marcado pelo ritual das mulheres quebradeiras de coco e os pescadores e pescadoras artesanais. Com cantos e danças, homens e mulheres mostraram a sua íntima relação com a Mãe Natureza, que lhes dá alimento, trabalho e força na luta. Na ocasião, Barbara Akroá Gamella, quebradeira de coco, falou sobre a importância das palmeiras para as mulheres que trabalham com o babaçu. “Quando a gente vê uma palmeira no chão, é ver a mãe da gente no chão. Quando ouvimos o barulho de um trator, ficamos magoados pela queda das palmeiras. É uma dor no coração que sentimos”, afirmou a liderança.

Esse dia foi marcado pela discussão sobre o tema do Encontrão, que envolveu todos os participantes em uma escuta atenta e no debate sobre os corpos e territórios livres. Nessa perspectiva, foram pautados episódios relacionados ao racismo, à lgbtqiapn+fobia, à violência sobre os corpos feminino, entre outros. Sobre o tema, os presentes pontuaram os processos de repressão dentro dos territórios e como essas violências perpassam as suas vidas.

“Quando a gente vê uma palmeira no chão, é ver a mãe da gente no chão”

Trocas de sementes.Foto: Jesica Carvalho Cimi-MA

No penúltimo dia de encontro, as atividades seguiram com os rituais das religiões de matrizes africanas, católica e a corrida de toras com os povos indígenas presentes no encontro. As discussões pautaram, também, alguns esteios da Teia, que são a base de sustentação dessa articulação, como a comunicação, a educação e o autogoverno.

Ao final do dia, em um momento de emoção, partilha, desprendimento e construção coletiva, a Teia dos Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão definiu a comunidade Campestre, município de Timbiras-MA, como palco do seu 15º Encontrão. As atividades do Encontrão foram finalizadas com o desmonte da estrutura que acolheu as caravanas durante os cinco dias de vivência.

Confira o documento redigido durante o 14º Encontrão:

 

CARTA DO 14º ENCONTRÃO DA TEIA DE POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS DO MARANHÃO

No Quilombo Bica, Território Quilombola Aldeia Velha, em Pirapemas (MA), onde a luz entra pelas brechas das palhas, tocando o chão, iluminando os corpos e colorindo os povos, comunidades tradicionais, povos indígenas, quebradeiras de coco, sertanejos/as, camponeses/as, ribeirinhos/as, pescadores/as artesanais, religiões de matrizes africanas, coletivos, entidades aliadas e parceiros/as se reuniram para celebrar ao toque dos tambores, cocos e maracás a caminhada, a luta e a resistência. Neste chão sagrado de Bica, a Mãe D’Água foi evocada e reverenciada, inspirando os/as presentes para discutir o tema Com corpos e territórios livres, tecemos o Bem Viver.

Percorremos o caminho de refletir sobre o colonialismo, que é histórico e antigo, origem da violência contra os corpos-territórios, percebida no machismo, no sexismo e na violação e desrespeito contra todos os gêneros. A luta contra essas violências é a luta por libertar os nossos corpos-territórios e os nossos modos de vida.

A Igreja Católica tem parte nessas violações, pois definiu o caminho do bem e do mal, do certo e do errado e o que é pecado, a qual tenta nos submeter a um modelo de negação da nossa vida e de nossos corpos. Hoje, temos como caminho a retomada da ancestralidade para a transformação do mundo.

Relatos de violações foram feitos, que enfatizaram a matança, as queimadas, os cercamentos de áreas de uso coletivo, do envenenamento das águas, da pulverização de inseticidas nos territórios e nas matas nativas. As comunidades lutam pela defesa e pela permanência no território com um forte protagonismo das mulheres.

Os esteios são nossa sustentação para o Bem Viver. A soberania alimentar é o esteio que enfrenta diretamente o pagamento do foro, que assombra muitos territórios no Maranhão. Defendemos a autonomia na produção e na ruptura de todos os modos de prisão, inclusive do nosso acesso aos alimentos.

As relações de gênero culminam em denúncias que transpassam todos os corpos, em especial femininos, lésbicas, gays, bissexuais, trans e travestis, queer, interssexuais, assexuais, pans, não-binaries, entre outros (LGBTQIAPN+). Essa violência sobre os corpos, é também a violência do agronegócio, do hidronegócio, da mineração, do racismo e do trabalho escravo, que nascem no mesmo lugar da branquitude e da discriminação.

A autoproteção é a nossa arma de defesa feita por nós, trilhando nossos territórios e garantindo os nossos modos de vida. Continuamos declarando que assim seguimos não dependendo do governo e/ou do policiamento do Estado.

E, para continuar nosso trilhar de passado e futuro, a educação é o caminho. Nesse sentido, denunciamos a negação do acesso à educação nas escolas quilombolas e indígenas, com a imposição do currículo da cidade que invisibiliza nossos princípios e da falta de assistência estudantil, como a merenda escolar industrializada. Tudo isso aliado à criminalização da transmissão dos nossos modos de vida às novas gerações.

Cresceu, em muito, o risco, já inaceitavelmente alto, de ameaças às vidas dos povos e das comunidades tradicionais que estão em luta na defesa de seus territórios impactados por projetos como o REDD+, o Maranhão Verde e o MATOPIBA chancelados pelo governo do Maranhão. Os territórios estão sendo destruídos pelo correntão e pela ação de fazendeiros que contratam milícias armadas para atear fogo em casas e destruírem as roças das comunidades.

Denunciamos que a extrema violência cometida contra os povos e as comunidades tradicionais conta com a impunidade e com a conivência do próprio Estado que vitima indígenas, quilombolas, trabalhadores rurais e demais povos do campo e das águas.

As novas gerações, juventudes e crianças, presentes no Encontrão da Teia, nos mostram a continuidade, futuro este para um caminho sem males, pois são sementes para os corpos-livre.

Seguimos no nosso caminho ancestral, o qual tem na terra nossa gênese e mãe, que nos transforma e resgata os nossos modos de vida. Declaramos, também, que nossos territórios serão livres com os corpos livres e libertos.

Com a força dos encantados e encantadas, a Teia de Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão realizará o 15º Encontrão na Comunidade Campestre, em Timbiras (MA).

Quilombo Bica, 24 de julho de 2023.

 

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