O direito de crianças e adolescentes indígenas: aspectos legais a serem observados
Situações de vulnerabilidade decorrentes da negligência histórica do Estado não devem ser utilizados para justificar a retirada das crianças/adolescentes de seu ambiente familiar
Nos últimos anos no Brasil, houve uma importante evolução da discussão pública no que importa aos direitos das comunidades indígenas, sobretudo da questão territorial, tendo como mote, principalmente, a discussão sobre o marco temporal e preservação do meio ambiente. Entretanto, apesar do direito ao território ser existencial para a reprodução física e cultural dos povos indígenas, infelizmente ele não é o único sofrer ameaças e violações. As crianças e adolescentes indígenas, por exemplo, têm demandas próprias de elevada importância, como o direito à convivência familiar e comunitária, observado o respeito às suas tradições.
Elementos culturais, ou mesmo as situações de vulnerabilidade decorrentes da negligência histórica do Estado brasileiro com os povos indígenas em nosso país, não devem jamais ser utilizados como elementos a justificar a retirada das crianças/adolescentes de seu ambiente familiar, como vem ocorrendo.
A Constituição Federal (art. 227) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 19) asseguram com prioridade absoluta o direito da criança/adolescente à convivência familiar e comunitária. Se para as crianças em geral, não-indígenas, a materialização deste direito em muitos casos desafia o Sistema de Garantia de Direitos, para as crianças indígenas e suas famílias o desafio é ainda maior.
Dispõe o art. 19 da Lei 8099/1990:
Art. 19. É direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral. (Redação dada pela Lei nº 13.257, de 2016)
No que diz às crianças indígenas soma-se ainda o art. 231 da Constituição Federal:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
A família e a comunidade são centrais para o desenvolvimento físico, mental e social da criança/adolescente. Elas privilegiam muitas vezes a humanização e a socialização deste sujeito em processo de desenvolvimento, e é justamente este o reconhecimento que a legislação brasileira faz quando lhe garante proteção especial do Estado (art. 226, CF).
Nesse sentido, independentemente da configuração familiar, o desenvolvimento de uma criança/adolescente indígena num ambiente comunitário deve ser privilegiado e assegurado pelo Estado, pois proporciona segurança, afeto, transmissão de cultura, costumes, línguas, crenças e tradições.
No entanto, embora seja de 1990, foi somente em 2009 – após 19 anos de vigência – que foi incorporada no Estatuto da Criança e do Adolescente do país a proteção especial para crianças e adolescentes indígenas sujeitas à colocação em família substituta, conforme o art. 28 do ECA[1]:
Art. 28. A colocação em família substituta far-se-á mediante guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos termos desta Lei.
(…)
§6º Em se tratando de criança ou adolescente indígena ou proveniente de comunidade remanescente de quilombo, é ainda obrigatório: (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
I – que sejam consideradas e respeitadas sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, bem como suas instituições, desde que não sejam incompatíveis com os direitos fundamentais reconhecidos por esta Lei e pela Constituição Federal; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
II – que a colocação familiar ocorra prioritariamente no seio de sua comunidade ou junto a membros da mesma etnia; (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
III – a intervenção e oitiva de representantes do órgão federal responsável pela política indigenista, no caso de crianças e adolescentes indígenas, e de antropólogos, perante a equipe interprofissional ou multidisciplinar que irá acompanhar o caso. (Incluído pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
Isso demonstra que, até 2009, a mais importante Lei de proteção de crianças e adolescentes em vigor no país sequer previa o termo “indígena”, mostrando o apagamento desses sujeitos de direitos e de suas famílias em nossa legislação ordinária.
Durante 19 anos, o Sistema de Garantia de Direitos das Crianças e dos Adolescentes não se norteou por um tratamento mais adequado a crianças/adolescentes indígenas e, ainda hoje, cremos haver instituições que não estão aptas a lidar com costumes e tradições indígenas ou a estimular o retorno dessas crianças para suas famílias, comunidades ou membros da mesma etnia.
Como exemplo do que estamos a dizer, vale a transcrição de trechos do Mapeamento Qualificado de Todos os Casos de Crianças e Jovens Indígenas em Situação de Acolhimento Institucional e Familiar da Região de Dourados/MS[2], de novembro de 2017:
Dos casos em acompanhamento, uma vez retiradas de suas famílias e comunidades, as crianças e jovens são levados para instituições, que ficam na área urbana das cidades ou em cidades vizinhas, muitas vezes quilômetros longe das terras indígenas e das famílias deixando-as assustadas, sem informações e até mesmo privadas de condições financeiras de deslocar-se, para visitar as crianças no período de acolhimento. Tais fatos são comumente encontrados, sendo que, nos relatórios da rede, estas famílias são acusadas de não terem interesse em retomar as guardas, já que nem aparecem para visitar as crianças.
É importante considerar que garantir acesso não é só ensinar o caminho ou o endereço da instituição acolhedora, mas significa considerar as facilidades e dificuldades que a família terá para se fazer presente na visita, tais como a distância, o tempo, o recurso necessário (alimentação, vestuário, condução), a comunicação com as pessoas (guarani ou português), o apoio de outros parentes ou vizinhos para olhar a casa e possíveis outras crianças que ficarão na comunidade, a recepção da família na instituição etc.
O Relatório acima citado foi um dos documentos que integrou a matéria publicada pelo Conselho Indigenista Missionário – Cimi que lançou luz sobre um outro aspecto da situação: o racismo institucional. São situações de pobreza e vulnerabilidade que têm proporcionado ao Estado a retirada de crianças de suas famílias, como ocorreu com os Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul[3], contrariando assim o que dispõe nosso ordenamento jurídico, vejamos o art. 23 do ECA:
Art. 23. A falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar. (Expressão substituída pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
Mesmo nos casos de adoção, que deve ser medida excepcional, há também denúncias de que crianças indígenas estão sendo adotadas por família não-indígenas, como noticiou a Folha de São Paulo no início de 2023 ao reportar a adoção de crianças yanomamis, em Roraima, que passa por um contexto gravíssimo de violação de direitos[4].
Até 2017, a autoridade judiciária poderia decretar a suspensão do poder familiar de pais e mães indígenas sob seus filhos sem haver o julgamento definitivo do processo e sem ouvir previamente representantes da política indigenista. A previsão que tornou essa intervenção obrigatória no Estatuto da Criança e do Adolescente foi incluída pela Lei nº 13.509, de 2017.
Art. 157. Havendo motivo grave, poderá a autoridade judiciária, ouvido o Ministério Público, decretar a suspensão do poder familiar, liminar ou incidentalmente, até o julgamento definitivo da causa, ficando a criança ou adolescente confiado a pessoa idônea, mediante termo de responsabilidade. (Expressão substituída pela Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
(…)
§2º Em sendo os pais oriundos de comunidades indígenas, é ainda obrigatória a intervenção, junto à equipe interprofissional ou multidisciplinar referida no § 1 o deste artigo, de representantes do órgão federal responsável pela política indigenista, observado o disposto no § 6 o do art. 28 desta Lei. (Incluído pela Lei nº 13.509, de 2017)
Importante lembrar que o art. 232 da Constituição Federal prevê que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.
Buscando conferir maior efetividade ao dispositivo constitucional, ainda hoje afrontado na prática do nosso Sistema de Justiça, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ fez publicar a Resolução nº 454, de 22 de abril de 2022, na qual consta um capítulo dedicado à Crianças e Adolescentes Indígenas.
Art. 20. Os órgãos do Poder Judiciário observarão o disposto no art. 231 da Constituição Federal, no art. 30 da Convenção sobre Direitos da Criança e no ECA quanto à determinação do interesse superior da criança, especialmente, o direito de toda criança indígena, em comum com membros de seu povo, de desfrutar de sua própria cultura, de professar e praticar sua própria religião ou de falar sua própria língua.
Art. 21. Em assuntos relativos ao acolhimento familiar ou institucional, à adoção, à tutela ou à guarda, devem ser considerados e respeitados os costumes, a organização social, as línguas, as crenças e as tradições, bem como as instituições dos povos indígenas.
§1º A colocação familiar deve ocorrer prioritariamente no seio de sua comunidade ou junto a membros do mesmo povo indígena, ainda que em outras comunidades.
§2º O acolhimento institucional ou em família não indígena deverá ser medida excepcional a ser adotada na impossibilidade, devidamente fundamentada, de acolhimento nos termos do parágrafo § 1º deste artigo, devendo ser observado o mesmo para adoção, tutela ou guarda em famílias não indígenas.
§3º Na instrução processual, deverão ser observadas as disposições da Resolução CNJ no 299/2019 sobre as especificidades de crianças e adolescentes pertencentes a povos e comunidades tradicionais, vítimas ou testemunhas de violência.
Já o art. 3º da citada Resolução, traz a obrigatoriedade da intimação não apenas da Fundação Nacional dos Povos Indígenas Índio (Funai) como também do Ministério Público Federal. Além disso, assegura a assistência jurídica à pessoa indígena afetada, mediante a intimação da Defensoria Pública, nos seguintes termos:
Art. 3o Para garantir o pleno exercício dos direitos dos povos indígenas, compete aos órgãos do Poder Judiciário:
(…)
VII – promover a intimação da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Ministério Público Federal nas demandas envolvendo direitos de pessoas ou comunidades indígenas, assim como intimar a União, a depender da matéria, para que manifestem eventual interesse de intervirem na causa; e
VIII – assegurar, quando necessária, a adequada assistência jurídica à pessoa ou comunidade indígena afetada, mediante a intimação da Defensoria Pública.
Nesse sentido, vê-se que o ordenamento jurídico brasileiro demorou a incorporar maior proteção para as crianças/adolescentes indígenas no que diz respeito à sua vida familiar e comunitária. Temos, com isso, não apenas o desafio em cumprir esses direitos, mas também em monitorar a sua aplicação, para não permitir que irregularidades continuem ocorrendo na destituição do poder familiar indígena e no afastamento das crianças indígenas de suas famílias, territórios, culturas, línguas, crenças e tradições.
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* Advogados e assessores jurídicos do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
[1] LEI Nº 12.010, DE 3 DE AGOSTO DE 2009.
[2] http://www.suas.sead.ms.gov.br/wp-content/uploads/2019/09/3.2-RELAT%C3%93RIO-Mapeamento-Qualitativo-dos-casos-de-acolhimento-institucional-de-crian%C3%A7as-e-jovens-ind%C3%ADgenas-CR-Dourados-1.pdf
[3] https://cimi.org.br/2018/03/racismo-institucional-justificando-pobreza-estado-retira-criancas-de-suas-familias-guarani-e-kaiowa/
[4] https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/03/doze-yanomamis-sao-adotados-por-nao-indigenas-na-contramao-do-estatuto-da-crianca.shtml#:~:text=Pelo%20menos%2012%20crian%C3%A7as%20yanomamis,entre%20ind%C3%ADgenas%20da%20mesma%20etnia