50 anos do secretariado do Cimi: “agitando todo o país em prol da causa indígena”
Nos anos 50 e 60, a situação dos povos indígenas brasileiros estava calamitosa. Isto porque a política indigenista dos governos e das igrejas ainda seguia os passos daquela instalada por Portugal e o Vaticano em 1500. Oficialmente, se objetivava a “integração nacional”, o que significava o etnocídio.
A prática da ditadura militar na construção das rodovias pela Amazônia foi a violência, os massacres e o genocídio. Uma política de desrespeito à vida e aos direitos fundamentais, levando o índio sistematicamente à extinção, como mostra Darci Ribeiro, em fins dos anos 50, em seu livro, “Os Índios e a Civilização”. Os sobreviventes já então eram menos de 100.000.
Ilustrativo da política genocida do governo à época está expresso no relatório Jader Figueiredo, resultado da CPI do Serviço de Proteção do Indio-SPI, em 1967. Não menos lúgubre era então a pastoral indigenista da igreja, como mostra relatório do Secretário Nacional da Atividade Missionária da CNBB, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, Pe. Antônio Iasi, de 1970. Mas, como saída, o Pe. Iasi acenava “caminhar para a preparação de colaboradores”, a exemplo da “OPAN que deverá receber pleno apoio do órgão nacional que responde pelas missões”.
A OPAN-Operação Anchieta, hoje, Operação Amazônia Nativa, foi criada em 1969. Era então uma entidade ecumênica que atuava com jovens das igrejas católica e evangélica de confissão luterana. Jovens preparados para atuarem junto aos remanescentes indígenas, superando limites políticos e religiosos, evitando doutrinação e encarnando-se na realidade desses povos.
O Cimi, Conselho Indigenista Missionário, foi criado em 1972, incentivado pelo Concílio Vaticano II e o exemplo do Cristo Crucificado, decidido a investir nesta causa indígena, considerada então uma ‘causa perdida’.
Mas o 1º Conselho do Cimi foi composto por missionários indigenistas, todos com experiência de base, mas pessoas muito ocupadas: escritor, professor, bispo, Presidente de Instituto… Todos com tarefas aos montes pela frente, presos ao velho ‘status’: rotina de escola, de instituições… Situação que os impedia de parar e encarar os povos indígenas caídos na beira da estrada.
Encontro no Cimi sobre índios e eleições, Brasília, 1982. Ao meio, Pe. Paulo Suess, ex-secretário Executivo do Cimi. Fotógrafo: Antônio Carlos Queiroz/Arquivo Cimi.Em algumas bases missionárias já ocorriam experiências revolucionárias, mas individuais e localizadas: a das Irmãzinhas de Jesus, junto ao povo Tapirapé, a do Frei Gil, dominicano, junto aos Suruí, no sul do Pará, a dos jesuítas P. Albano Ternus, P.Thomaz Lisboa e Ir. Vicente Cañas. Estes, acabaram com os internatos da Missão Anchieta e incentivaram os missionários e missionarias a morarem junto aos povos indígenas nas aldeias. Mas não conseguiam romper os limites que impediam uma união de forças para uma mudança ampla, nacional de questão indígena, ouvindo o clamor desses povos necessitados país afora, sem o que não se interrompia o círculo vicioso que levava o índio à extinção.
Assim, ao final de um ano e meio de existência, o Cimi pouco ou nada mudara na política indigenista da Igreja. Produzira apenas dois insignificantes boletins e um anteprojeto ao Estatuto do Indio dos militares, mas que pouco se diferenciava deste. E as reclamações das bases eram constantes e caiam sobre a CNBB, já que não havia presença do Conselho do Cimi.
Ante esta situação, o Secretário Executivo da CNBB, D.Ivo Lorscheiter, exigiu uma reunião do Conselho, sugerindo a criação de um Secretariado Executivo. A reunião foi convocada para o dia 30 de junho de 1973.
Embora eu não integrasse o Conselho, fui convidado a participar, onde foi criado o Secretariado Executivo do Cimi, do qual fui nomeado 1º Secretário Executivo.
A criação do Secretariado trouxe à tona as divergências internas radicais que dominavam então a Pastoral Indigenista da Igreja Católica, impedindo o seu avanço: bairrismo, falta de visão da questão indígena nacional, pastoral doutrinaria… O presidente do Cimi nem compareceu à reunião, por divergir dos novos rumos do órgão, se demitiu da presidência e se afastou do órgão. E as divergências iam para além da Igreja.
Em Cuiabá, antes de partir para Brasília, obtive da Firma Ramis Bucair um mapa onde se via o Parque Nacional do Xingu-PNX, invadido por campos de pouso clandestinos. Saindo da reunião do Conselho fui cercado por jornalistas. Aproveitei a oportunidade para dar início a uma visão mais ampla da questão indígena, mostrando aos jornalistas o mapa do PNX tomado por campos de aviação invasores. O Jornal do Brasil deu muito destaque à entrevista. Em consequência, fui contestado por dois lados: Orlando Villas Boas negava a existência do crime e mais dois membros do Cimi deixaram o órgão, pois queriam que o Cimi se ocupasse apenas das missões católicas.
Ante as divergências internas, visíveis, D. Ivo, sugeriu que o Cimi fosse um órgão oficioso, não oficial da CNBB. Foi uma estratégia sábia para manter a liberdade, agilidade e devida distância do poder limitador da maioria dos bispos e dos superiores das congregações religiosas.
Como Secretário, procurei logo me movimentar pelo país, visando elaborar um Programa de Ação para o Secretariado Executivo.
Em novembro de 1973, Pe. Antonio Iasi, Frei Eliseu Lopes, Pe. Thomaz Lisboa, D. Tomás Balduino, D. Pedro Casaldaliga e eu, nos reunimos no sítio do dominicano, Frei Mateus, no interior de Abadiânia/GO, onde elaboramos o Y Juca Pirama. Documento que trouxe a público uma vigorosa denúncia da situação indígena. Mas o momento não era nada fácil, diante da repressão da ditadura militar. Por isso, com receio de que o recém-criado Secretariado do Cimi fosse o primeiro alvo da repressão, D. Pedro Casaldáliga pediu que eu não assinasse o documento.
O Y Juca Pirama veio a público em dezembro/1973. No mesmo mês, aproveitando a nossa última etapa da formação jesuítica, P.Thomaz Lisboa e eu, reunidos na Gávea, no Rio de Janeiro, elaboramos o Programa do Secretariado Executivo do Cimi. Concluída a proposta, liguei para D. Tomás que se encontrava em São Paulo. D. Tomás me solicitou que viesse a São Paulo com o Programa, para que ele pudesse avalia-lo e poder argumentar a seu favor na reunião do Conselho. O programa tinha duas linhas centrais de ação:
- assembleias indígenas
- e encontros de pastoral indigenista, visando superar o isolamento das circunscrições eclesiásticas, (as “ilhas culturais”, como escrevia P. Iasi, em seu relatório de 1970), criando mais mobilidade para localizar e apoiar o engrandecimento dos povos indígenas.
Organizei uma pequena equipe do Secretariado: com jovens da OPAN, um seminarista redentorista, uma jornalista e o P. Iasi. A maioria com experiência de base. Com esta equipe nos mobilizamos pelo país. O Programa agradou de tal forma a D. Tomás que o aproveitou para dar uma dimensão nova à pastoral da Diocese de Goiás, mobilizando-a com entusiasmo, rumo à causa indígena nacional.
Concluída com a equipe do Secretariado Executivo e as bases – a articulação das assembleias indígenas e/ou dos encontros de Pastoral Indigenista – me dirigia a D. Tomás que, pilotando o seu aviãozinho, nos levava nas datas marcadas ao local dos eventos. Nos encontros de Pastoral Indigenista foram criados os regionais do Cimi e as assembleias indígenas propiciaram a força e a união dos povos indígenas. Desta forma, D. Tomás e eu percorremos, entre 1973 e 1980, o país de Norte a Sul.
Juntos atuamos no Rio, em Brasília e São Paulo; no Mato Grosso: do Vale do Araguaia, ao vale do Juruena; no Goiás e no Tocantins; no interior do Paraná e no Rio Grande do Sul; no Amazonas: em Manaus, no Alto Rio Negro e em Lábrea, no Purus; em Rondônia e em Roraima, na Raposa Serra do Sol; no Pará: Belem, Ananindeua, Marabá, Conceição do Araguaia e no Rio Cururu/Alto Tapajós; e com os Terena, no Mato Grosso do Sul.
Mas, importante destacar que, por toda a parte, nos precediam os protagonistas das bases: padres, irmãs e jovens da OPAN, rapazes e moças, executando ecumenicamente o Programa do Secretariado, o que garantia a organização dos eventos que objetivávamos.
Por isso, em verdade, foram estes os protagonistas principais das mudanças, aqueles que ali no chão atuavam em situações muito adversas: repressão, doenças, distancias e, inseridos na pobreza, sem salário, localizando e convivendo com os índios, em suas aldeias ou em seus últimos esconderijos, animando-os a retomarem a sua terra, a sua cultura e autodeterminação.
Os jovens da OPAN já marcavam presença não apenas na Amazônia, mas também em aldeias no Sul do país, facilitando assim a articulação dos regionais e também em áreas fora das missões estabelecidas. E, atrás deste primeiro embalo, foram surgindo novas entidades. Assim como a OPAN inspirou a criação do Cimi, o Cimi levou a criação da CPT-Comissão Pastoral da Terra, em 1975. E em seguida surgiu um mutirão de entidades nas universidades: ANAI/RS, CPI/SP e AC, GAI/PA, KUKURU/AM, agitando todo o país em prol da causa indígena. E os agricultores familiares criaram o MST, Movimento dos Trabalhadores sem Terra. E as ações que surgiam eram alimentadas, semanalmente, em noticiários, por jornalistas audaciosos, espalhados por todas as capitais do país. E tudo isto em plena repressão militar.
Foi assim que, nos últimos 50 anos, os povos indígenas conseguiram criar espaço e se reergueram, mudando o seu destino sombrio. A guinada na atitude da Igreja deu início a uma nova Missão que abriu caminho para os índios levantarem a sua voz, retomarem o seu chão, a sua cultura e a sua autodeterminação.
Em processo de extinção, menos de 100.000, em 1957, hoje, já beiram dois milhões, conforme o último censo do IBGE. E são eles que propõe o mais audacioso e esperançoso programa para a superação dos graves impasses que a humanidade enfrenta hoje.
E este resultado tem a ver com a criação do Secretariado Executivo do Cimi, que, no dia 30 de junho, completa 50 anos. Vivos e mortos nesta luta, festejemos a VIDA!!!
Casa da Cultura do Urubuí, dia 20 de junho de 2023.
___________
*Egydio Schwade é indigenista, pesquisador, apicultor, ativista e cidadão do Estado do Amazonas, título concedido pela Assembleia Legislativa daquele Estado pela dedicação em prol dos povos indígenas da Amazônia. Relação que se iniciou em 1963, num momento em que os povos daquela região eram dizimados, tendo seus territórios rasgados por estradas, invadidos, saqueados e sendo sistematicamente desqualificados e discriminados nas suas formas de ser e agir.