03/03/2023

No entremeio da pauta indígena e ambiental: Sineia Wapichana

Uma entrevista especial do Jornal Porantim em comemoração ao mês das mulheres

​Por Marina Oliveira e Hellen Loures, da Assessoria de Comunicação do Cimi*

Sineia Bezerra do Vale, integrante do povo WapichanaMulher, indígena, gestora ambiental do Conselho Indígena de Roraima (CIR) e liderança ativa do movimento indígena, Sineia Bezerra do Vale, integrante do povo Wapichana, fala ao Porantim sobre os esforços dos povos indígenas no enfrentamento à mudança climática, os desafios postos diante do agronegócio, a importância de demarcar o território e ainda sobre a soberania alimentar como alternativa viável para a construção do Bem Viver.

Entre os conhecimentos indígenas e o aprendizado científico, Sineia Wapichana se dedica há mais de trinta anos às questões ambientais e ao enfrentamento ao aquecimento global. Ela foi a única brasileira convidada a participar da Cúpula de Líderes sobre o Clima, em abril de 2021 – nos Estados Unidos, ocupando espaços de fala que ecoam toda a luta dos povos indígenas contra a devastação ambiental de seus territórios.

Mudanças climáticas e os povos indígenas

Sineia Wapichana: As mudanças climáticas afetam diretamente [os povos indígenas] porque eles têm uma conexão direta com a natureza, com a floresta, com a água e com o rio. E eles começam a sentir (não com esse nome “mudança climática”), mas [percebem] a transformação do tempo na sua vida cultural, social, na água. A gente tem feito um trabalho em Roraima – uns estudos de casos holísticos sobre mudanças climáticas – e, na percepção dos povos indígenas ao longo de 20 anos, eles têm percebido que a água dos igarapés aqueceu mais. Alguns peixes regionais não estão mais ali, então começa-se a ter uma percepção que algo mudou. E isso afeta diretamente a vida cultural, social, a geração de renda. As mulheres são mais sensíveis a essa questão quando estão buscando água, buscando a semente para fazer artesanato… Elas já conseguiram identificar muitas questões que estão acontecendo, na floração das árvores, na questão de água – que não enche mais a quantidade que enchia em certos rios – ou nas secas que acontecem também sem explicações. E a gente sabe que muito disso é atribuído à questão climática global e também à questão climática local, com os grandes empreendimentos e grandes monoculturas que existem nas regiões.

O impacto da mudança climática é global, mas por que as comunidades indígenas sentem mais? Porque elas estão diretamente ligadas à natureza. A gente sabe que isso é no mundo todo, mas as populações indígenas, ribeirinhas e quilombolas, que estão diretamente ligadas à floresta, diretamente ligadas aos recursos naturais, sentem mais porque é a sua vivência.

Desafios impostos pelas questões climáticas

Sineia Wapichana: Nós temos várias adversidades sobre as terras indígenas, uma delas passa por essa questão climática, que já chegou às comunidades e está afetando diretamente seus modos de vida, principalmente nas plantações. As mudanças climáticas têm mudado os modos de vida das comunidades indígenas em todo o Brasil e em todo o mundo. No tempo de plantar, não estão plantando, no tempo para ser seca, é cheia. No Rio Negro, por exemplo, na época de colheita da mandioca, as mulheres, como sempre guerreiras, estavam mergulhando para colher a batata e a mandioca e dar para os filhos, porque as enchentes afetaram muito o rio, já que não era para ter cheia.

Eu tenho um exemplo de quando começamos a fazer um estudo de mudança climática na região da Serra da Lua (RR). Foi um ano que a mandioca cozinhou toda dentro da terra. E isso foi nas comunidades que estavam na divisa da Guiana com o Brasil, e até mesmo nas comunidades que estavam mais próximas da cidade. Sabemos que a mandioca é o principal subsidio para fazer a farinha, o prato principal das comunidades indígenas. Ou seja, as mudanças climáticas já estavam impactando as plantas dessa região. Assim como nos rios, aquecendo água e fazendo sumir os peixes. E a gente comprovou, com o conhecimento tradicional, que o tempo tinha mudado, que o tempo estava fazendo algo errado com as plantações.

Aquele povo que não migrou é porque tem variedade de semente, tem banco de sementes vivas onde plantam e conseguem sementes resistentes. Recentemente, estamos implementando um plano de gestão ambiental e territorial nessas áreas, principalmente nessa questão das casas de farinha, das roças de mandioca para a produção da farinha. E eu vi que estão conseguindo manter alguns tipos de mandioca em suas produções por serem mais resistentes tanto ao inverno quanto ao verão. A região Serra da Lua foi quem fez o primeiro estudo de caso sobre mudança climática de Roraima e do Brasil, feito por povos indígenas para povos indígenas. E hoje é exemplo, por isso a gente continua fazendo os planos de enfrentamento às mudanças climáticas em Roraima.

Estudo e investimentos para os povos

Sineia Wapichana: No estudo que estamos fazendo tem uma parte dos calendários que fala sobre uma época de plantar. E, no calendário etnoecológico, eles viram que o tempo de plantar mudou, e isso mudou muito no canto dos pássaros, que guiavam as plantações. Só que no tempo de plantar, que era um tempo que chovia, já não chove mais. Em Roraima, agora, era para estarmos no verão, mas ainda está com cara de inverno, sempre chovendo. Isso afeta diretamente as questões das plantas, porque há pragas que não estavam ali, mas que, agora, estão. Há lagartas que comem até as raízes das plantas, perdendo toda a plantação.

Algumas plantas são mais resistentes ao inverno e outras ao verão. A gente está um pouco na observação das sementes: quais são mais fortes, quais são mais fracas? Como a gente faz essas sementes se multiplicarem para que possam compor um estoque de banco de sementes vivas para que sejam sementes resistentes a essas ações climáticas? Há algumas estratégias que já apontam para esses planos de enfrentamento às mudanças climáticas, uma delas é o banco de sementes vivas.

Às vezes eles [os povos indígenas] mudam de lugar para poder continuar plantando. Por exemplo, plantava antes na várzea, mas o rio já está cheio e agora está plantando na terra firme. Começam então a aparecer alguns problemas, porque aquele solo pode ser que não plante muito bem. É um problema que traz junto com ele a resistência dos povos indígenas para continuar mantendo sua vida social e cultural.

Precisamos então de estudos científicos e de políticas públicas – além das pesquisas que estamos fazendo com os próprios indígenas -, procurando soluções para que possam continuar a vida dentro das florestas e que possam superar muitas dessas ações climáticas que já chegaram em suas regiões.

E temos vistos muitos recursos sendo prometidos para a implementação de ações – principalmente para os povos indígenas -, mas que ainda geram muitas dúvidas: como isso vai chegar, principalmente no Brasil? Quais serão os mecanismos usados? Será através de qual ministério? De que organização? De que banco?

Não vimos isso acontecer ainda, então, é uma preocupação, porque precisamos de recursos para fortalecer os direitos dos povos indígenas, da demarcação de seus territórios e, até mesmo, para o próprio enfrentamento às mudanças climáticas.

Soberania alimentar e a produção

Sineia Wapichana: Soberania alimentar dos povos indígenas significa que eles são soberanos naquilo que produzem. Eles plantam aquilo que sabem que faz bem para a saúde, para o dia a dia… e ritual, é cultural. É ser soberano naquilo que eles fazem de melhor. Plantam sementes boas, sem agrotóxicos, totalmente orgânicas. Temos uma sabedoria milenar para trabalhar a questão das sementes, o que dá uma soberania alimentar para os povos indígenas.

Mas, para termos soberania alimentar, para saber que os povos indígenas vivem bem, precisam garantir seus direitos, demarcação de terra indígena! É um conjunto de coisas para manter os povos indígenas sendo resilientes, fortes e guerreiros como sempre foram.

Quando temos as terras indígenas demarcadas, somos barreiras para o desmatamento, para as mudanças climáticas e para outras questões que vêm sobre a floresta ,onde o povo indígena tem a subsistência milenar. Isso traz parte da solução relacionada ao bem viver dos povos indígenas e de sua soberania alimentar.

II Marcha Nacional das Mulheres Indígenas, realizada em 10 de setembro de 2021. Foto: Verônica Holanda/Cimi

O garimpo e o agronegócio

Sineia Wapichana: Sabemos que muitos agronegócios estão na beira da terra indígena, usando muito agrotóxico e fertilizante, enquanto que nas plantações dos povos indígenas não possuem pesticidas e herbicidas. Logo, as pragas que estavam em seu habitat natural vão para onde por causa do veneno? Vão parar onde tem o melhor alojamento para elas, que não tem nenhum tipo de veneno, na roça dos parentes, e as lagartas comem até as raízes, inviabilizando as plantações.

Sabemos que o garimpo não é bom para ninguém, tem a água poluída, tem uma questão dentro da floresta. Sabemos que o garimpo é uma pressão muito grande no contexto climático, porque há desmatamento. E isso impacta também os povos que vivem de coleta, de recente contato, que buscam nas florestas a sua alimentação. Coletam fruta, vivem da caça, da pesca…e isso impacta diretamente na sua alimentação diária.

Políticas públicas e a alimentação dos povos indígenas

Sineia Wapichana: A gente sabe que, pela falta de políticas públicas em terras indígenas, os territórios já não têm muitos recursos naturais, principalmente água e madeira. A tendência é plantar, mas sabemos que o solo já é um solo rígido que não permite qualquer cultura e que precisa de um tratamento. Além disso, a pressão também aumentou, porque as pessoas casam e aumenta a população daquelas comunidades, fazendo com que as pessoas busquem trabalhar como professor, agente de saúde, porque já não existe dentro do território uma biodiversidade que deveria ter. Logo, as pessoas começam a ter um consumo de produtos industrializados. Se não consigo produzir, consigo comprar. Essa prática vem afetando muito a saúde dos povos indígenas, com muitos problemas de diabetes, pressão alta.

Existem terras indígenas que são demarcadas em ilhas e que não têm uma nascente de igarapé dentro. E, muitas vezes, onde nasce, é contaminado e não tem nem mais peixe.

Então, a tendência é que comprem produtos industrializados, e isso gera lixo. O lixo é um problema no mundo inteiro, mas principalmente nas comunidades indígenas, porque não temos um aterro sanitário adequado. É importante quando a gente orienta as comunidades a plantar: plantem de tudo. Porque isso é uma vida que a gente traz para os indígenas na questão do Bem Viver, da saúde, do estoque de alimentos. A cultura dos indígenas depende muito da terra.

Enquanto povos indígenas, a alimentação é diferenciada. O excedente que produzimos podemos vender nas escolas indígenas e isso é muito importante, porque estamos deixando nas escolas o fortalecimento na alimentação das crianças.

Os indígenas são guerreiros e fortes perante a questão da própria produção de alimentos, mas a ação climática não é uma questão que conseguimos resolver mesmo com a nossa sabedoria. Precisamos de políticas públicas para conseguirmos manter a roça, a produção, porque a mudança climática é global.

*Entrevista publicada originalmente no jornal Porantim, edição de março de 2023

 

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