Extinto há quatro anos, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional é recriado
O anúncio foi feito nessa terça-feira (28), durante cerimônia no Palácio do Planalto; a extinção do CONSEA agravou a resposta pública à fome, principalmente diante da pandemia de Covid-19
Nessa terça-feira (28/2), em uma cerimônia no Palácio do Planalto lotada por representantes dos movimentos sociais, pastorais sociais, pesquisadores, ativistas representantes de povos e comunidades tradicionais e diversas outras organizações da sociedade civil, o governo federal anunciou a recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, o CONSEA, que foi desarticulado em ato inicial do governo anterior. O Consea foi símbolo do diálogo com a sociedade e plataforma para a construção de diversas políticas públicas de combate à fome e de fortalecimento da produção da agricultura familiar nos primeiros governos de Lula e nos governos de Dilma.
A extinção do CONSEA foi uma das etapas dos últimos seis anos que pioraram a resposta pública à fome. Em especial no período da pandemia de Covid-19, o Brasil viu o empobrecimento da população acentuar ainda mais e o número de pessoas atingidas pela fome pulou de cerca de 9% em 2019 para 15,5% em 2022, de acordo com uma recente pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (PENSSAN) – o que corresponde a aproximadamente 33,1 milhões de pessoas que não têm o que comer! Um outro dado, este de uma pesquisa da FAO, mostra mais detalhes deste cenário: o número de brasileiros e brasileiras que lidam com insegurança alimentar grave a moderada é de 61,3 milhões. Por fim, considerando qualquer grau de insegurança alimentar, a pesquisa da Rede PENSSAN indica impacto em mais da metade (58,7%) da população brasileira (…). São 125,2 milhões de brasileiros que passaram por algum grau de insegurança alimentar.
A fome é um dos maiores atrasos sociais do Brasil. Em torno dela giram diversas características, que apenas denotam o passado e o presente de desigualdades do país. Por exemplo, as famílias chefiadas por mulheres negras de baixa renda são as mais atingidas no contexto geral da insegurança alimentar. De acordo com dados da Rede PENSSAN, a fome tem cor, tem raça e tem gênero.
“Essa situação absolutamente inaceitável de ter fome no Brasil foi mais sentido pelos mais vulnerabilizados, pois somos um dos países mais desiguais do mundo”, é o que afirma Renato Maluf, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, coordenador da Rede PENSSAN e ex-presidente do CONSEA, entre 2007 e 2011. Maluf marcou presença virtual na tarde da segunda-feira, 27/02, na programação do Encontro de Formação de Agentes das Pastorais do Campo, realizado pela Articulação das Pastorais do Campo.
“Essa situação absolutamente inaceitável de ter fome no Brasil foi mais sentido pelos mais vulnerabilizados”
Segundo Maluf, houve um golpe no Brasil que enfraqueceu o CONSEA nacional, embora os conselhos municipais e estaduais continuaram a atuar. O que se vive neste momento é uma retomada do processo nacional, já que para garantir o fortalecimento dos conselhos locais, é muito importante o processo nacional. “O salto que o governo deve dar é novamente associar o enfrentamento da fome com o acesso a uma alimentação adequada e saudável. É preciso ter ações mais direcionadas para incidir em como as pessoas vão gastar com sua alimentação, fortalecendo nesse processo a agricultura familiar. Estamos num período de reconstrução do país que foi destroçado nos últimos anos. O período mais recente, inclusive, é classificado como um genocídio.”
“O salto que o governo deve dar é novamente associar o enfrentamento da fome com o acesso a uma alimentação adequada e saudável”
Maluf percorreu sua análise de conjuntura relembrando que desde a década de 1940 Josué de Castro inaugurou a interpretação que destaca a dimensão política da fome na medida que ela resulta de escolhas que os países fazem. Escolhas que denotam hegemonias, tendências, conflitos e disputas. Com o término da Ditadura Militar e o início da redemocratização do país, na década de 1980, assistiu-se à emergência de vários movimentos e mobilizações sobre o tema, num campo político da soberania e da segurança alimentar e nutricional e do direito humano à alimentação. Na década seguinte, esse fluxo culmina na criação do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, o FBSSAN.
“Nós tivemos, no Brasil, uma construção conceitual e política sobre o tema muito diferenciada, claro que alimentada pelo debate internacional. Mas se forem consultados os documentos é possível ver que a nossa conceituação de segurança alimentar e nutricional é bem diferenciada, por exemplo, analisando a maneira como incorporamos a soberania alimentar à noção da segurança alimentar. Para nós foi possível juntar as duas referências e em outros contextos elas eram antagônicas.”
Nesse mesmo contexto de debate, que o professor destaca ser “filho da democracia”, também foi incorporada a ideia de direito humano à alimentação. “Por isso esse período sombrio e autoritário recente que a gente viveu nos comprometeu – não nos matou, pois a sociedade continuou mobilizada -, mas comprometeu muito nossa capacidade de ação. E a retomada de valores democráticos que estamos assistindo agora vem como um alento para esse movimento”.
“A retomada de valores democráticos que estamos assistindo agora vem como um alento para esse movimento”
O que mais a pesquisa da Rede PENSSAN revela?
O enfrentamento à fome é urgente, principalmente no Norte e no Nordeste. A pesquisa da Rede PENSSAN revela que “o agravamento ocorreu em todas as regiões do país, sendo duas vezes maior nas regiões Norte e Nordeste em comparação com o Sul e Sudeste. (…) Da população que convive com a fome na região Norte, a maioria (2,6 milhões) está no estado do Pará, enquanto nos estados mais populosos da região Nordeste, 2,4 milhões vivem no Ceará, 2,1 milhões no Maranhão, o mesmo número em Pernambuco e 1,7 milhões na Bahia.”
Ainda segundo a pesquisa, “lares com crianças menores de 10 anos têm mais fome.” A insegurança alimentar grave “mais que dobrou entre final de 2020 e início de 2022 nos domicílios com crianças de até 10 anos (de 9,4% para 18,1%), representando impacto dramático na saúde e desenvolvimento futuro dessas crianças.”
A complexidade da insegurança alimentar
Nas interações que seguiram à apresentação de Renato Maluf, participantes do evento apontaram alguns temas e abordagens convergentes que precisam ser considerados na transversalidade e na compreensão da fome. Dentre os quais, a preocupação com os impactos das mudanças climáticas sobre a produção e a diversidade dos alimentos; a provocação de se criar respostas de controle social à indústria alimentícia; e como garantir a autonomia e o reconhecimento territorial dos povos e comunidades, para que a produção sustentável não esbarre na falta de outros direitos fundamentais.
Outra preocupação é o direito ao acesso à água. É o que revela o inquérito da Rede PENSSAN. A pesquisa buscou a relação entre insegurança alimentar e insegurança hídrica “dada a premissa de que a água, mais do que um recurso produtivo, constitui um alimento vital.”
Pelos dados, foi possível afirmar que “dos lares com insegurança hídrica, a insegurança alimentar moderada estava em 22,8% e a fome em 42,0%, portanto, quase a metade (42%) da população que tinha insegurança hídrica também passava fome, percentual que atingiu 48,3% na região Norte, 43% no Sudeste e 41,8% no Centro-Oeste.”