01/02/2023

CNDH e DPU realizam oitiva com associações Yanomami e estabelecem medidas emergenciais para salvar vidas

Diante da tragédia humanitária em território Yanomami, CNDH e DPU, junto a organizações Yanomami e entidades da sociedade civil, elaboraram mais de 46 recomendações a órgãos governamentais

Garimpos ilegais próximos à comunidade Ye’kwana, na terra indígena dos Yanomami, a mais cobiçada em número de pedidos de pesquisa mineral. Foto: Rogério Assis/ISA

Por Ligia Kloster, da Assessoria de Comunicação do Cimi Norte I

“Quando a gente fala, o vento leva nossa voz para longe”. Assim Júnior Hekurari Yanomami, presidente da Urihi Associação Yanomami, começou a contar os sofrimentos que vivem os povos da Terra Indígena (TI) Yanomami para os presentes na oitiva convocada pelo Conselho Nacional de Direito Humanos (CNDH) e pela Defensoria Pública da União (DPU), em conjunto com a Defensoria Pública do Estado de Roraima (DPE-RR), realizada no dia 25 de janeiro, na Escola de Formação da DPE-RR, em Boa Vista (RR).

A oitiva, segundo o vice-presidente do CNDH, André Carneiro Leão, fez parte da missão da DPU diante da tragédia humanitária que se instalou no território Yanomami, realizada de 25 a 27 de janeiro. A missão teve como objetivos realizar a oitiva com as associações do povo Yanomami e organizações indigenistas, conversar com instituições e órgãos do Estado de Roraima, visitar a Casa de Apoio à Saúde Indígena (Casai) e o Hospital da Criança, em Boa Vista e, a partir da escuta, diálogos e inspeção, elaborar propostas de soluções efetivas para os problemas encontrados.

“A partir dessa missão, promovemos uma grande escuta, uma escuta aberta da sociedade civil e em particular da associação do povo Yanomami e o povo Ye´kwana, elaboramos um diagnóstico do problema e também pedimos recomendações que possam ser efetivas para modificar a situação concreta da vida do povo Yanomami aqui em Roraima”, disse o vice-presidente, informando que também serão consideradas as recomendações do relatório Yanomami sob Ataque, publicado pela Hutukara Associação Yanomami e a Associação Wanassedume Ye’kwana (com assessoria do Instituto Socioambiental – ISA), em abril 2022.

“A partir dessa missão, promovemos uma grande escuta, uma escuta aberta da sociedade civil e em particular da associação do povo Yanomami e o povo Ye´kwana”

CNDH e DPU realizam oitiva com associações Yanomami e estabelecem medidas emergenciais e estruturantes para salvar vidas. Foto: Gilmara/Cimi Regional Norte I

Hekurari, que também é presidente do Conselho Distrital de Saúde Indígena (Condisi-RR), denuncia na imprensa e nas redes sociais, desde 2020, a sofrida realidade dos Yanomami e que, agora, ganhou o mundo a partir da visita do atual presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, à Boa Vista, especialmente à Casai de Roraima. Hekurari nunca desistiu de denunciar os sofrimentos dos povos que habitam a TI Yanomami. Agora, vendo que sua voz ecoa, relatou com detalhes as mazelas e sofrimentos de seu povo.

“As regiões mais afetadas se encontram na parte norte e centro oeste, bacia dos três rios da Terra Indígena Yanomami, nas regiões de Auaris, Homoxi, Xitei, Parima. Existem 120 comunidades em alto risco por causa de desnutrição e malária, com um quadro de vulnerabilidade extrema. Isso significa de 13 a 14 mil pessoas em situação de alto risco de desnutrição grave, agravado pela presença de garimpeiros. Faltam equipes de saúde. Estão em total desassistência. As famílias passam agora por problemas psicológicos, uma cicatriz do luto, rezando para seus parentes não morrerem. Desde o Polo Base do Surucucu, a forma de acesso às outras comunidades é de helicóptero. Em Kataroá, são 500 Yanomami com caso de desnutrição e malária. Toda hora ocorre remoção trazendo pacientes para Boa Vista. Uma família inteira morreu por causa de malária na comunidade de Koyopu. Toda a situação e os relatos são de conhecimento do governo federal”.

“As famílias passam agora por problemas psicológicos, uma cicatriz do luto, rezando para seus parentes não morrerem”

Edmilson Ye´kuwana, representante da Associação Wanasseduume Ye´kuwana, disse que não imaginava que o garimpo chegasse em sua comunidade e conta com preocupação que há presença violenta do crime organizado na região. “Eu nasci no Uraricoera. Minha mãe mora em Waikas. No Brasil tem 900 Ye´kwana, 400 estão em Auaris, o restante em outras comunidades, como na região de Waikas. Eu não imaginava que o garimpo ia chegar lá [na comunidade], pois lá tem quartel [Pelotão de Fronteira] e o lugar é longe. Mas, chegou! Estamos no meio dos garimpeiros, todos armados com revólveres. E lá no garimpo tem uma facção [do crime organizado] muito violenta”, relata, demostrando preocupação.

“Nossas comunidades estão sofrendo sérios riscos de vida. É cada vez mais difícil encontrar lugar para nossas casas”, completou.

“É cada vez mais difícil encontrar lugar para nossas casas”

Casa coletiva no Homoxi cercada pelo garimpo. Foto: Reprodução/Relatório Yanomami sob Ataque/Isa/Hutukara

O representante da Associação Ypasali Sanöma, Mateus Ricardo Sanöma, juntou sua voz à de Júnior e apresentou o quadro desolador nas comunidades do seu povo.

“A situação é de fome e de contaminação dos rios que levam a doenças, muitos casos de malária e de escassez de alimentos. Desde novembro morreram 19 pessoas. Na comunidade de Kotaimatiu, cinco pessoas morreram após ficarem muito doentes por malária e por fome, e os sobreviventes não conseguiram queimar seus corpos. Não tem hora-voo para pegar os pacientes ou transferir eles para Boa Vista. Houve mortes por causa desassistência e falta de medicamento para tratamento de malária. Uma mulher foi encaminhada para o posto de saúde, mas acabou morrendo no caminho. A Funai [Fundação Nacional dos Povos Indígenas] recebeu muitos alimentos, mas não tem horas-voos para levá-los. Os Agentes Indigenistas de Saúde (AIS) estão chorando por ver seus parentes morrer sem ter remédios para dar”, relata Mateus e, emocionado, diz que “precisa urgentemente fazer uma ação emergencial na região. É preciso responsabilizar os responsáveis”.

Responsabilizar os responsáveis e deter os criminosos são necessidades prementes para que a vida se renove no território Yanomami. Comunidades inteiras estão reféns dos garimpeiros que cometem crimes hediondos à luz do dia. De acordo com o relatório da reunião com os representantes do CNDH e DPU, que traz os diversos relatos da realidade dos povos da TI Yanomami, na comunidade Aracaça, onde vive o povo Sanöma, a tragédia se agiganta com os crimes cometidos pelos garimpeiros contra as mulheres Sanöma.

“A comunidade de Aracaça é uma das comunidades mais afetadas. É uma comunidade pequena, que está com muito medo. Ali, teve o caso de cinco moças que foram estupradas e as irmãs se enforcaram no mesmo dia do ocorrido”, aponta o relatório, indicando que a segurança no território depende da desintrusão dos garimpeiros. Esse é um ponto de extrema urgência.

 

O governo sabia e nada fez

Todos os depoimentos das organizações indígenas e indigenistas foram unânimes em dizer que foram feitas denúncias nos diversos órgãos nacionais e internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Supremo Tribunal Federal (STF).

A Hutukara Associação Yanomami enviou 21 ofícios para os diversos órgãos do governo federal e estadual. Dário Kopenawa, vice-presidente da Hutukara, falou pessoalmente com o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, e relatou a situação da saúde yanomami no território. Em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), a Hutukara realizou a campanha Fora Garimpo – Fora Covid, que teve incidência na mídia nacional e internacional e, também em conjunto com o ISA, lançou o Relatório Yanomami Sob Ataque, em abril de 2022, com dados, depoimentos e relatos minuciosos sobre o garimpo em terras Yanomami e as consequentes tragédias socioambientais.

O Conselho Distrital de Saúde Indígena, órgão responsável por fiscalizar, debater e apresentar políticas para o fortalecimento da saúde nas regiões, fez diversas denúncias em diversas instâncias do governo brasileiro. Ações Cíveis Públicas do Ministério Público Federal foram protocoladas. Em 2022, foram realizadas duas audiências públicas, na Câmara Federal e no Senado, além de visitas in loco de comissões parlamentares.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em seu Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil – dados 2021, trouxe destaques sobre a situação. O Cimi também fez denúncias aos órgãos internacionais, a exemplo da Medida Cautelar da CIDH, em maio de 2020, chamando a atenção do Estado brasileiro já naquela época. Providência nenhuma foi tomada e a Medida passou para a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), entrando para o campo judicial internacional, inclusive com processo por genocídio no Tribunal Penal Internacional de Haia.

Com todas essas incidências, não é aceitável qualquer argumento de que o governo brasileiro e seus órgãos, que têm a responsabilidade de cuidar da população e o poder de resolução dos problemas, não sabiam que o território Yanomami estava sendo atacado.

Diversas análises que têm estruturado o debate público nas redes sociais e na mídia, bem como nas instâncias acadêmicas, políticas e jurídicas, apontam para crime de genocídio cometido pela política anti-indígena do então presidente da República Jair Bolsonaro.

De acordo com o Tribunal Penal Internacional, o genocídio é caracterizado pela “intenção específica de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, matando seus membros por outros meios, causar lesões corporais ou mentais graves, impor deliberadamente ao grupo condições de vida calculadas para provocar a destruição física total ou parcial, impor medidas destinadas a prevenir nascimentos ou transferir forçadamente crianças de um grupo ao outro”. Nessa definição, as análises travadas a respeito da realidade Yanomami remetem ao crime de genocídio.

 

No próprio local

O CNDH e o DPU realizaram inspeções na Casai de Roraima e em estabelecimentos de saúde de Boa Vista para averiguar e comprovar in loco as informações de violações de direitos humanos que têm chegado até esses órgãos.

O vice-presidente do CNDH, André Carneiro Leão, disse estar estarrecido com o que a comitiva constatou no Hospital da Criança e na Casai.Constatamos uma verdadeira tragédia humanitária, uma tragédia, aliás, anunciada há bastante tempo. O Conselho Nacional de Direitos Humanos, juntamente com a Hutukara Associação Yanomami, já em 2020, havia denunciado a situação à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que concedeu medidas cautelares contra o Brasil, justamente em razão dessa situação, que já se agravava em razão da pandemia lá em 2020”, afirmou informando que em 2021 as denúncias continuaram e a Corte IDH impôs medidas provisórias, que são aquelas emitidas em casos de extrema gravidade e urgência e quando é necessário evitar danos irreparáveis às pessoas.

“Nós continuamos informando a situação calamitosa que vivenciava os Yanomami também em 2021 e a Corte Interamericana de Direitos Humanos converteu as medidas cautelares em medidas provisórias e, ainda assim, o governo brasileiro não fez nada. Nós constatamos e foi possível perceber, a partir do processo de escuta e também das inspeções que fizemos na Casai e no Hospital das Crianças, que o resultado da omissão criminosa do poder público podia ser visto na pele das crianças desnutridas”, relatou perplexo.

“A situação é de uma desumanidade e de uma crueldade que é simplesmente impensável. Depois, mesmo após mais de uma década trabalhando na Defensoria Pública da União, particularmente eu nunca tinha visto nada parecido”, completou.

“A situação é de uma desumanidade e de uma crueldade que é simplesmente impensável”

Genocídio Yanomami. Foto: Sesai/Divulgação

Saúde de crianças Yanomami é gravemente afetada devido ao crescimento do garimpo na TI Yanomami nos últimos quatro anos, sob a gestão de Bolsonaro. Foto: Sesai/Divulgação

Contudo, as medidas a serem tomadas de acordo com a missão realizada pelo CNDH, DPU e demais órgãos e instituições em Boa Vista, na semana passada, são extremamente emergenciais e devem ser efetivas, salientou André Leão.

“Diante desses fatos, tanto o Conselho Nacional dos Direitos Humanos como a Defensoria Pública da União, nós vamos trabalhar em duas frentes. Primeiro, na frente das medidas emergenciais. É preciso, de forma muito urgente, salvar vidas. Existem crianças, pessoas morrendo neste instante e, portanto, é necessária uma ação emergencial para o fornecimento e distribuição de alimentos e medicamentos nas diversas comunidades, nas diversas aldeias do território Yanomami, que é imenso”, informou.

Leão disse ainda que pela precariedade do serviço aéreo para atendimento, pois existem poucas aeronaves para atender os nove milhões de hectares do território, a comitiva se reuniu com a Força Aérea Brasileira para, “justamente, apresentar a necessidade de ampliação das aeronaves para atendimento às comunidades colocadas em locais de difícil acesso e, muitas vezes, tem dificuldade de receber suplementos alimentares”.

Outras recomendações para medidas de caráter estrutural, também, foram elaboradas em conjunto com associações Yanomami e entidades da sociedade civil, como o Cimi e ISA, que trabalham na região. “Além dessa atuação emergencial, nós elaboramos mais de 46 medidas de recomendação que vamos trabalhar juntamente com o Ministério Público Federal [MPF] e com o governo federal, para que essas medidas se tornem efetivas medidas de caráter estrutural”, informou.

De caráter estrutural, Leão destaca a desintrusão dos garimpeiros que invadiram a TI Yanomami. “Após passarmos esse período de emergência, de salvarmos as vidas que estão em risco neste momento, será necessário todo um processo para atingir as questões mais estruturais que estão por trás de todo o sofrimento do povo Yanomami. E essas medidas estruturais passam, sem dúvida nenhuma, pelo processo complexo, sim, mas necessário de desintrusão dos garimpeiros que estão na região”, ressaltou, dizendo que a demanda exigirá união das forças de segurança, do poder público e de proteção de direitos humanos.

“Essas medidas estruturais passam, sem dúvida nenhuma, pelo processo complexo, sim, mas necessário de desintrusão dos garimpeiros que estão na região”

“Esse é um processo que vai demandar um trabalho interseccional das forças de segurança, do poder público e também das instituições de proteção de direitos humanos, como a Defensoria Pública da União, o Conselho Nacional de Direitos Humanos e o Ministério Público Federal. Nós vamos trabalhar juntos, especialmente a partir da sala de situação que foi criada para acompanhar tanto as medidas emergenciais através do COI, Comitê de Operações Emergenciais, como também a partir da situação da discussão interministerial e interinstitucional das medidas mais estruturais”, concluiu.

Além das organizações indígenas Hutukara, Yapsali Sanöma, Urihi e Wanasseduume Ye´kwana, participaram da oitiva com CNDH e DPU, a Funai em Roraima, a Frente de Proteção Etnoambiental da Funai, o Cimi, o ISA, a Organização Mundial da Migração (OIM) e Unicef, o Ministério Público Federal (4º Ofício MPF-RR) e a Defensoria Pública do Estado (DPE-RR).

Share this:
Tags: