Atentado contra jovens Mura causa revolta e motiva retomada de área invadida
O processo de retomada se inicia após a tentativa de homicídio a dois adolescentes que coletavam castanha em área de uso tradicional
Após atentado contra dois adolescentes Mura, o povo da Terra Indígena (TI) Taquara, localizada no município de Autazes, no estado do Amazonas, deu início, no dia 10 de janeiro, à retomada de uma área invadida por fazendeiros. O território de uso tradicional dos Mura vem sendo ocupado de forma ilegal e violenta por fazendeiros, que vem pressionando a terra indígena com a criação de gado e búfalos, atividades de pesca e turismo ilegal e ameaças à integridade física e cultural dos Mura. Há relatos de canoas destruídas a mando de fazendeiros e cruzes fixadas na área a fim de simbolizar indígenas mortos.
O estopim para a retomada do território foi um ataque a tiros sofrido por dois adolescentes Mura no início da tarde do dia 9 de janeiro. Os jovens estavam coletando castanha quando foram abordados por homens a mando de um fazendeiro que se diz proprietário da área invadida. Não houve conversa, “já foram atirando” conta um indígena Mura que não será identificado nesta reportagem, por razões de segurança, dadas as circunstâncias de ameaças na qual se encontra. “O patrão tinha passado ordem que, se passasse alguém lá, se qualquer Mura que passasse por aquela região, que eles [pessoas a mando do fazendeiro] atirassem”, conta.
“O patrão tinha passado ordem que se qualquer Mura passasse por aquela região, que eles atirassem”
Segundo o indígena, “esse histórico [de abordar a tiros] vem de longos anos. Muitos que passaram por lá falam a mesma coisa”. A ordem não só foi acatada pelo caseiro e primo do fazendeiro, suspeitos de atentar contra os garotos, como decorreu no ferimento de um dos adolescentes, atingido na panturrilha esquerda por disparos de uma cartucheira de calibre 16. A propriedade da arma, segundo relato dos indígenas, é do fazendeiro.
O jovem Mura deu entrada no hospital Dr. Deodato de Miranda Leão, no município de Autazes, no início daquela noite, mas, por falta de estrutura hospitalar, segue com estilhaços de chumbo na região onde levou o tiro. “O município não tinha raio X e por não ter raio X eles [do hospital] não fizeram questão de tirar a bala de cartucho. Por isso [a bala] continua dentro da perna do rapaz”, relata o Mura que está sobre custódia do programa de proteção da Comissão de Direitos Humanos do estado do Amazonas.
O outro adolescente não foi atingido e encontra-se fisicamente bem. Já os autores dos disparos fugiram pela mata e, apesar da agressão ter sido registrada em boletim de ocorrência na Polícia Civil de Autazes, pouco foi feito para investigar o caso. “Ainda não há nada de concreto, mas a gente quer que eles sejam presos, porque ele [autor do tiro] está na cidade [Autazes] e está ameaçando fazer um ataque”, relata o indígena Mura.
“Ainda não há nada de concreto, mas a gente quer que eles sejam presos”
Posse ilegal
O local onde ocorreu o crime é uma área de uso tradicional indígena, frequentemente utilizada para coleta de castanha, açaí, pesca e caça. Contudo, os Mura vem sendo impedidos de usufruir do local. “Lá tem um lago. Ele [ o fazendeiro] não nos deixa pescar e aí, o que ele faz: traz pessoas de Manaus, pega pessoas do município de Autazes e leva eles para pescar no lago. Não podemos comer um peixe bom, um tambaqui, não podemos comer um pirarucu, enquanto eles pegam o peixe, abatem e levam pra Manaus ilegalmente”, explica o morador da aldeia Taquara.
Os indígenas relatam ainda que o fazendeiro responsável pelo recente atentado cria gado, ilegalmente, na região. Os animais pastam sem vacinas e registro sanitário em áreas indígenas, contaminando as águas dos rios com dejetos e deixando, por sua vez, a água imprópria para consumo. A criação ilegal de animais já foi objeto de investigações por parte do Ministério Público Federal (MPF) do estado do Amazonas, tanto pela contaminação da água com excremento de búfalo, como pelas ameaças que continuamente sofrem por pessoas contratadas por fazendeiros da região.
“Não podemos comer um peixe bom, enquanto eles pegam o peixe, abatem e levam pra Manaus ilegalmente”
A área é palco de inúmeros outros conflitos envolvendo fazendeiros e indígenas, em sua maioria, com registros de agressões físicas e verbais, o que obrigou o MPF a atuar por meio de uma recomendação que buscava restringir as ações de uma associação de fazendeiros criada para deslegitimar a organização social dos Mura. Na recomendação, emitida em abril de 2019, o MPF determina que os fazendeiros se abstenham de “constranger, ameaçar ou impedir” os indígenas da aldeia Taquara de exercerem seus direitos de associação e manifestação social, “sob pena de responsabilização no âmbito criminal, cível e administrativo”. E estabelece um prazo de 15 dias para “apresentarem uma cópia de seus registros de propriedade e/ou títulos de posse, com a respectiva cópia do Cadastro Ambiental Rural”.
Segundo os indígenas, os fazendeiros não têm título das terras, cuja propriedade vem sendo atestada por meio do registro autodeclaratório do Cadastro Ambiental Rural (CAR). O CAR, instrumento de regularização e monitoramento ambiental obrigatório para todos os imóveis rurais, vem sendo usado, em inúmeros casos, de forma ilegal e criminosa para justificar a posse de grileiros de áreas sobrepostas a terras indígenas.
O CAR vem sendo usado de forma ilegal e criminosa
Em uma pesquisa feita em 2020 pela Secretaria de Perícia, Pesquisa e Análise da Procuradoria-Geral da República, a pedido da Câmara de Populações Indígenas e Comunidade Tradicionais do Ministério Público Federal (6 CCR/MPF), quase dez mil propriedades inscritas no CAR estavam sobrepostas a terras indígenas em diferentes fases de regularização ou a áreas com restrição de uso. O estudo foi produzido para apoiar a atuação de procuradores da República de todo os país no combate à grilagem e em crimes ambientais em terras indígenas, bem como às violações dos direitos humanos desses povos.
Para Luiza Machado, missionária do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Norte 1, o CAR apresentado pelos fazendeiros possui o mesmo status de outros registros cujos limites coincidem com territórios indígenas. “Esse CAR também é ilegal. Os fazendeiros sabem que se trata de uma terra indígena já reivindicada e pelo artigo 231 da Constituição, os indígenas têm direito ao território que eles ocupam lá. Ainda assim os fazendeiros fizeram o CAR daquela área”, o que constitui, para a missionária, uma ação de má fé sobre aquele território.
“Os fazendeiros sabem que se trata de uma terra indígena já reivindicada,ainda assim os fazendeiros fizeram o CAR daquela área”
Revolta, retomada e denúncia
O atentado contra os adolescentes Mura gerou grande consternação entre a comunidade da aldeia Taquara, não só pela recente agressão sofrida pelos jovens, mas também pelo largo histórico de violências empreendido por esse fazendeiro. “Esse criador [ de gado] vem trazendo problema há muitos anos. Essas ameaças dele não são de hoje, já é de muitos anos”, explica o indígena Mura. O acúmulo de agressões e a inação das autoridades levou a comunidade a retomar a área invadida pelos fazendeiros, chegando à situação limite de queimar uma das casas construídas de forma ilegal no território. A conduta, tomada de indignação, apesar de drástica se apazigua em um processo de retomada no qual os indígenas se dispõem a seguir de forma pacífica, mas sem abrir mão do território. “Nós não vamos desistir, nós ocupamos a área e estamos com nossos parentes”, diz um membro da comunidade.
Em um documento elaborado pelo Cimi Regional Norte 1 junto ao povo Mura, a instituição alerta para a possibilidade de represálias por parte dos fazendeiros e a emergência de novos conflitos, “se não houver apoio das forças públicas de segurança”. O documento, que denuncia a situação de violência e ataques vivida por este povo, foi encaminhado no dia 12 de janeiro à coordenação local e regional da Fundação Nacional dos Povos indígenas (Funai) e ao MPF do Amazonas e reivindica intervenção e medidas desses órgãos para que findem os conflitos nos locais.
“Nós não vamos desistir, nós ocupamos a área e estamos com nossos parentes”
A Comissão de Direitos Humanos do estado do Amazonas acompanha o caso e o MPF tem estado em contato com os indígenas, contudo ainda não houve retorno da Funai quanto a situação dos Mura. Segundo Luiza Machado, essa não é a primeira vez que a Funai e outros órgãos públicos se ausentam em situações de conflitos que envolvem fazendeiros e indígenas, o que causa preocupação à instituição.
“A gente sabe que essa questão pode resultar num conflito iminente e nos traz grande preocupação essa omissão dos órgãos públicos em relação a um caso tão grave, onde um adolescente foi ferido e outro quase foi morto”, explica a missionária.
“Nos traz grande preocupação essa omissão dos órgãos públicos “
O documento, produzido pelo Cimi a partir de relatos dos Mura, observa seis ações fundamentais para resolução dos conflitos:
- A demarcação da Terra Indígena Taquara, para que findem os conflitos territoriais no local e para que os indígenas tenham pleno direito ao seu território.
- Responsabilização legal dos mandantes e dos autores dos disparos pela tentativa de homicídio dos dois jovens.
- Responsabilização legal pela invasão das terras indígenas e pelos ilícitos ambientais cometidos pelos fazendeiros.
- Retirada dos pertences e das criações dos fazendeiros da Terra Indígena Taquara.
- Proteção policial mediada pelo Ministério Público Federal para que a comunidade Taquara possa realizar com segurança o seu processo de retomada.
- Visita/audiência de mediação ou conciliação junto ao Ministério Público Federal para resolver a situação de conflito gerada pelas constantes violações aos direitos humanos dos Mura da aldeia Taquara.
Apesar do encaminhamento da denúncia aos órgãos competentes, nenhuma ação concreta ainda se efetivou. O Cimi aguarda a investigação e responsabilização dos autores pelo último atentado contra os Mura e espera que as instituições deem a devida atenção ao grave cenário de violência por eles vivido.