Formação continuada é principal demanda de professores Guarani
Documento produzido durante encontro de professores Avá-Guarani, do Oeste do Paraná, fornece diagnóstico sobre a educação indígena na região
Nos dias 17 e 18 de dezembro, os professores Avá-Guarani, do Oeste do Paraná, estiveram reunidos no Tekoha Ocoy, município de São Miguel do Iguaçu (PR), para discutir a situação da Educação Escolar Indígena. O encontro teve como objetivo debater questões comuns que envolvem a educação dos povos Guarani da região, identificando problemas e desafios por eles enfrentados e levantando propostas e medidas para superação dos mesmos.
O encontro surgiu a partir da formação de um grupo de trabalho (GT) organizado no final de 2020 para tratar de questões relacionadas à saúde mental dos povos Guarani. O GT, apesar de ter sido uma requisição formal do Ministério Público Federal do estado do Paraná (MPF-PR), só foi viabilizado após a mobilização da comunidade, apoiada pela Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), pela Fundação Nacional do Índio (Funai) e pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
O encontro surgiu a partir da formação de um GT para tratar de questões relacionadas à saúde mental
Na ocasião do GT, os professores Guarani levantaram questões relacionadas à educação, principalmente no que diz respeito à falta de espaços para discussão e formação dos educadores indígenas. O encontro de professores Guarani emerge nesse contexto e tem como principal demanda a formação continuada de educadores indígenas e não indígenas. Para Clóvis Brighenti, integrante do Cimi e professor de História da Unila, “isso tem implicações muito severas na questão do ensino, em especial dos professores não indígenas que, sem a formação, vão trabalhar nas escolas sem saber quem são os Guarani, o que pensam ou até que falam uma língua diferente. Ou seja, um desconhecimento total”, explica o professor.
Para além disso, a maioria dos professores das escolas indígenas não é concursada, e sim vinculada por meio de contratos temporários. Esse tipo de vinculação faz com que “a secretaria [de educação] não queira investir”, esclarece Brighenti. “Porque ela sabe que o contrato é temporário e aí fica uma educação aquém daquilo que desejam os Guarani, e muito aquém daquilo que determina a legislação”.
“A educação fica aquém daquilo que desejam os Guarani, e muito aquém daquilo que determina a legislação”
Outro aspecto importante debatido no encontro e destacado pelo professor universitário tem a ver com a falta de escolas. Nem todos os tekoha kuêra dispõem de uma. “Algumas terras que não estão demarcadas não têm escolas, fazem só um reforço para as crianças”, que para serem alfabetizadas precisam sair da terra indígena para estudar nas escolas municipais.
“Já houve casos, inclusive, denunciados pelo MPF de que as crianças eram proibidas de falar a língua Guarani na escola. A diretora intimidava as crianças, porque elas falavam Guarani, sendo que a maioria, para não dizer todas, fala só em Guarani” explica Brighenti.
Essa e outras violências foram discutidas no encontro, o que resultou na produção de um documento o qual apresenta um diagnóstico da Educação Indígena dos povos Guarani que vivem nos municípios de São Miguel do Iguaçu, Itaipulândia, Santa Helena, Diamante D`Oeste, Guaíra e Terra Roxa, no estado do Paraná. O documento aborda as dificuldades enfrentadas, cotidianamente, pela comunidade escolar.
“As crianças eram proibidas de falar a língua Guarani na escola”
Além das dificuldades relatadas por Clóvis Brighenti, é destacado no documento a ausência de material didático, de internet e o tamanho limitado das terras Guarani que os impossibilitam, cada vez mais, de produzir seus alimentos. Em relação às propostas apresentadas para superação dos problemas educacionais vividos pelos indígenas, os Guarani demandam, principalmente, a substituição dos professores não-indígenas por professores indígenas, a construção de novas escolas, a criação de mais cursos de licenciatura e pedagogia em universidades públicas da região e a manutenção de toda a educação básica nas escolas dos Tekoha.
Leia, abaixo, o documento na íntegra:
I Encontro de professores Guarani na região Oeste do Paraná
Preocupados e compromissados com a educação escolar específica e diferenciada para nossas crianças, jovens e adultos, nós professores e lideranças Guarani que vivemos no tekoha kuêra na região Oeste do Paraná, nos municípios de São Miguel do Iguaçu, Itaipulândia, Santa Helena, Diamante D`Oeste, Guaíra e Terra Roxa, nos reunimos entre os dias 17 e 18 de dezembro de 2022, para tratar de temas educacionais de interesses de nosso povo, identificar problemas e desafios e apresentar propostas de superação.
Realizamos um breve diagnóstico da Educação Indígena e identificamos um conjunto de dificuldades que impedem o bom funcionamento de nossas escolas e que não contribuem para a efetivação da Escola Indígena, em sua especificidade e particularidades prevista na legislação nacional. Também identificamos desafios relacionados a ausência de escolas em nossas comunidades.
Do diagnóstico destacamos os seguintes desafios:
1 – Ausência de formação continuada para nossos docentes Guarani;
2 – Ausência de formação continuada para docentes Juruá kuêra (não indígena);
3 – Falta de escola para a alfabetização e letramento de nossas crianças em algumas comunidades levando os nossos filhos a estudar fora da terra indígena sofrendo discriminação;
4 – Falta de oferta das séries finais do ensino fundamental e ensino médio na maioria das escolas existentes, forçando o estudo fora do Tekoha, gerando alta evasão;
5 – Praticamente todos os/as docentes exercem suas funções em regime de contrato temporário. O estado do Paraná não realizou concurso público, fragilizando e vulnerabilizando nossa ação como docentes;
6 – Ausência de material didático específico para nossas escolas, nos obrigando a utilizar material não adequado aos nossos contextos;
7 – Sistema educacional complexo, fora do contexto de nossas escolas, que exige Registro de Classe Online, porém, sem ofertar internet de qualidade;
8 – Terras de tamanho limitado ou não demarcadas que impede a produção de alimentos e a sobrevivência física e cultural;
9 – Ausência de cursos superiores específicos para formação de docentes Guarani.
10 – Baixo acompanhamento dos Núcleos Regionais de Educação.
Diante do exposto apresentamos as seguintes demandas:
1 – Construção de novas escolas nos tekoha que ainda não estão demarcados, mesmo que os prédios sejam provisórios/modulados, para alfabetização das crianças a partir dos 4 anos, cumprindo com o Art. 210 da Constituição Federal;
3 – Formação continuada para docentes indígenas e não indígenas;
4 – Priorizar a contratação de professores Guarani para as escolas, reduzindo a presença de professores não indígenas até a substituição total;
5 – Participação ativa das comunidades na elaboração de novos editais de contratação de professores;
6 – Criação de programas para produção de material didático específico e reprodução dos já existentes, elaborados pelos educadores indígenas e com participação ativa de nossos docentes;
7 – Acompanhamento psicológico nas escolas com contratação de profissional da área;
8 – Criação de cursos específicos de Licenciatura e/ou Pedagogia em Universidades Públicas da região para formação de nossos professores;
9 – Maior acompanhamento nas escolas pelos núcleos regionais de educação, com tutores e orientadores pedagógicos;
10 – Manter toda a educação básica nas Escolas Indígenas dos Tekoha, evitando a saída dos Tekoha forçando a frequência dos estudantes nas instituições não indígenas para estudar, reduzindo a evasão e estimulando os conhecimentos próprios;
11 – Melhor adequação da merenda escolar ao padrão alimentar de nossas crianças. O excesso de alimentos industrializados modifica o paladar além de introduzir uma quantidade grande de químicos nos organismos de nossos filhos. Solicitamos que a alimentação seja de produtos orgânicos. Assim, propomos que, onde tenha produção, seja adquirido os produtos da própria comunidade e no caso de não produzir seus alimentos seja adquirido do município;
12 – Ampliação da oferta de Internet nas escolas e criação de sistemas de registros específicos para as Escolas Indígenas;
13 – Reconhecimento de nossa presença e ocupação tradicional na região, demarcando nossas tekoha kuêra.
Brevemente são esses os apontamentos. Vamos seguir nos reunindo para fortalecer nossas ações e fazer as cobranças devidas nas instituições e órgãos que tem por obrigação nos atender, para que de fato consigamos fazer que nossas escolas sejam Escolas Indígenas específicas e diferenciadas. Queremos contar com apoio de parceiros como organizações da sociedade civil, órgãos públicos como prefeituras municipais, SEED, SESAI, FUNAI e Universidades.
Tekoha Ocoy, 18 de dezembro de 2022