50 anos de memórias: no Congresso, missionários e missionárias do Cimi resgatam histórico de luta e conquistas
A primeira mesa do Congresso teve como tema “Memória – Reflexão sobre os 50 anos do Cimi”; Regionais e fundadores do Cimi partilharam histórias vividas ao longo das cinco décadas da instituição
O dia 8 de novembro entrou para o histórico de datas marcantes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Ao som do canto dos missionários e missionárias, dos maracás dos povos indígenas e, em meio a alegria que pairava no ar, foram abertas as atividades do Congresso dos 50 anos do Cimi, no Centro de Formação Vicente Cañas, em Luziânia (GO).
Após o momento especial de abertura, o Cimi deu início à primeira mesa do evento. Com o tema “Memória – Reflexão sobre os 50 anos do Cimi”, missionários e missionárias de cada Regional do Cimi – ao todo, onze – partilharam um pouco do histórico, de lutas e conquistas, com o público presente.
Os relatos mostraram que as histórias dos Regionais do Cimi, mesmo estando em diferentes lugares do país, se conectam por meio de um mesmo ponto: a defesa dos direitos originários. De Norte a Sul, missionários e missionárias seguem, ao longo das cinco décadas do Cimi, colaborando com a luta pelos povos indígenas.
“De Norte a Sul, missionários e missionárias seguem, ao longo das cinco décadas do Cimi, colaborando com a luta pelos povos indígenas”
Entre os desafios mencionados nesse momento do Congresso, estava a demarcação dos territórios indígenas. Diante do contexto, vale ressaltar que, nos últimos anos, indígenas e organizações apoiadoras da causa têm denunciado o aumento das invasões e de violência contra as comunidades.
A política anti-indígena do atual governo agravou – e muito – esse cenário. Projetos de Lei (PLs), como o PL 191/202 – que libera a mineração em terras indígenas – e o PL 490/2007 – que inviabiliza a demarcação dos territórios indígenas –, decretos, e instruções normativas usurparam os direitos originários ao longo dos últimos quatro anos.
Além disso, não se pode esquecer da morosidade do julgamento do caso de Repercussão Geral – pelo Supremo Tribunal Federal (STF) –, que definirá o futuro das Terras Indígenas (TIs) de todo o país.
Memórias do Porantim
Abrindo o segundo momento da mesa, Antônio Carlos Queiroz – o ACQ –, ex-editor do Jornal Porantim, resgatou memórias do tempo em que ele contribuiu com a construção do Cimi. Em sua fala, ACQ lembrou de uma das edições do jornal – a de número 37.
“Um dos primeiros trabalhos que fiz no Porantim foi passar a noite fazendo a revisão do jornal de número 37, de abril de 1982. Esse número trazia um mapa do Brasil com a população estimada dos povos indígenas levantada pelo próprio Cimi. E o número estimado ali era de 185.485 pessoas. Naquela época, a ‘Funerária Nacional dos Índios’, a Funai [Fundação Nacional do Índio], fazia uma operação de extermínio estatístico. Cada número que publicavam, iam diminuindo o número dos indios”, relatou ACQ.
Mas, segundo ACQ, o Cimi caminhou na direção contrária da Funai. “O Cimi começou a ‘catar’ os povos Brasil afora. Pessoas como Egydio saíam com picuá [cesto], com uma ou duas laranjas, contando gente que se chamava ‘caboclo’ e que, de repente, se descobriam como índios. E isso aconteceu no Brasil inteiro. E, assim, começamos a resgatar esses povos. No Porantim, uma das brincadeiras mais interessantes que a gente fazia era ler o livro do Darcy Ribeiro, Índios do Brasil, e descobrir que povos que ele já tinha considerado extintos, estavam muitos vivos”.
“Pessoas como Egydio saíam com picuá [cesto], com uma ou duas laranjas, contando gente que se chamava ‘caboclo’ e que, de repente, se descobriam como índios”
Segundo ACQ, o jornal Porantim é um dos mais longevos jornais da imprensa alternativa brasileira, e é uma “grande referência brasileira da luta dos povos indígenas”.
“Dom Tomás Balduíno dizia que o Porantim era o único jornal da Igreja Católica que não tinha cheiro de sacristia, porque o jornal já nasceu com a função jornalística, com apuração dos fatos e denúncias”, afirmou ACQ, que divertiu o público ao replicar a fala de Dom Tomás Balduíno.
Recordações antigas e valiosas
Em seguida, foi a vez de Egydio Schwade, indigenista, filósofo e teólogo, relembrar o seu histórico de luta ao lado dos povos originários. Logo no início de sua fala, Egydio leu um documento o qual destaca a importância do trabalho realizado por missionários e missionárias.
“Muitas vezes, estamos acostumados a ver apenas a presença do clero, das irmãs, dos bispos, e muitas vezes esquecemos daquela gente que, organizadamente, sustentou em muitos locais [do Brasil]. Lembro-me que no início do Cimi, muitos missionários, principalmente engajados em missões tradicionais, questionavam, sobretudo, o avanço da questão indígena como uma pauta nacional”, afirmou Egydio.
“Muitas vezes esquecemos daquela gente que, organizadamente, sustentou em muitos locais [do Brasil]”
Egydio também reconheceu que, sem os leigos e leigas, os trabalhos da instituição não teriam se desenvolvido de maneira tão eficiente. “De fato, se não tivesse entrado os leigos e leigas, sobretudo os leigos organizados, com toda certeza teria sido muito difícil fazer esse avanço nacional juntos aos povos indígenas”.
Recordando histórias de pessoas que decidiram somar à causa, Egydio, com os olhos marejados, se emocionou ao falar do momento em que conheceu Egon Heck, membro histórico e fundador do Cimi. “Por volta de 1971, conheci um motorista de ônibus [Egon Heck] que, ao escutar as minhas histórias, se interessou pela causa indígena e acabou, no ano seguinte, indo para Rondônia, para o Rio Guaporé. E ele se engajou a vida toda em lugares onde os povos sofriam, como Rondônia, Mato Grosso do Sul”.
“Por volta de 1971, conheci um motorista de ônibus [Egon Heck] que, ao escutar as minhas histórias, se interessou pela causa indígena e acabou, no ano seguinte, indo para Rondônia”
Nesse momento, Egydio encheu os olhos de lágrimas e emocionou também o público presente, que se solidarizou e aplaudiu de pé.
Resistência
Em seguida, Egon Heck lembrou da reação dos povos indígenas contra os “projetos de morte, do caminho da destruição” ao longo da história. A exemplo disso, Egon falou sobre o caso do “Gravador de Juruna”, se referindo ao primeiro deputado federal indígena do Brasil, Mário Juruna.
Na década de 1970, Juruna ficou conhecido por andar pelos corredores e gabinetes da Fundação Nacional do Índio (Funai) e do Congresso Nacional portando sempre um gravador para registrar o que “os brancos diziam”.
“O gravador serviu para desmascarar a sociedade não-indígena que ia, sistematicamente, na maior ‘cara de pau’, falar que eram a favor dos povos indígenas. Mas que, posteriormente, destruíam os projetos de vida dos povos”, conta Heck.
“O gravador serviu para desmascarar a sociedade não-indígena que ia, sistematicamente, na maior ‘cara de pau’, falar que eram a favor dos povos indígenas”
Concluindo, Egon enalteceu a força e resistência dos povos indígenas e disse que é preciso mudar o olhar em relação à causa. “Ao longo desses 50 anos do Cimi, nós ressaltamos muito as citações de morte e condenação que os povos enfrentam. E essa intensidade [dos fatos negativos] fez com que a gente enxergasse menos toda a riqueza que passa pelas veias dos povos originários, e que transforma todo o sangue em força e energia”.