Joênia Wapichana e o apoderamento dos espaços para a ampliação do protagonismo indígena na política
A trajetória de Joênia Wapichana, a primeira deputada federal indígena na história e terceira representante indígena no parlamento brasileiro, que abriu caminhos para a “bancada do cocar”, eleita em 2022
Há 40 anos, o cacique Xavante Mário Juruna fez história ao se tornar o primeiro indígena a ocupar uma cadeira no parlamento brasileiro. Com mais de 31 mil votos, ele foi eleito como deputado federal pelo PDT no Rio de Janeiro e abria caminhos para a visibilidade indígena. Era o começo da conscientização sobre o papel do povo originários e sua representatividade na política. Após seu mandato, o país voltou a ter representação indígena no Congresso Nacional somente em 2014, quando José Carlos Nunes da Silva (PT-ES) foi eleito deputado estadual no Espírito Santo.
Mas foi nas eleições de 2018 que o protagonismo e a força das mulheres originárias ficaram historicamente conhecidas, quando Joênia Batista de Carvalho – Joênia Wapichana – fez ecoar, no Congresso Nacional, as vozes até então silenciadas das mulheres indígenas.
Naquele ano, pela primeira vez, foram registradas a candidatura de três mulheres indígenas na busca por representar efetivamente seu povo e sua etnia diante do cenário político brasileiro: Sonia Guajajara para a Vice Presidência, Telma Taurepang para o Senado Federal pelo Estado de Roraima e Joênia Wapichana para o cargo de Deputada Federal também pelo Estado de Roraima. Esta, na ocasião, eleita com 8.434 votos, se tornando exemplo de liderança e representatividade feminina nas lutas das mulheres e dos povos indígenas na Câmara Federal.
A partir daí, o crescente processo de representação e visibilidade das mulheres indígenas, por meio do protagonismo desse grupo, vem fortalecendo o cenário político que muitas vezes era invisibilizado. É um movimento de construção e de ressignificação de estruturas organizativas que muitas vezes se entrelaçam – seja de gênero, seja étnico-racial. É a busca dos povos originários e da mulher indígena no meio político para frear a desigualdade e as injustiças.
Sua trajetória – carregada por caminhos que legitimam a bandeira histórica de luta e resistência de seu povo -, serviu de exemplo e incentivo para que um novo grupo se reerguesse diante da política nacional neste ano
Nesse sentido, Joênia Wapichana imprimiu uma nova forma de olhar a política. Sua trajetória – carregada por caminhos que legitimam a bandeira histórica de luta e resistência de seu povo -, serviu de exemplo e incentivo para que um novo grupo se reerguesse diante da política nacional neste ano, se fortalecendo à medida que a mulher indígena vem tomando posse dos espaços que também lhes pertencem.
Trajetória
Antes mesmo de sua candidatura, Joênia já fazia história como a primeira mulher indígena a se formar em direito no Brasil, em 1997, pela Universidade Federal de Roraima (UFRR). Outro feito foi a conclusão de seu mestrado pela Universidade do Arizona, nos Estados Unidos. Uma trajetória que embasou ainda mais suas ações contrarias as violações dos direitos dos povos indígenas, levando-a, em 2008, a ser a primeira mulher indígena a fazer uma sustentação oral no Supremo Tribunal Federal – STF, durante a homologação que definiu os limites contínuos da Terra indígena Raposa Serra do Sol.
Joênia Wapichana construiu sua trajetória e identidade junto à comunidade, buscando representar os povos indígenas na busca pelos direitos que por lei são garantidos e ao mesmo tempo lutando por reparações que ainda não foram totalmente reconhecidas.
Apesar de toda sua história e atuação, a parlamentar não se reelegeu para o mandato de 2023 – 2026. Numericamente, Wapichana teve mais votos que outros três candidatos na região, foram 11.221 votos. Ela foi a sexta candidata mais votada na classificação geral, mas sua reeleição foi impossibilitada pelo coeficiente eleitoral roraimense.
Joênia, entretanto, tornou-se uma personalidade de destaque nacional e internacional no cenário político brasileiro e, por ser uma voz feminina indígena que é resistência, continuará sendo referência, independente do status que ocupe. A quem diga que ela possa vir a ocupar o posto de ministra dos Povos Originários, tendo em vista que o candidato à presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), garantiu em sua campanha que, se eleito, irá criar tal ministério.
Uma coisa é certa, Joênia Wapichana semeou a agenda indígena e de apoio às mulheres originarias na Capital Federal e, agora, em 2023, outras guerreiras da ancestralidade poderão dar continuidade ao seu legado no Congresso Nacional. Sônia Guajajara Psol/SP, Célia Xakriabá PSOL/MG e Juliana Cardoso PT/SP serão os nomes das representantes indígenas dentro do parlamento brasileiro até 2026.
O que essas mulheres tem em comum? Elas vêm construindo uma visibilidade nacional com suas lutas e demandas, transformando a maneira como outras mulheres indígenas se posicionam frente a sociedade opressora e racista, reagindo a toda investida de violação e conquista de seus territórios tradicionais.
A seguir, entrevista inédita de Joênia Wapichana ao Jornal Porantim. Nela, a liderança indígena fala sobre sua trajetória enquanto parlamentar e também sobre as perspectivas do processo de articulação da pauta indígena no Brasil.
Porantim – Quais foram os maiores desafios enfrentados durante o período em que esteve na cadeira de Deputada Federal pelo Estado de Roraima?
Joênia Wapichana – Foram inúmeros os desafios. O primeiro por estar num espaço onde a maioria dos parlamentares era da base do governo e somente uma minoria, entorno de 130 parlamentares, faziam parte da oposição. Consequentemente, vimos ser aprovado na Comissão de Constituição e Justiça o Projeto de Lei (PL) 490, que traz em seu texto impactos significantes para a demarcação de terras indígenas. O desafio foi convencer os parlamentares da importância de não reduzir os direitos constitucionais e não desmontar a política indigenista. E, principalmente, quando me deparei com a pandemia de Covid-19, que era necessário um projeto específico para assegurar a saúde dos povos indígenas, ter que sensibilizar de uma forma bem clara, dizendo não se tratar de uma disputa sobre direitos, mas sim a garantia a vida de cidadãos e cidadãs brasileiras indígenas que mereceriam uma política específica e diferenciada para o enfrentamento da Covid.
Creio que o bolsonarismo e todo esse pensamento que traz as pessoas que defendem o governo, o negacionismo em torno de algumas questões ambientais, o período que vimos avançar o desmatamento na Amazônia e, principalmente, a contradição em termos de desenvolvimento econômico fez com que precisaremos vencer esse tipo de ideologia para não retroceder ainda mais os direitos.
Outro desafio foi justamente encaminhar as denúncias relacionadas a violação de direitos dos povos indígenas, principalmente relacionadas aos garimpos ilegais, uma vez que apenas eu atuava como parlamentar indígena em todo o país.
Porantim – Qual sua análise a respeito do legado deixado de ampliação da participação das mulheres indígenas no espaço social e da abertura do diálogo para a pauta indígena?
Joênia Wapichana – Desde que fui eleita, sempre motivei a participação indígena nos processos eleitorais, por entender que o exercício dos direitos civis e políticos são uma ferramenta também de defesa desses direitos. E que a participação dos povos indígenas, especialmente das mulheres, vem somar como mecanismo de proteção e de protagonismo, além também de luta pelos interesses, uma vez que a participação política ela nos dá a possibilidade de fazer proposições, de manifestar as nossas opiniões e de possibilitar a defesa dos direitos constitucionais. Então, eu sempre coloquei que não gostaria de ser a única e nem a última, já que os povos indígenas tem todo direito de exercer sua cidadania, de voltar, mas também de ser votado e, principalmente, de reivindicar seus direitos e de tomar decisões sobre suas vidas.
Porantim – Quais serão os novos caminhos que irá percorrer após o encerramento do mandato?
Joênia Wapichana – Continuarei na defesa dos direitos dos povos indígenas. Sou advogada por profissão, tenho uma trajetória na defesa da causa indígena e estou disponível para qualquer convite do governo, pois quero contribuir nas políticas públicas, no exercício dos direitos indígenas e continuar acompanhando essa pauta, mesmo que de outras formas, atuando como ativista de defesa de direitos ou nos muitos projetos que iniciei na Câmara dos Deputados. Creio que é possível continuar fazendo Advocacy dentro do parlamento e vou continuar fazendo isso em outras frentes, apoiando as organizações indígenas a partir do movimento indígena.
Porantim – Qual sua perspectiva a respeito da atuação das novas representantes indígenas eleitas para o mandato de 2023 – 2026? Quais os desafios elas encontrarão atuando em prol dos direitos indígenas e das reparações históricas que ainda não foram totalmente reconhecidas?
Joênia Wapichana – Eu espero que elas consigam continuar esse trabalho de representação política indígena parlamentar. Eu fiquei por quase quatro anos sozinha ali e o desafio de ser líder me deu oportunidade de ter espaços dentro da casa. Agora, num outro cenário, com uma bancada – a bancada do cocar – que vem maior número, eu espero que elas consigam fazer um trabalho mais articulado, mais intenso. Eu sei que a nova composição da próxima legislatura também será de maioria de bolsonarista, ruralistas e de pessoas que querem retalhar os direitos dos povos indígenas. No entanto, estamos com o Executivo que se manifestou a favor dos povos indígenas, que fez propostas e promessas de governo para que resolva questões urgente como a retirada de garimpos e que se propôs a revogar atos administrativos que revertem direitos. Que o Executivo então possa fazer um trabalho conjunto com a bancada cocar no sentido de possibilitar a consolidação de algumas políticas públicas, tais como a participação social dos povos indígenas, através do Conselho Nacional de Política Indigenista; que possam trabalhar um orçamento mais condizente com a realidade dos povos indígenas, para que haja proteção das terras, fiscalização e monitoramento; que a educação indígena tenha a promoção de mais ações e programas que visam proteger as línguas indígenas; e que a questão saúde indígena possa ser fortalecida. Minha perspectiva é que a bancada do cocar possa ter mais possibilidade de avançar nas políticas públicas indígenas.
Conheça as representantes indígenas para o mandato de 2023-2026
Sônia Guajajara é a primeira mulher indígena eleita como deputada federal por São Paulo, com mais de 156 mil votos, o maior número já obtido por um indígena na história. A representante dos povos originários também foi candidata a vice-presidente na chapa do PSOL encabeçada por Guilherme Boulos na eleição de 2018 – a primeira indígena a concorrer ao cargo. Guajajara nasceu na Terra Indígena Araribóia (MA), atua no movimento indígena há mais de 20 anos e é formada em Letras e Enfermagem e especialista em Educação Especial pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Sônia é uma personalidade muito homenageada e premiada por sua atuação em defesa dos direitos humanos dos povos indígenas.
Célia Xakriabá é a primeira mulher indígena a ser eleita deputada federal por Minas Gerais, com mais de 101 mil votos. A professora ativista do povo Xakriabá é mestra em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília e doutoranda em antropologia pela UFMG. Ela dedica-se à luta pelos direitos das línguas indígenas ameaçadas e é uma das fundadoras da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade.
Juliana Cardoso PT/SP se autodeclara afro-indígena (mãe negra e pai indígena), é educadora e é a única mulher indígena na Câmara Municipal de São Paulo. Em seu quarto mandato como vereadora pelo PT no estado, Cardoso já presidiu a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal e criou o Conselho Municipal dos Povos Indígenas. Ela é a primeira indígena eleita deputada federal pelo partido dos Trabalhadores – PT, com mais de 125 mil votos. Juliana atua nas áreas de direitos humanos, direitos das mulheres, moradia popular, saúde pública, assistência social, infância e juventude.