A disseminação da história missionária e o resgate de documentos fundamentais sobre a “descolonização” das igrejas
Reinart dá voz a documentos de 1968 que foram base da renovação missionaria indigenista, contribuindo para a formação do Cimi, e traduzidos de maneira inédita para o contexto alemão
Os caminhos que precedem a prática missionária atual, bem como os esforços para uma “descolonização” mais forte da Igreja Católica, foram relatados pela teóloga Regina Reinart em seu livro – e tese de doutorado – intitulado “O Sínodo para Amazônia como uma chance e um desafio para a missão: o imperativo da proteção ambiental, o empoderamento dos povos indígenas e o fortalecimento de igrejas indígenas locais”. A publicação, editada em alemão, trouxe um resgate de vários documentos de difícil acesso como o “Documento de Morumbi”, de 1968, sobre a presença da Igreja entre os povos indígenas, o Diretório Indígena de 1969 e uma troca de cartas entre o Papa Francisco e o Bispo dos Munduruku, Wilmar Santin.
O “Documento de Morumbi”, em especial, “é a base de toda a renovação missionária indigenista da Igreja Católica e desembocou na formação do Cimi”, revelou o padre José Moura e Silva em seu artigo publicado no Informativo nº 327 da Companhia de Jesus, em maio de 1996. Tal documento, que precede a ditadura militar, foi traduzido para o contexto alemão de maneira inédita, assim como todo o testemunho da fé de figuras importantes como Egydio Schwade, Thomaz de Aquino Lisboa, Vicente Cañas.
“É uma conquista e digo isso humildemente. Eu resgatei esses documentos nas bibliotecas, nos arquivos, nos escritos do Paulo Suess [o assessor teológico do Conselho Indigenista Missionário], no diálogo com o Cimi Regional Mato Grosso, Pará e Nacional respectivamente. Sempre tive o desejo de me aprofundar. Uma coisa é elaborar um projeto de cooperação internacional e outra coisa é entrar numa pesquisa sobre um dos muitos povos, entendendo melhor o que está acontecendo no território. Como teve o Sínodo para a Amazônia, decidi fazer uma pesquisa com enfoque no povo Munduruku. Para mim a questão foi: tem que ter um antes e um depois deste Sínodo. Peguei o povo Munduruku e fiz essa pesquisa, que se tornou um mutirão como vocês dizem no Brasil”, explicou Regina Reinart, sobre a criação do livro.
A teóloga trabalha desde 2013 como consultora da organização internacional Misereor, entidade da igreja católica na Alemanha que há mais de 60 anos atua na cooperação para o desenvolvimento e promove ações contra a desigualdade social em países da África, Ásia e América Latina.
Reinart é encarregada de projetos no Brasil, do Departamento América Latina da Misereor, onde é responsável, entre outras coisas, pelos projetos na Amazônia brasileira, ao qual leva toda sua experiência missionária e sua “posição da escuta, de convivência, de beber da fonte dos povos indígenas, de estar presente”, conforme destaca a teóloga ao Porantim. Na ocasião, Reinart apontou também a necessidade da luta contra as investidas nos territórios indígenas, do posicionamento na defesa da causa dos povos tradicionais. “Basta, chega de genocídio! Precisamos de um governo e de uma política que pare com o genocídio, com o desmatamento e com a invasão dos territórios indígenas. Os povos indígenas têm os seus direitos e esses direitos precisam ser respeitados e defendidos. Precisamos defender os territórios e respeitar as leis que existem”, frisou.
“Misereor está no DNA do Cimi e vice versa”
Desde a fundação do Conselho Indigenista Missionário – Cimi, em 1972, que a Misereor apoia os projetos da causa indígena aqui no Brasil, segundo Regina Reinart. Essa pareceria abriu os caminhos para que a teóloga pudesse se aprofundar na atuação com os povos originários e ressignificar o objetivo da missão. “Estamos na luta e continuamos lutando também enquanto Igreja Católica. Estamos dando à Igreja um rosto diferente, único, que precisa ser marcado, que precisa ser comunicado, isso é importante. A Misereor e Cimi estão unidos mutuamente um no DNA do outro. Desde a fundação do Cimi que a Misereor apoia os projetos aqui no Brasil. Os povos indígenas, os mais de 305 povos, são de suma importância para nós, para o meio ambiente, para a preservação da natureza e da diversidade cultural. Tudo isso é uma grande preocupação para nós da Misereor”, frisou Reinart.
Tanto o Relatório anual de Violências quanto o jornal são fontes de pesquisa que nos atingem lá na Europa e em tantos outros lugares
“A violação dos direitos humanos, o agronegócio e o genocídio dos povos indígenas são temas que discutimos com nossos parceiros no Brasil. Misereor é isso: lutamos contra a agronegócio, promovemos a vida plena no sentido do Bem Viver, isso é Misereor”, explicou Reinart.
Sobre a parceria com o Cimi, a teóloga lembrou também dos trabalhos desenvolvidos pelo Conselho Indigenista e das inúmeras publicações da entidade que, para ela, são muito mais que fonte de informações. “Eu tenho um xodó pelo jornal Porantim. É um jornal que o ano todo nos traz atualizações, reportagens, retratos, notícias… pra mim é uma fonte. Tanto o Relatório anual de Violências quanto o jornal são fontes de pesquisa que nos atingem lá na Europa e em tantos outros lugares. São pontos de referências e não somente um instrumento de incidência política em nível internacional. É uma fonte de conhecimento, de denúncias, de casos emblemáticos”, destacou.
O “Documento de Morumbi”
Em 21 de fevereiro de 1968, ocorreu em São Paulo, no Morumbi, o 1º Encontro de Pastoral Indigenista sobre a presença da Igreja Católica junto às populações indígenas, onde se editou o “Documento de Morumbi”. Na época, o processo de aniquilação dos povos originários estava a pleno vapor e a ação missionária dava pequenos passos para abandonar as práticas catequizadoras, buscando assumir o modelo debatido na Conferência de Medellín, que aconteceu também em 1968. Um ano antes, o Serviço de Proteção aos Índios (SPI) foi substituído pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A nova organização, entretanto, deu continuidade às atrocidades conduzidas pelo SPI, perpetuando o projeto de dissolução dos modos de vida dos povos.
Segundo artigo publicado no Informativo nº 327 da Companhia de Jesus, em maio de 1996, de autoria do padre José Moura e Silva, o “Documento de Morumbi” foi a base da renovação missionária indigenista que culminou com a criação do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), em 1972. Ele explica que foi o também padre Adalberto Holanda Pereira que editou o diretório indígena para a Missão do Diamantino – um conjunto de propostas aos missionários que trabalhavam nas aldeias atendidas pela prelazia -, e ainda promoveu, junto com o então Secretariado Nacional de atividade missionária da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Seminário Missionários – Antropólogos, em conjunto com o 1º Encontro de Pastoral Indigenista, o chamado de 1º Encontro sobre Presença da Igreja nas Populações Indígenas, onde se editou o “Documento de Morumbi”.
Naquela época, a necessidade de mudança da política indigenista da Igreja junto aos indígenas foi apontada pelo Concilio Vaticano II (1965), pela II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, Medellín, Colômbia (1968) e pelo 1º Encontro sobre Presença da Igreja nas Populações Indígenas (1968).
Em março de 2021, Egydio Schwade, um dos fundadores do Conselho Indigenista Missionário, falou sobre o assunto em entrevista elaborada por Roberto Antonio Liebgott (Cimi) e Rodrigo de Medeiros Silva, da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (Renap), que compõem o Fórum Justiça no Rio Grande do Sul.
“Os missionários indigenistas se sentiram marginalizados [após a Conferência de Medellín]. Diante das reclamações, o Secretariado Nacional de Atividade Missionária (SNAM), da CNBB, convocou a reunião de missionários indigenistas realizada em Morumbi 02/1968. Lá, presenciei fortes discussões. Uma delas, entre um Salesiano e um Dominicano, me projetou luz sobre como enfrentar futuras situações. Em meio a uma acalorada discussão, o Salesiano, professor de universidade, esbravejou: “E onde fica então, a nossa obediência religiosa?” E o franzino Dominicano, missionário no Araguaia, respondeu: “Obediência, sim, mas obediência criativa!”. Me lembrei de Pedro que há 2.000 anos escreveu: “É preciso obedecer antes a Deus que aos homens.” Havia necessidade de mudanças radicais na rotina missionaria da Igreja. De volta em São Leopoldo, na Teologia, discutimos muito o assunto e, no ano seguinte, criei no Sul a OPAN-Operação Anchieta, hoje Operação Amazônia Nativa, garantindo duas perspectivas novas para a política indigenista da Igreja do Brasil. A primeira inaugurou um novo modelo de presença missionaria, não doutrinação, mas encarnação nas aldeias. A segunda garantiu novas forças, o vinho novo, para os odres novos que surgiam, agora com presença criativa, ágil, sem fronteiras políticas ou eclesiásticas e encarnada na realidade dos povos indígenas, esfacelados por todo o território brasileiro”, recordou Schwade.
Segundo Benedito Prezia – em seu livro “Caminhando na Luta e na Esperança: Retrospectiva dos últimos 60 anos da Pastoral Indigenista e dos 30 anos do Cimi” -, o 1º Encontro sobre a Presença da Igreja nas Populações Indígenas – realizado no Colégio Santo Américo, no Morumbi/SP, trouxe um aceno de colaboração da Funai que culminou na solicitação do órgão por uma assessoria do jesuíta Antonio Iasi Jr e, ainda, na indicação dos nomes de Dom Tomás Balduíno e padre Ângelo Venturelli para integrarem do Conselho Indigenista da Funai. De acordo com a publicação, outras iniciativas também ocorreram, como a realização, em Brasília, em 1969, do 1º Simpósio Indigenista entre a Funai e Missões Religiosas.
Prezia relatou ainda alguns dos trechos do relatório final do 1º Encontro de Pastoral Indigenista (1968), que destacava o respeito a cultura de cada grupo indígena e a procura por aculturar-se a ele, fomentando no índio o orgulho de sua origem e de sua raça. O documento trouxe também a necessidade do estudo de antropologia e linguística, bem como cursos de preparação para os missionários e coordenação da pastoral indígena, segundo o autor. “Esse vai ser um dos pontos polêmicos que marcará os primeiros anos da vida do Cimi – colaborar ou não com o Estado. Convém dizer que a Funai nasceu sob o signo da defesa dos povos indígenas, tendo como seu primeiro presidente um civil muito bem-intencionado, o Dr. José Queirós Campos”, relatou Prezia.
O livro “O Sínodo para Amazônia como uma chance e um desafio de missão”
O livro de Regina Reinart faz uma reflexão mais forte sobre o conceito de missão e traz ao debate a questão do desenvolvimento da Igreja pós-colonial (e pós-sinodal) que segue a caminho da conversão social, cultural e ecológica. A teóloga mostra os desafios da missão junto aos povos indígenas, fazendo uma comparação do documento final do Sínodo para Amazônia e da exortação Querida Amazônia, seguida por uma referência à importância mundial do Sínodo. A autora oferta ainda inúmeras entrevistas de pessoas que atuam na região amazônica e de missionários que lidam diariamente com a causa indígena, trazendo para o contexto alemão os esforços para uma “descolonização” mais forte na Igreja Católica.
O trabalho de Reinart consiste em cinco capítulos, os dois primeiros, delineiam o quadro antropológico, cultural e político, contextualizando os direitos indígenas e analisando as abordagens missionárias do passado e do futuro. Usando o exemplo do povo Munduruku, a teóloga descreve ainda os desafios atuais dos povos indígenas, sua visão de mundo, linguagem, conceitos de comunidade e meio ambiente, bem como a imagem de Deus e suas cosmologias.
O segundo capítulo trata da legislação brasileira e a realidade atual dos povos indígenas, com foco na questão territorial: demarcações e autodemarcações. Reinart também descreve em detalhes os diversos atores políticos nacionais (p. ex. Funai, Incra e Ibama) e internacionais que defendem os direitos dos povos indígenas na região amazônica.
O terceiro capítulo da tese de doutorado é dedicado à discussão central entre inculturação e aculturação e a polêmica nas relações diretas com os indígenas, por meio da prática missionária da Igreja Católica. É aqui que a pesquisadora Reinart utiliza, pela primeira vez, o “Documento de Morumbi” e o Guia Diretório Indigenista, destacando as atividades de Hugo Mense, Genoveva Helena Boyé, Thomaz de Aquino Lisboa e Vicente Cañas Kiwxi.
Em seguida, Regina Reinart analisa os documentos das Assembleias Gerais do Episcopado da América Latina e do Caribe desde Medellín, em 1968, no que diz respeito às suas declarações sobre proteção ambiental e indígena. A teóloga aborda também as reuniões locais dos bispos amazônicos, bem como encíclicas relevantes e exortações apostólicas.
No quarto capítulo a autora descreve a exortação apostólica Evangelii Gaudium e a encíclica Laudato Si’ escritas pelo Papa Francisco com o propósito de destacar os principais aspectos relacionados ao magistério Social da Igreja, dando profundo destaque a opção pelos pobres e pela busca a justiça social, por meio, inclusive, de uma perspectiva de ecologia integral que enfatiza a necessidade do cuidado com a casa comum. O capítulo traz ainda uma troca de cartas entre o Bispo de Itaituba, Dom Wilmar Santin, o bispo dos Munduruku, e o Papa Francisco. Posteriormente, é examinado o extenso processo de consulta que precedeu o Sínodo, incluindo o renovado Pacto das Catacumbas. Reinart analisa e compara ainda o documento final do Sínodo e a exortação papal Querida Amazônia.
No quinto e último capítulo, ela desenha as consequências para a missão, frisando a amplitude que o Sínodo para Amazônia dá para uma prática missionária alterada. Além disso, a autora traz a questão de um ministério eclesiástico para as mulheres.
“No quinto capítulo eu trago a importância de se ter um diálogo sul-sul com enfoque nos povos indígenas e nas ameaças que eles estão sofrendo, porque praticamente [quase todos] os problemas nessas regiões de florestas tropicais são o mesmo: garimpo, mineração, desflorestamento, a questão da água, a questão da demarcação da terra, dos direitos a terra, dos direitos econômicos, sociais e culturais e assim se vai. Então é uma coisa importante. E, como minha dissertação de doutorado enfoca o povo Munduruku, eu também trago um pouco os passos da homologação e uma análise dos últimos 20 anos, de quantas terras foram desmarcadas até realmente quantas foram reconhecidas como terra indígena e vemos então a situação crítica em qual o país se encontra. É uma contribuição para dizer: estamos na luta”, conclui.
Resumo traduzido para o português do “O Sínodo para Amazônia como uma chance e um desafio para a missão: O imperativo da proteção ambiental, do empoderamento dos povos indígenas e o fortalecimento de igrejas locais indígenas”, por Regina Reinart
O fato de tudo estar interligado é demonstrado pela região amazônica rica em espécies, cuja existência está ameaçada, sobretudo devido à situação política nos nove países vizinhos da América do Sul. A grilagem, o agronegócio em constante expansão e uma extração sem controle de matérias-primas caracterizam a região com mais de 300 povos indígenas. Os climatologistas assinalam que pontos críticos – uma vez atingidos – significam não somente a destruição da floresta tropical, mas também alterações climáticas irreversíveis e o Ecocídio desta biodiversidade única. Com a sua atitude anti-indígena, o atual Governo brasileiro até aceita um etnocídio.
As exigências de proteção da floresta tropical e da sua população não deixam sequer intocada a teologia da missão. O apelo a uma ecologia integral e a uma Igreja com rosto amazônico tornou-se claro com o Sínodo para a Região Pan-Amazônica realizado em Roma, em outubro de 2019. O Sínodo está no centro desta dissertação. Tanto a situação legal do Brasil em relação aos povos indígenas como os principais atores da Igreja local são apresentados e finalmente colocados no contexto global e da Igreja mundial. Os povos autóctones e a sua luta pela sobrevivência são exemplificados pela etnia dos Munduruku. As atividades missionárias são resumidas até ao início do século XX. Os estudos antropológicos e linguísticos, bem como a apresentação da cosmologia dos Munduruku, permitem uma referência prática à parte teórica dos documentos sinodais.
Pela primeira vez em alemão, são apresentados textos fundamentais dos últimos 50 anos, bem como uma correspondência entre o Papa Francisco e o Bispo dos Munduruku, Dom Wilmar Santin. Também estão incluídos os testemunhos de figuras de destaque como o missionário Hugo Mense e o mártir Vicente Cañas, assim como vozes atuais, experientes e críticas.
Os documentos papais centrais desde Evangelii nuntiandi à encíclica Laudato si´, bem como os textos do episcopado latino-americano e da Igreja na Amazônia brasileira são sistematicamente examinados no que diz respeito à proteção ambiental, aos povos indígenas e à inculturação. Após uma comparação do documento final e da exortação Querida Amazônia segue-se uma referência ao significado mundial do Sínodo, especialmente para regiões com ecossistemas semelhantes, como a Bacia do Congo em África e a região do Bornéu na Ásia. A Igreja Católica terá que assumir o desafio da opção pela criação e pelos povos indígenas, fiel ao mandato do Sínodo da Amazônia.
Percorrer novos caminhos na Igreja significa não somente qualificar-se no domínio do trabalho de lobbying e advocacia, mas também estabelecer um diálogo construtivo com as teologias indígenas. O desenvolvimento de um rito amazônico com a participação sobretudo dos povos indígenas continua a ser a principal tarefa da Igreja Amazônica pós-sinodal, no caminho da conversão – social, cultural, ecológica e sinodal – nesta “Casa Comum”.
Palavras-chave: Amazônia, povos indígenas, ecologia, sinodalidade, inculturação, interculturação, missão