06/08/2022

O tempo está contra os indígenas: alvos de violências constantes, os Guarani e Kaiowá resistem e retomam seus territórios ancestrais no Mato Grosso do Sul

A morosidade do julgamento do marco temporal e a política anti-indígena do governo federal
favorecem os ataques às populações tradicionais e está entre as principais motivações das retomadas no estado de Mato Grosso do Sul, onde prevalece a ação ilegal da polícia e a omissão do Estado

Guarani e Kaiowá em manifestação em Brasília. Fotos: Laila Mendes e Egon Heck/Cimi

Por Assessoria de Comunicação do Cimi – Matéria publicada originalmente na edição 446 do jornal Porantim

Diante da demora da decisão do julgamento do Recurso Extraordinário com repercussão geral (RE-RG) nº 1.017.365 – que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) – e da política de desmonte dos órgãos de proteção aos indígenas e ao meio ambiente, os casos de violência contra os povos originários continuam crescendo e seus territórios seguem sendo devastados.

O tempo está contra os povos indígenas, que esperam há anos pela demarcação de seus territórios – originalmente habitados por eles –, mas que hoje estão ocupados pelas espinhosas cercas dos latifundiários do agronegócio – grandes fazendas produtoras de soja, cana de açúcar ou gado para exportação -, os verdadeiros invasores das terras reivindicadas, onde milícias praticam arbitrariedades com apoio da polícia e do governo.

No Mato Grosso do Sul, os violentos casos dos Tekohas Jopara (em Coronel Sapucaia), Guapo’y (em Amambai), e Kurupi/São Lucas e Kurupi/Santiago Kue (em Naviraí), que serão descritos abaixo, somam-se ao longos históricos de violências desses povos, reforçando a urgente necessidade de o STF retomar o julgamento do Recurso Extraordinário, em que se discute a tese nefasta e inconstitucional do marco temporal. O julgamento, que começou em 2021, seria retomado em 23 junho, mas o ministro Luiz Fux decidiu retira-lo da pauta do tribunal e, até o momento, não há nova data prevista para a decisão.

“Sofremos um genocídio planejado e silenciado”, afirma a liderança Guarani e Kaiowá, Erileide Domingues

Povos Guarani e Kaiowá aguardam audiência em frente ao Senado Federal, em Brasília. Foto: Marina Oliveira/Cimi

Enquanto isso, a resistência dos Guarani e Kaiowá pulsa sobre suas terras ancestrais e as retomadas acabam sendo o único recurso possível para esses povos originários que, nos últimos anos, vivenciam um amplo histórico de violências, com: uso de forças de segurança pública em despejos ilegais; jovens e crianças alvejadas por armas de fogo durante ataques; crianças das retomadas impedidas de frequentar escolas; serviços de saúde sendo deliberadamente negados; mulheres, idosas e crianças sendo ameaçadas de estupro; cenário de guerra inclusive com uso de helicóptero como plataforma de tiro; comunidades sem acesso a água, pois os rios estão contaminados pelos agrotóxicos usados nas fazendas que o cercam; territórios diminuídos ou totalmente extintos, obrigando os indígenas a viverem em situação de vulnerabilidade em acampamentos na beira de estradas; famílias inteiras atingidas por nuvens de agrotóxicos lançados por aviões nas frequentes e sistemáticos pulverizações noturna; aumento das ações de reintegração de posse; e com tantas outras barbáries.

“Sofremos um genocídio planejado e silenciado”, afirma a liderança Guarani e Kaiowá, Erileide Domingues, em declaração entregue ao Fórum Permanente das Nações Unidas para as Questões Indígenas (UNPFII). “Quero denunciar que o governo brasileiro está, atualmente, financiando o arrendamento de nossas poucas terras. Que a própria organização indigenista federal tem organizado e fomentado a invasão de nossas terras”, frisou.

Em Guarani, tekoha é o termo utilizado para se referir a seus territórios, que é muito mais do que simplesmente terra. Para eles tekoha é vida, pois os Guarani e Kaiowá têm uma ligação muito forte com os tekoha, seus territórios sagrados. Sem a demarcação e proteção por parte do Estado desses territórios ancestrais, “meu povo está morrendo de fome porque não temos terra para plantar. As poucas que nos restam, o governo brasileiro está arrendando para os agricultores do agronegócio. (…) queremos ter nossa terra e cultivar nossa própria comida. Nossa autonomia foi roubada e o governo, com essa política de arrendamento, não pretende outra coisa, senão nos exterminar”, reforça Erileide.

Grande parte das terras indígenas dos Guarani e Kaiowá são das reservas criadas na década de 1920 pelo extinto Serviço de Proteção aos Índios (SPI), com a finalidade de confinar os indígenas que ocupavam toda a região e liberar seus territórios para a colonização. Foram oito reservas indígenas criadas pelo SPI na região sul do Mato Grosso do Sul, concentrando cerca de 80% da segunda maior população indígena do país, os Guarani e Kaiowá. Reservas que foram demarcadas com uma área bem menor do que os hectares que constavam no decreto. Ou seja, ao longo das décadas, estas pequenas áreas – insuficientes para a sobrevivência física e cultural dos indígenas – foram sistematicamente invadidas e dilapidadas e os povos alijados de seu território de ocupação tradicional em nome de uma política de desenvolvimento.

Desenvolvimento a qualquer custo

Conscientes dos seus direitos, os Guarani e Kaiowá têm lutado para efetivá-los em processo permanente de diálogo, de mobilizações e de retomadas, mas, além do retrocesso na demarcação de terras e do impasse no julgamento do marco temporal, o discurso genocida do governo Bolsonaro tem, cada vez mais, legitimado os casos de violência contra esses povos, além é claro, das ações controversas do Estado.

Para se ter uma ideia do cenário enfrentado pelos indígenas do Mato Grosso do Sul, segundo levantamento do site Mongabay, o Governo Federal reconheceu mais de 58 mil hectares de fazendas em áreas sob demarcação nos últimos dois anos, reflexo da Instrução Normativa nº 9, publicada pela Funai em 16 de abril de 2020, permitindo o registro de imóveis rurais em Terras Indígenas ainda não demarcadas no Brasil. “Infelizmente, o Mato Grosso do Sul é marcado pela força do agronegócio com o conservadorismo, algo que influencia os tribunais”, afirmou Rafael Modesto, Advogado e assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em entrevista para o referido site. “Há magistrados que são grandes donos de terras, o que interfere na razão de suas sentenças”, frisou.

Buscando inibir algumas das ações violentas enfrentadas pelos indígenas, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, prorrogou até o dia 31 de outubro de 2022 a suspensão de despejos e desocupações, em razão da pandemia de Covid-19. A medida poderá resguardar os indígenas que fazem parte das retomadas até – pelo menos – o prazo estabelecido por Barroso.

Acontece que, em maio de 2020, a Corte também determinou a suspensão de todos os processos que tratem do tema e que possam resultar na anulação de demarcações ou no despejo de comunidades indígenas. A decisão do ministro Edson Fachin é válida até o fim da pandemia de Covid-19 ou até o término do julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365 – caso ele ainda não tenha sido concluído quando a crise sanitária for considerada encerrada. Entretanto, as medidas seguem sendo burladas e desrespeitadas por juízes e forças de segurança.

Tekoha Jopara, localizado próxima a reserva Indígena Taquaperi, no município de Coronel Sapucaia (MS)

  • 21 de maio de 2022: o jovem indígena Alex Lopes tomba em seu território

Alex Recarte Vasques Lopes, de 18 anos, assassinado em Coronel Sapucaia (MS) Foto: arquivo pessoal

No dia 21 de maio deste ano, Alex Recarte Vasques Lopes, de 18 anos, foi assassinado. Segundo o relato de lideranças da comunidade, Alex teria deixado a reserva Taquaperi, onde morava, para buscar lenha em uma área do entorno da Terra Indígena. No local, teria sido assassinado e seu corpo abandonado no Paraguai – em uma área a menos de dez quilômetros dos limites da reserva indígena. Em fotos do corpo do jovem enviadas pelas lideranças ao Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul, foi possível identificar ao menos cinco orifícios compatíveis com projéteis de armas de fogo. Segundo as lideranças da comunidade, ele foi derrubado com um tiro e depois executado friamente – todas as perfurações de bala se encontram na região de seu peito.

Desde então, os Guarani e Kaiowá cobram apuração federal do assassinato e vivem sob constante tensão – temendo ser alvo de violência de policiais e fazendeiros.

Histórico de violência

O município de Coronel Sapucaia – separado da cidade de Capitán Bado, no Paraguai, apenas por uma avenida -, registra um longo histórico de violência de fazendeiros contra lideranças do povo Guarani e Kaiowá. Em apenas dois anos, foram assassinadas três importantes lideranças do tekoha Kurusu Amba, também localizado no município: a rezadora Xurite Lopes, em 2007, e as lideranças Ortiz Lopes, também em 2007, e Oswaldo Lopes, em 2009 – todos até hoje impunes.

O caso de Alex Lopes guarda semelhanças, também, com o caso de Denilson Barbosa, outro jovem Guarani Kaiowá assassinado por um fazendeiro, em 2013, quando pescava com amigos numa propriedade vizinha ao tekoha Pindo Roky – incluído no perímetro da TI Dourados-Amambaipegua I. A terra indígena foi identificada e delimitada em 2016 pela Funai e está com seu processo demarcatório paralisado desde então.

Em comum, além da impunidade dos autores dos crimes, os casos guardam relação com a situação de confinamento e morosidade na demarcação das terras Guarani e Kaiowá, que inviabiliza o acesso a condições mínimas de subsistência e transforma o ato de circular por áreas reivindicadas e até reconhecidas como parte de seu território tradicional em ações perigosas e potencialmente fatais.

 

  • 22 de maio de 2022: mesmo sob pressão, a resistência indígena retoma o território ancestral

Na madrugada do dia 22 de maio, domingo, em protesto contra o assassinato do jovem indígena Alex Lopes, o povo Guarani e Kaiowá retomou uma fazenda no município de Coronel Sapucaia (MS), na fronteira com o Paraguai, vizinha à Terra Indígena (TI) Taquaperi, onde teria ocorrido o assassinato do jovem indígena. A retomada foi denominada pelos indígenas como Tekoha Jopara.

Foto: comunidade Taquaperi

Já no início da tarde daquele dia, o acesso à retomada foi impedido por um bloqueio realizado por viaturas do Departamento de Operações de Fronteira (DOF). A barreira foi posicionada na rodovia MS-286, que atravessa a TI Taquaperi e também dá acesso a outras comunidades indígenas da região – que ficaram, na prática, isoladas.

A situação de extrema violência foi o que motivou os Guarani e Kaiowá a realizarem a retomada, conforme relata uma das lideranças da comunidade, não identificada por razões de segurança.

“Mataram um rapaz de 18 anos, é triste. A família decidiu fazer a retomada onde mataram o rapaz. Precisamos de apoio dos órgãos competentes. Aqui na aldeia Taquaperi, nunca acontecem retomadas, é a primeira vez que acontece isso. Já perdemos muitos parentes na estrada, atropelados. Dessa vez, tomamos a decisão [de retomar]. Chega de perder nossos parentes, é dor para nós”, relata a liderança.

“A família fica com dor no coração, porque além de matar, aqui no vizinho, carregaram e jogaram lá no Paraguai. Parece um animal, é coisa triste. Então, tomamos essa decisão nossa, da família e da comunidade inteira do Taquaperi”, conta o indígena.

Na ocasião, os Guarani e Kaiowá cobraram que o assassinato fosse investigado com urgência pelas autoridades federais, pois temiam que o cenário do crime pudesse ser alterado, inviabilizando a perícia. Além disso, os indígenas salientam que não confiam nas forças de segurança estaduais, que em diversas ocasiões agiram parcialmente em defesa dos interesses de fazendeiros, atacando retomadas e acampamentos mesmo sem determinação judicial. A comunidade pede, ainda, proteção urgente aos sobreviventes do ataque.

A TI Taquaperi é uma das oito reservas indígenas criadas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) na região sul do Mato Grosso do Sul. De acordo com o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Mato Grosso do Sul, Matias Benno, “os indígenas reivindicam uma boa parte da área de Taquaperi que foi subtraída em relação àquela prevista no decreto de criação. E cobram, por décadas, que a Funai estabeleça um estudo para checagem e reavivamento desse território”.. Cerca de 3.300 indígenas vivem neste pequeno espaço, o que inviabiliza que sobrevivam de acordo com seu modo de vida tradicional. O confinamento e a apropriação, ao longo das décadas, de partes da área reservada por fazendeiros é uma das razões para que os Guarani e Kaiowá da reserva frequentem áreas de mata das propriedades vizinhas à reserva, reivindicadas pelos indígenas como parte de seu território tradicional.

“A situação é de extrema negação de direitos”, disse em nota a Caravana Ecumênica, formada por lideranças religiosas de todas as partes do país, que foram até o estado para prestar solidariedade a esses povos originários, ouvi-los e fazer ecoar suas denúncias para as instituições nacionais e internacionais. “Lideranças afirmam já terem ouvido que as crianças que estiverem em área de retomada serão reprovadas nas escolas. Professores indígenas de outras aldeias são ameaçados em seus trabalhos, caso queiram ir ao Jopara. Segundo os relatos, agentes de saúde dizem com todas as letras: “nós não vamos fazer atendimento à comunidade que tá na retomada”. Há crianças e doentes na comunidade, mas nem mesmo remédios são liberados para que as próprias lideranças levem ao tekoha”, relata a Caravana em nota.

  • 2 de junho de 2022: o terror continua na retomada do Tekoha Jopara

No dia 2 de junho, as intimidações à retomada do Tekoha Jopara, se intensificaram. Desde que os Guarani e Kaiowá optaram pela retomada, uma série de ameaças ocorreram contra esse povo.

“Os indígenas têm denunciado há dias as movimentações, tentando sensibilizar setores. Inclusive de pessoas portando fuzis em suas caminhonetes. Uma preocupação adjacente é que, nesse local, há circulação intensa e envolvimento de forças ligadas ao mundo do tráfico de drogas. Então, é difícil saber a proporção que pode tomar um ataque nessa zona de fronteira para além dos fazendeiros. Essa força está posta”, afirma Matias Benno, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Mato Grosso do Sul.

O coordenador explica que, para os indígenas, retomar o território – principalmente após a morte de Alex Vasques –, é um “senso de justiça”. “Os indígenas estão lá com convicção de que a ocupação é um direito, principalmente devido a duas questões: a justiça pelo assassinato brutal do jovem Alex, sem explicações, e, ao mesmo tempo, por ser uma área que pertencia à área indígena. Na lógica da comunidade, se essas pessoas não tivessem invadido o território, não haveria morte. Não haveria essas violações que, constantemente, segundo eles, acontecem advindas dessa fazenda”.

Na ocasião, o Cimi – Regional Mato Grosso do Sul, junto aos indígenas, tentaram deslocar forças de segurança federais até o local, a fim de evitar mais um massacre contra os Guarani e Kaiowá. “Eles [supostos fazendeiros] querem invadir Jopara, querem brigar. Já mandaram o recado. As crianças e mulheres já saíram do local. Eles estão armados, o sangue vai ser derramado de novo”, afirma uma liderança – que não será identificada por questão de segurança.

Território ancestral denominado Kurupi/São Lucas, localizado dentro do macro território Dourados-Amambai Pegua II, em Naviraí (MS)

  • 23 de junho de 2022: a retomada de Kurupi/São Lucas e a retaliação armada

No dia 23 de junho, quinta-feira, cerca de 30 indígenas Kaiowá e Guarani retomaram parte de seu território ancestral denominado Kurupi/São Lucas. Após a retomada, teve início um pesado ataque armado, que começou ainda na madrugada de quinta-feira e se estendeu até o início da manhã de sexta-feira (24). Na ocasião, lideranças da comunidade denunciam que três pessoas seguiam desaparecidas após o ataque, sendo elas mulheres e crianças.

Guarani e Kaiowá manifestam-se durante visita de comitiva da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) à TI Guyraroka. Foto: CIDH/divulgação

A comunidade, confinada à beira de uma rodovia, aguarda há décadas a conclusão dos estudos que já identificaram a área como de posse tradicional dos Guarani e Kaiowá. Os indígenas identificaram entre seus agressores fazendeiros locais e seguranças que, segundo eles, podem se tratar de segurança privada uniformizada ou até mesmo indivíduos ligados à força de segurança pública. Muitos disparos foram efetuados, forçando os indígenas a deixarem a sede da fazenda e retornar para a beira da rodovia, no acampamento Kurupi.

A retomada, segundo os indígenas, se justifica pelas diversas ameaças que voltaram a sofrer dos fazendeiros na região e, ao mesmo tempo, por medo das demarcações sofrerem retrocessos no atual cenário político em que a Funai está inserida e com a retirada de pauta do julgamento do Recurso Extraordinário. Ainda segundo eles, a ocupação da sede foi pacífica, e o caseiro que lá se encontrava foi imediatamente liberado.

Pela vulnerabilidade do local onde os indígenas se encontram, que permite o acesso tanto pela rodovia quanto pela mata próxima à fazenda, a comunidade de Kurupi temia por mais ataques ao longo dos dias. Vale ressaltar que existe contra este território um longo histórico de violência e violações, como queima deliberada de barracas e até mesmo casos de tortura.

A comunidade de Kurupi pede socorro e solicita das autoridades, em especial do Ministério Público Federal, que garantam a integridade das famílias indígenas.

Tekoha Guapo’y, Tujury Mirim, área contígua à Reserva Indígena de Amambai

  • 23 de junho de 2022: a retomada de Guapo’y sob o clima de tensão

No dia 23 de junho, indígenas dos povos Guarani Kaiowá retomaram, novamente, parte do território de Guapo’y, no município de Amambai (MS), quando o clima já era de tensão e a ação da polícia e fazendeiros se premeditava.

A reserva de Amambai é a segunda maior do estado de Mato Grosso do Sul em termos populacionais, com mais de dez mil indígenas. Para os Guarani e Kaiowá, Guapo’y é parte de um território tradicional que lhes foi roubado – quando houve a subtração de parte da reserva de Amambai. Os indígenas ainda clamam por atenção e exigem proteção às suas vidas e aos seus direitos.

Ao longo das décadas, estas pequenas áreas – insuficientes para a sobrevivência física e cultural dos indígenas – foram sistematicamente invadidas e dilapidadas. Além de terem sido alijados de seu território de ocupação tradicional em nome de uma política de desenvolvimento lastreada na monocultura, mesmo as diminutas áreas reservadas aos Guarani e Kaiowá pelo SPI foram posteriormente reduzidas e transformadas em áreas sob disputa.

Na reserva de Amambai, os mais de dez mil Kaiowá e Guarani vivem em apenas 2,4 mil hectares. A situação é um exemplo deste contexto de desrespeito à Constituição Federal, que garante aos povos originários o direito à existência e à regularização e proteção dos seus territórios.

  • 24 de junho de 2022: o “massacre de Guapo’y” e a impunidade

No dia seguinte (24), policiais militares e fazendeiros invadiram a área no intuito de expulsar os indígenas por meio do uso da força, mesmo não havendo ordem judicial.

O ataque com uso de armamento letal e não letal deixou dezenas de pessoas feridas. Foto: povos Guarani Kaiowá

A ação violenta da PM por armas de fogo com projéteis letais e não letais (borracha) resultou no assassinato de Vitor Fernandes, 42 anos, – que, inclusive, era uma Pessoa com Deficiência (PcD) – assassinado a sangue frio e em plena luz do dia por agentes da polícia. Além de Vitor, dezenas de pessoas ficaram feridas. Segundo informações do Hospital Regional de Amambai, alguns indígenas estavam com ferimentos por arma de fogo na cabeça e em outras regiões vitais do corpo. Um dos indígenas precisou ser transferido para a UTI de Ponta Porã.

Devido à gravidade e truculência do ataque, os indígenas referem-se à situação como “massacre de Guapoy”. “Foram atacadas crianças, jovens, idosos, famílias que decidiram, depois de muito esperar sem alcançar seu direito, retomar um território que sempre foi deles e que foi roubado no passado de nosso povo”, destaca a Aty Guasu.

Os relatos e imagens do ataque indicam que a PM fez uso de veículos, de armamento letal e não letal e, inclusive, de um helicóptero, utilizado como plataforma de tiro contra as famílias indígenas da retomada. “Tiros em jovens desarmados, violações a pessoas rendidas, disparos de helicóptero, tudo isso inclusive com uso de munição letal deram o tom da covardia levada a cabo por um corpo policial que atuou sem mandado de reintegração de posse”.

“A retomada em si tem esse viés da luta pela recuperação da reserva das terras que foram subtraídas [do povo indígena] e que, por mais de uma década, eles vêm pelejando [para recuperá-las]”, destacou o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Mato Grosso do Sul, Matias Benno. Para ele, as retomadas são, muitas vezes, deslegitimadas e minimizadas pelo estado, como aconteceu no caso de Guapo’y, quando o próprio secretário de segurança quis atrelar a morte do indígena Alex Lopes, de 17 anos, à motivação principal da retomada, omitindo que as terras indígenas foram esbulhadas e que, independentemente da motivação, a polícia agiu com extrema violência ao atirar em crianças, mulheres e idosos.

“As tentativas de retomada no território ancestral de Guapo’y, que já vinham se desenvolvendo ao longo do ano, foram intensificadas após a morte de Alex. Agora, assumimos esse grito [dos indígenas] que é muito legitimo e muito real”, frisou Benno, lembrando também que a força policial, mesmo que usasse apenas balas não letais, de borracha, ainda sim estaria agindo com uma força desproporcional e sem mandado de reintegração de posse, colocando em risco as inúmeras famílias que estavam no local. “Mesmo as armas de borracha sendo tratadas como não letais, há casos de assassinatos de indígenas no estado pelo uso de bala de borracha sendo disparado a queima roupa”, lembrou.

A justificativa apresentada pela Secretaria de Segurança Pública do estado, durante entrevista coletiva sobre o caso, reproduz uma série de preconceitos contra os povos indígenas e não encontra respaldo na realidade dos fatos e, ao contrário do que diz o estado, não se tratou de uma ação de combate ao tráfico de drogas, mas de uma ação de despejo contra uma retomada do povo Guarani e Kaiowá que não poderia ter ocorrido – porque não havia mandado judicial e porque disputas possessórias envolvendo povos indígenas são tema de competência federal, e não estadual.

“Logo na sequência do Massacre, típico de quem se adianta para esconder e acobertar o próprio crime, o secretário de segurança do convocou uma coletiva de imprensa cheia de mentiras e absurdos – chavões antigos que destilam preconceito contra nós, como associação de indígenas com drogas e sendo colocados genericamente como paraguaios – que nem mesmo se sustentam frente as inúmeras imagens que já vão ganhando o mundo. Será que a criança , caída atingida por uma bala de borracha, que consiste em uma das imagens corresponde ao tráfico de drogas?”, questionou a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá Aty Guasu.

  • 27 de junho de 2022: homenagem ao encantado Vitor Guarani Kaiowá

No dia 27 de junho, cerca de 2 mil pessoas marcharam e acompanharam o enterro de Vitor Guarani Kaiowá. A marcha ocorreu após a Defensoria Pública da União (DPU) e o Ministério Público Federal (MPF) realizarem um acordo com o fazendeiro que ocupava a área da retomada dos Guarani e Kaiowá.

Enterro de Vitor Guarani Kaiowa, em Guapoy, Amambai (MS). Foto: povos Guarani Kaiowa

O acordo estabelecido é de que o enterro em cova seja feito até 15 metros da cerca – uma forma de evitar um novo episódio de violência policial e permitindo, assim, que amigos e parentes de Vitor possam visitar o túmulo.

“Desde que o corpo foi liberado, fizeram um velório e mantiveram o corpo, demandando o direito de enterrar sobre o território. E isso é uma questão importante para os povos Guarani Kaiowá. Eles fazem essa ligação: de onde tomba o guerreiro com a questão espiritual de estar plantado sobre a terra tradicional”, afirmou um dos representantes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – que, por segurança, terá sua identidade preservada.

Decisão histórica no estado de Mato Grosso do Sul

A Justiça Federal de Ponta Porã indeferiu, no dia 4 de julho, um pedido para despejar os Guarani e Kaiowá da retomada de Guapo’y, em Amambai (MS). A solicitação foi feita pelo proprietário da fazenda que ocupa, atualmente, a região, que é do território indígena, considerado sagrado para os Guarani e Kaiowá.

No texto da decisão, o juiz explica “não se vislumbra a existência de elementos que descaracterizem o movimento de disputa por terras tradicionalmente ocupadas por comunidades indígenas diante da completa ineficiência estatal em resolver a questão”.

“Na situação dos autos foram colhidos elementos mais do que convincentes a respeito da relevância da discussão promovida pela comunidade indígena, o que justifica pelo menos que recebam a proteção integral e atenção às suas reivindicações, oportunidade a partir da qual poderão ser impelidas a se retirarem do local tomado”, acrescenta.

O advogado e assessor jurídico do Cimi, Anderson Santos, presente na audiência, disse que “o juiz ouviu a preposta do proprietário da fazenda, que se esquivou em dizer de onde surgiu a ordem para que a Polícia Militar atuasse no território, promovendo o despejo e a morte do indígena Vitor Fernandes”. “Tivemos uma decisão rara no estado de Mato Grosso do Sul. Agora, o juiz irá aguardar o andamento do processo para ter melhor fundamentação quanto à reivindicação feita pela comunidade”, explicou o advogado

  • 14 de julho de 2022: mais uma liderança tomba na luta pela recuperação do Território de Guapo’y

Três indígenas Kaiowá-Guarani, na tarde do dia 14 de julho, sofreram uma emboscada violenta por parte de homens armados. O crime resultou no assassinato de Márcio Moreira e deixou duas outras lideranças feridas devido às agressões.

Márcio Moreira

Márcio Moreira e os outros dois indígenas, que por segurança não serão identificados, são lideranças da retomada Guapo’y, em Amambai, no Mato Grosso do Sul. O fato leva os indígenas a apontarem a possível motivação do crime vinculada à retaliação contra a ação de retomada e/ou a repercussão negativa em relação aos polícias e ao Estado, protagonistas do “Massacre de Guapo’y”, como tem sido chamado pelos indígenas.

Os indígenas, inclusive um dos sobreviventes, afirmam que Márcio havia recebido uma proposta de trabalho no ramo da construção civil, o qual demandaria de mais dois serventes de pedreiro para auxiliar na construção de um muro. Conforme relatos dos indígenas, Márcio foi chamado por um conhecido local e, por sua vez, chamou as outras duas lideranças para ajudar no serviço.

Segundo os próprios indígenas, eles foram abordados por dois homens em uma moto, munidos com armas de fogo, e que já chegaram ao local com intimidações e agressões verbais contra os indígenas. Em seguida, realizaram os disparos contra Márcio e as outras duas vítimas. O jovem Guarani Kaiowá, que conseguiu fugir do local, conta que foi segurado e os três foram intimidados.

“Nos intimidaram com as balas, mostraram pistola de cano curto e bateram em nós, jogando no meio dos caraguatás [planta espinhosa], em seguida atiraram no Márcio e nos deitamos, como a munição acabou, eles nos bateram com a arma, e eu fugi deles”, relata um dos sobreviventes.

Após os disparos, houve luta corporal e um dos indígenas conseguiu fugir do local, o outro foi ao hospital de Amambai para atendimento. Márcio correu cerca de 100 metros sangrando, mas não resistiu aos ferimentos e morreu.

Segundo o corpo de bombeiros, que atendeu a ocorrência, ao chegar ao local Márcio já estava sem vida. Foram identificadas pelo menos duas perfurações: uma de arma de fogo no ombro, e outra de arma branca no tórax, o que reforça as denúncias dos sobreviventes sobre a luta corporal após os disparos de arma de fogo.

Os Guarani e Kaiowá suspeitam que o ataque possa ter sido planejado para assassinar as três lideranças do tekoha Guapo’y. “Não se tratou de trabalho, foram recebidos já com agressões. Foi uma emboscada para assassinar os três, uma chacina”, destacou a Aty Guasu – a Grande Assembleia dos povos Guarani e Kaiowá.

O caso segue sob investigação. A suspeita é de que haja relação com os recentes conflitos de terras, envolvendo indígenas e fazendeiros da região, em Amambai (MS)

Território ancestral Kurupi/Santiago Kue, em Dourados Amambai Pegua II, Naviraí, Mato Grosso do Sul

  • 23 de junho de 2022: pesado ataque armado pós retomada de Kurupi/Santiago Kue

Logo após a retomada de Kurupi/Santiago Kue, os indígenas sofreram um pesado ataque armado, que acontecia ao mesmo tempo em que ocorria o ‘Massacre de Guapo’y’. Entre seus agressores, fazendeiros, jagunços e integrantes da PM – esses últimos, inclusive, postaram vídeos em redes sociais comemorando a ação de despejo ilegal. O ataque em Naviraí começou ainda na madrugada da última quinta-feira (23) e se estendeu até o início da manhã seguinte, resultando no desaparecimento de três pessoas – que foram encontradas dias depois.

Os indígenas relatam a intensidade dos disparos efetuados por arma de fogo e denunciam que, por muito pouco, não ocorreu um segundo massacre, na mesma manhã que ocorria o de Guapo’y.

Acampados há pelo menos duas décadas na beira da BR-163, cerca de 28 famílias Kaiowá e Guarani, do território de Kurupi/Santiago Kue, estão sob a mira de policias, fazendeiros e jagunços há pelo menos cinco dias – sofrendo ataques e cercos diários, envoltos em clima de terror.

Após o primeiro ataque, os cercos e disparos foram incessantes e diários, os ataques têm sido proferidos contra o pequeno acampamento Kaiowá e Guarani espremido entre as fazendas e a BR-163. No domingo (26), ao alvorecer, disparos foram efetuados contra a comunidade, que buscou dissuadir os policias e fazendeiros com gritos e barulhos.

Já na segunda-feira, dia 27, indígenas denunciam que unidades policias se instalaram dentro da Sede da Fazenda Tejui e, de lá, passaram a organizar momentos de disparos contra a comunidade, um desses flagrado por meio de gravações de vídeos – os tiros são claramente escutados. Novamente, nesse caso, os indígenas saíram até o limite do acampamento para tentar impedir um possível deslocamento dos fazendeiros e policiais até o local onde estão suas famílias.

Infelizmente, ataques ilegais efetuados por policias, sejam eles despejos sem ordem de reintegração de posse ou cercos e disparos contra comunidades, têm se tornado evento cotidiano no estado de Mato Grosso do Sul. Em razão disso, e pela vulnerabilidade do local onde os indígenas de Kurupi se encontram, a comunidade segue pedindo socorro e atenção das instâncias responsáveis.

Ataques se somam a histórico de violações

Infelizmente, os últimos ataques protagonizados pelos policiais e fazendeiros não são as primeiras violações conhecidas pelos indígenas de Kurupi. Os indígenas esperam acampados há duas décadas a publicação de um Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), já concluído pela Fundação Nacional do Índio (Funai). O ato em si já é uma terrível violação aos Direitos Humanos e Indígenas, uma vez que, sem seu território, os Guarani e Kaiowá encontram-se em péssimas condições de vida e vêm passando por longos períodos de fome. Tendo o território negligenciado, ficam à mercê de inúmeros ataques.

Desde que voltaram a ocupar o território, os Guarani e Kaiowá estão sofrendo diversas ameaças e ataques. Na manhã do dia 1 de julho, caminhonetes, com homens fortemente armados, voltaram às redondezas da retomada para efetuar disparos de armas letais contra os indígenas.

A equipe do Cimi recebeu um relato de que os indígenas da retomada estão sendo “caçados” por policiais militares. “A nossa família está sendo ‘caçada’ pelos [policiais] ‘militares’, é uma ‘caça humana’. Querem nos encontrar, nos torturar até a morte. Pisando na cidade, podemos ser pegos e executados. Eles estão procurando a gente por todos os lugares, querem nos matar”, afirma um Guarani e Kaiowá – que não terá a sua identidade revelada por questão de segurança. Infelizmente, esse relato reforça como os indígenas do estado se sentem – acuados e monitorados constantemente – perante a ação da polícia, de fazendeiros e apoiadores do agronegócio em Mato Grosso do Sul.

Testemunhas contam também que aviões estão sobrevoando o território, dando rasantes e lançando fogos de artifício – assustando toda a comunidade, principalmente as crianças que estão no local.

Os Kaiowá e Guarani denunciam que, se os invasores conseguirem entrar no acampamento, haverá um conflito inevitável com possibilidades de um novo massacre, como ocorrido em Guapo’y, em Amambai (MS). Pelo histórico de outros ataques em Mato Grosso do Sul, os indígenas temem que os policiais, fazendeiros e seus aliados estejam testando o nível de ação das autoridades, chegando cada dia mais perto da comunidade.

Share this:
Tags: