Equipe Itinerante realiza encontro para refletir e alcançar, com a missão, as comunidades mais vulnerabilizadas e distantes da Amazônia
Unidade, diversidade e relação entre si e com os povos da Amazônia são as três dimensões que movem a Equipe Itinerante em sua missão
“As equipes itinerantes estão inseridas onde as feridas estão mais abertas. A itinerância tenta escutar aquela realidade mais afastada, mais oculta, mais ameaçada, mais invisibilizada para, a partir do viver com ela, começar a visibilizar essa realidade e conectá-la aos serviços institucionais, a serviços de inserção para que a vida seja defendida”.
Assim explica Pe Fernando Lopes, jesuíta e um dos formadores da Equipe Itinerante, sobre a missão da itinerância amazônica. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Regional Norte I faz parte dessa equipe que navega pelos rios da Amazônia desde 1996, quando Pe Claudio Perani, jesuíta e educador popular, idealizou a proposta da itinerância e incentivou “um grupinho de gente que chegasse onde as instituições e ações missionárias não chegavam, caminhar com o povo em defesa da vida e, então, articular as instituições para se chegar com incidências”.
“As equipes itinerantes estão inseridas onde as feridas estão mais abertas”
Fazer essa memória de objetivos, avaliar, planejar e trocar conhecimentos e experiências, bem como abraçar e trocar afetos e cuidados, para fortalecerem-se individual e coletivamente, são as atividades dos encontros que todo ano a Equipe Itinerante realiza.
Esse ano reuniram-se em março, em um primeiro encontro presencial após a pandemia, e nos dias 20 a 27 de agosto se reencontraram, no Centro de Formação Xare, do Cimi Regional Norte 1, em Manaus (AM), sob o tema “Da colonialidade ao diálogo intercultural: em nós, entre nós e com os povos”.
Na sequência, dias 29 a 31, com o tema “Sinodalidade e Itinerância”, responsáveis pelas instituições representativas uniram-se a eles para ouvir os resultados das ações, contribuir com os novos planejamentos e, assim, manter a institucionalidade que dá sustento à missão.
“Fazer essa memória de objetivos, avaliar, planejar e trocar conhecimentos e experiências, abraçar e trocar afetos e cuidados, para fortalecerem-se, são as atividades dos encontros”
Compreendendo essa matriz missionária como “uma matriz política, sociológica, de articular instituições e inserções que necessitamos como seres humanos para nos dar continuidade”, Pe Fernando diz que “escutar o que as pessoas têm a dizer, compreender seus olhares, seu amor e seus desejos sobre o mundo para, então, proporcionar a inserção e a institucionalidade é o desafio da itinerância”.
Desafio aceito por Raimunda Paixão, conhecida como a Rai do Cimi (é missionária do Cimi Regional Norte I desde 1988), quando recebeu o convite em 2004, para integrar a Equipe Itinerante no núcleo de Tabatinga, no alto rio Solimões, região da tríplice fronteira Brasil, Peru e Colômbia, lugar de “muitas feridas abertas”.
“Com as visitas que se fazia na itinerância, a equipe foi descobrindo que necessitava ir para as fronteiras, ir mais longe onde as feridas estavam mais abertas. Aceitei o desafio, no início com certo temor, mas com fé no mistério da missão e seguindo as orientações de Pe Claudio que dizia ‘escutem o povo da Amazônia, participem da vida do povo. Anotem o que o povo fala, tanto seus clamores como suas alegrias’. Então, a partir da escuta, geramos processos com eles e a partir deles. Por exemplo, eles dizem ‘estamos precisando de vocês para formação sobre os nossos direitos indígenas’. A gente vai lá com os direitos indígenas. Se eles dizem, ‘estamos precisando entender melhor a saúde’. Vamos lá trabalhar a saúde com eles”, conta Rai.
“Com as visitas que se fazia na itinerância, a equipe foi descobrindo que necessitava ir para as fronteiras, ir mais longe onde as feridas estavam mais abertas”
Somos unidade, diversidade e relação
Para Pe Fernando também foi um desafio “adentrar na Amazônia”. Conta ele que quando Pe Cláudio abriu o mapa da Amazônia e disse que aquele era o território onde a Equipe Itinerante deveria atuar, precisou “pedir um tempo para pensar e rezar”. O tamanho do território assustou, mas impulsionado pela força amazônica, ele e sua equipe subiram o rio Solimões até Tabatinga e interagiam com as comunidades. Ao retornarem, conta, “Pe Claudio sentava conosco como um mestre e nos ajudava a refletir sobre o que fazer. Sempre falando: ‘Escutem o que o povo fala. Se preocupem com os problemas do povo. Não se preocupem com o resultado, o Espírito irá mostrar um caminho”.
Um dos caminhos, diz Pe Fernando, foi aprender com o Cimi a atuar com os povos indígenas. Perguntou a Egydio Schwade, missionário precursor da instituição, se era possível a equipe itinerante atuar com os povos originários e ouviu a empolgante resposta: “foi assim que nasceu o Cimi, andando por todo o território amazônico e dizendo ‘temos que ir junto, apoiar as assembleias indígenas e ouvir o que os povos têm a dizer”.
“Foi assim que nasceu o Cimi, andando por todo o território amazônico e dizendo ‘temos que ir junto, apoiar as assembleias indígenas e ouvir o que os povos têm a dizer”
Animado pelo incentivo de Pe Cláudio e do Cimi, o jesuíta compreendeu que “a Amazônia é onde se vive o mistério das dores e alegrias dos povos originários, onde tudo está conectado, e que somos o movimento da unidade, da diversidade e da relação” diz, explicando que cada pessoa é única em sua vida e, com sua singularidade, está em permanente relação e conexão. “Tudo está em conexão, a vida é parte dessa diversidade. Entendo que os povos indígenas vivem essa conectividade e têm muito a nos ensinar. É como diz Papa Francisco: ‘Eles são os interlocutores fundamentais para encontrar novos caminhos do cuidado’. Por isso, devemos estar com eles em suas lutas”.
Esses ensinamentos estão no centro da Equipe Itinerante. O cuidado consigo para o cuidado com o outro é o fio condutor das mais de 100 pessoas e 50 instituições que já passaram pela equipe nesses quase 25 anos de itinerância. “Sua maior riqueza é a diversidade que gera vida”, congratula.
“A Amazônia é onde se vive o mistério das dores e alegrias dos povos originários, onde tudo está conectado”
O institucional cuida da equipe
Os encontros da Equipe Itinerante acontecem em dois momentos, um com apenas os membros das equipes e outro com as instituições representadas. As etapas têm ações diferenciadas, mas um objetivo em comum: cuidar de si e cuidar do outro. Irmã Antônia Mendes Gomes, da Congregação Irmãs de Nossa Senhora do Calvário explica a metodologia: “A equipe se reúne para um processo de formação, avaliação e para sonhar juntos os próximos passos. Depois, temos o encontro com as nossas instituições para que possam nos ouvir e nós as escutarmos. As instituições que representamos são o suporte da Equipe Itinerante”.
Concordando, Pe Fernando compara a necessidade das instituições com a floresta. “Importantes porque precisam articular-se entre elas, como a floresta se articula em sua diversidade. Com articulação temos uma capacidade de incidência tremenda”, analisa.
“A equipe se reúne para um processo de formação, avaliação e para sonhar juntos os próximos passos, as instituições que representamos são o suporte da Equipe Itinerante”
Substancial é a definição do coordenador do Cimi Regional Norte I, Francesc Conelles, o Chiquinho: “o trabalho da Equipe Itinerante tem se mostrado complementário aos trabalhos do Cimi, podendo atingir comunidades e territórios indígenas onde não há presença de nossas equipes locais e não têm pés para alcançar. Assim, articulados, fortalecemos mais comunidades. O Cimi continuará apoiando e caminhando com a Equipe Itinerante neste momento de 25 anos de atuação”.
As Filhas de Maria Auxiliadora (FMA), as Irmãs Salesianas, integram institucionalmente a Equipe Itinerante desde a proximidade do Sínodo da Amazônia, diz Irmã Carmelita Conceição: “nós somos hoje uma província bem presente na Amazônia. E com a proximidade do Sínodo pudemos ter a irmã Cláudia nos representando. Com ela e com a experiência com as mulheres, crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade que acompanhamos, continuaremos na itinerância”.
“O trabalho da Equipe Itinerante tem se mostrado complementário aos trabalhos do Cimi”
A ex-aluna salesiana, Ana Cláudia Menezes, de Manicoré (AM), da Juventude Missionária Salesiana (JMS) acredita no trabalho da itinerância. “Vamos nos fortalecer e vamos acreditar que nós podemos mudar essa realidade que está matando nossos povos”.
Irmã Sueli Bellato, da Congregação de Nossa Senhora Cônegos de Santo Agostinho, analisa a realidade pelo contexto político do país e do descaso e negligência do Estado e atribui o pertencimento da Equipe Itinerante a toda a sociedade, especialmente da igreja. “A missão da Equipe Itinerante não deve ser vista como só dela. Ela é da sociedade brasileira, da igreja. E nós que compomos essa igreja, precisamos apoiar seus trabalhos de escuta, principalmente daqueles que ninguém ouve, as políticas públicas não ouvem, o Estado brasileiro não ouve. A itinerante, escuta e transmite seus gritos. Não fazemos o papel do Estado, mas podemos buscar os meios e os recursos para apoiar essa equipe a ir cada vez mais longe”.
“Vamos nos fortalecer e vamos acreditar que nós podemos mudar essa realidade que está matando nossos povos”
A equipe cuida da equipe
O momento destinado apenas aos membros da equipe foi de formação individual e coletiva, para o fortalecimento espiritual, psicológico, emocional e racional. “Um fortalecimento a partir da unidade que compõe a diversidade e mantém a relação”, de acordo com as três dimensões explica Pe Fernando.
Para estimular a reflexão, a teóloga e consultora independente, indígena do povo Quéchua, da Bolívia, Tânia Ávila, trouxe elementos dos conceitos de colonização e decolonização para um grupo multicultural que atua com multiculturalidade. “Trabalhamos a decolonização do SER, do PODER e do CONHECIMENTO. Desaprender aquilo que não lhe permite itinerar com liberdade, não apenas uma itinerância física, mas também espiritual para fazer uma itinerância interna”, esclarece e enaltece a abertura para o aprendizado.
“Trabalhamos a decolonização do Ser, do Poder e do Conhecimento”
“A equipe tem a disponibilidade incrível de aprender, e sobretudo, de reaprender-se transformando-se e transformando o espaço onde está. Decolonizar o conhecimento, o poder e o próprio ser, frutos de nossas famílias, instituições, Estado, que nos limitam e não nos permitem ver o quanto somos valiosos na diversidade. Só quando podemos ver o quanto valemos como seres humanos, podemos dialogar com a outra pessoa de forma horizontal, inclusiva”, explica Tânia.
Belém Torrez, da família eclesial da Fraternidade Missionária Verbum Dei, enaltece a autocura: “precisamos parar, ouvir a nós mesmos, e ver o que está dentro, curar feridas, melhorar, treinar. Porque se eu não souber me ouvir, se eu não deixar o outro vir e me ajudar, me dar luz, corro o risco de repetir meu padrão, minha maneira de ver e sentir as coisas. É perigoso ver a vida só da minha visão, é pior se eu tiver feridas internas que não superei. Dentro de nós temos outras pessoas, outras culturas, outras realidades e crenças positivas”, celebra.
Reconstruir o olhar sobre as culturas é outro passo para a decolonização. “Ter disponibilidade para ouvir com todo o seu ser, não só com os ouvidos, as outras culturas com as quais se relacionam é um exercício mais profundo, de grande Koinonia [comunhão] e permite reconhecer as outras culturas quando se for até elas”.
“Ter disponibilidade para ouvir com todo o seu ser, não só com os ouvidos, as outras culturas com as quais se relacionam é um exercício mais profundo”
Voluntariado e Projetos
No município de Maués (AM), uma das demandas trazidas pela escuta com capacidade de unir sonhos, foi o projeto de energia renovável, que é acompanhado pela missionária leiga Maria Belmar, a Marita, da paróquia Santo Inácio de Porto Rico. Na perspectiva da visão integral do território, Marita explica que o projeto beneficiará diferentes grupos que possuem a mesma necessidade: ter energia sustentável para o desenvolvimento de seus trabalhos.
“O que tem a ver placas solares com um barco híbrido [movido a energia solar], que está se trabalhando com placas solares ou com os indígenas Sateré-Mawé e ribeirinhos?”, desafia Marita, explicando que a partir da necessidade dos produtores de guaraná foi possível planejar e projetar energia renovável nas indicadas estruturas das comunidades.
“O guaraná, produto local, além de sagrado traz geração de renda”
“O guaraná, produto local, além de sagrado traz geração de renda. Conseguimos acompanhamento de diferentes instituições, como a UFAM [Universidade Federal do Amazonas] e o Sares, para sua exportação. Mas, parte do processo requer energia. Aí veio a ideia das placas solares. Depois, ampliou-se para o barco e para a Barreira de fiscalização que os Sateré Mawé colocaram no tempo da pandemia e continua funcionando. Então, as placas solares que tinham começado só numa comunidade, agora está planejada em outras três comunidades”, conta Marita.
A ideia é também promover formação técnica sobre o sistema de energia fotovoltaico. “Não adianta ter só placas solares, se com uma tormenta tudo pode acabar porque não se sabe consertar. Então, a ideia é que as pessoas dominem a tecnologia, aprendam sobre funcionamento e manutenção do sistema”, reforça.
“Não adianta ter só placas solares, se com uma tormenta tudo pode acabar porque não se sabe consertar”
Na região de Maués, outros projetos já foram realizados, como cuidados com a saúde, plantas da flora local e direitos indígenas, todos partindo da necessidade das comunidades. “Eles dizem que isso tem ajudado a retomar ou fortalecer o sonho de seus ancestrais, do cuidado com o seu lugar e as pessoas. Então, todos estes projetos não são só coisas que vêm de fora, mas somam no cuidado do território, da natureza e de todos os seres que nela habitam. Mulheres e homens partilhando seus conhecimentos e reforçando seus saberes”, congratula.
Em outa realidade, essa agora urbana, a Equipe Itinerante abraça a Capoeira Itinerante, que traz a história da ancestralidade das pessoas que foram escravizadas no período da colonização europeia. Como expressão de liberdade e afirmação da cultura africana, a capoeira colabora com a vida de crianças, jovens e adultos, valoriza a pessoa, a coletividade e suas relações, princípios fundantes da Equipe Itinerante. Ney Valente, um dos integrantes da Capoeira Itinerante explica que “ela traz esperanças para muitas crianças da periferia e que, com muitos desafios, ela chega onde ninguém quer estar, sem esperar resultados. A espiritualidade vai nos guiando e trazendo os resultados. Essa é a mística que une a Capoeira à Equipe Itinerante”.
“A espiritualidade vai nos guiando e trazendo os resultados, essa é a mística que une a Capoeira à Equipe Itinerante”
O voluntário Davi Jacue, que veio da Espanha para contribuir com a parte administrativa e contábil do projeto da Capoeira Itinerante, em Manaus, chegou na Amazônia com ideias diferentes do que vê agora. “Antes de chegar, eu pensava que aqui era só rios e florestas. Cheguei em Manaus e fui morar no bairro Compensa. Uma realidade dura, de violência, alcoolismo, desemprego e muito tráfico. Mas, uma população que tem valores e que busca possibilidades de vida. A Capoeira Itinerante tem contribuído com essas vidas”, atesta, com grata satisfação pela oportunidade pessoal e profissional de contribuir com a Equipe Itinerante e com as pessoas esquecidas e desprezadas pela sociedade e pelo Estado.
Unidade, diversidade e relação. Três dimensões presentes na Itinerância de pessoas que vão ao encontro de vidas, amparando e cuidando para que brilhem e vivam sua plenitude. Tânia também atesta a eficácia das dimensões que a Equipe Itinerante abrange em suas ações. “Eles e elas são uma grande equipe! Com todas as suas diferenças, com toda a diversidade. São o time mais feliz que conheço. E que desfrutam de sua missão, sua itinerância e da possibilidade de incidir sobre os outros povos e aprender com outros povos”, consagra.