05/08/2022

O porco do mato que quase virou churrasco

Texto da coluna “Causos e Casos”, um especial do Jornal Porantim em comemoração aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário

Por Egon Heck * – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 446 DO JORNAL PORANTIM

Em uma das missões de mochileiro, estava planejado um giro por terras indígenas de Rondônia. Havia sido noticiado uma massiva invasão do Igarapé Lourdes, dos índios Surui. Conforme informações correntes, havia um clima de guerra na região. Os índios estavam dispostos a impedir a continuidade da invasão e expulsão dos invasores de sua terra. Achamos que seria importante levarmos nosso apoio solidário.

Um representante da Comissão Pastoral da Terra – CPT estava indo conosco. Também um indígena ia conosco. Após várias horas de caminhada pela mata estávamos chegando próximo à aldeia. De repente vimos um porquinho do mato. Como não tínhamos nada para abater a “caça”, decidi dar uma investida pessoal para tentar agarrar o animal. Fui me aproximando do anima e dei um mergulho me jogando sobre ele. Fui feliz na investida. Decidimos que levaríamos o porquinho, que serviria como salva conduto na nossa chegada. Imaginávamos que ao chegar com alimentação, teríamos uma recepção honrosa.

Ao chegarmos na aldeia, grupos de guerreiros com as flechas apontadas. Eles imediatamente mandaram colocar tudo no chão. E que soltássemos o porquinho, que era animal de estimação da aldeia. Ficamos um tanto perplexos, pois tudo estava dando o contrário do que imaginávamos. Formaram um tipo cordão polonês, ordenando que seguíssemos para a aldeia. Falaram que sabiam que nós éramos invasores. Com calma, mas meio atônitos, fomos seguindo as ordens. Apesar de nosso esforço em explicar que não éramos parte dos invasores, ao contrário, estávamos indo aí com eles para levar nossa solidariedade e apoio, eles em nenhum momento pareciam crer em nossas explicações. Nos conduziram a uma casa, sempre com as flechas apontadas sobre nós. Não demorou e veio a primeira ordem “vocês não vão sair daqui, só se a Funai vier aqui”. Foi um frio na barriga.

Nós estávamos numa relação conflitiva com a Funai. Apoena Meireles era o chefe da ajudância regional de Rondônia. Soubemos depois que duas semanas antes eles haviam prendido uns funcionários de uma empresa que estavam fazendo levantamento para construir uma PCH, pequena central elétrica.

A noite foi dramática. Cada pouco vinha guerreiros com pressão psicológica sobre nós, e que a nossa soltura só aconteceria se a Funai viesse ali. Pedimos se haveria condições de nos comunicarmos com o Apoena. Falaram que tinha radiofonia, mas só haveria condições de contato no outro dia.

As horas e minutos foram longos.

Qual não foi nossa surpresa e satisfação ao ouvimos, pela meia manhã, o ronco de avião. Não demorou e lá estava pousando um avião. Fomos até a pista para recepcionar as esperadas pessoas da Funai. Nunca esperávamos com tanta ansiedade funcionários da Funai. Os índios conversaram por algum tempo com os funcionários e disseram que o avião já iria retornar, que entrássemos no avião para ir embora.

Ficamos com o coração aliviado. Um final bem diferente do que imaginávamos no momento de apreender o porquinho que poderia virar churrasco.

 

Causos e Casos

Iniciada na edição de abril de 2021, a coluna “Causos e Casos” é um especial dos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário que traz textos assinados por Egon Heck e Egydio Schwade, dois dos fundadores do Cimi e militantes da causa indígena brasileira antes mesmo da criação da entidade. É a comemoração do cinquentenário por meio do reconhecimento da contribuição do Cimi para o desenvolvimento da causa indigenista a partir de seus missionários e missionárias, aqui representados por Egon Heck e Egydio Schwade, figuras históricas de luta que contribuem fortemente para a atuação missionária junto aos povos originários, dando um novo sentido ao trabalho missionário da igreja católica.

As histórias da “Causos e Casos”, escritas especialmente para esta coluna, mostrará que a atuação missionária, além de favorecer a articulação entre aldeias e povos, promovendo as grandes assembleias indígenas, onde se desenharam os primeiros contornos da luta pela garantia do direito à diversidade cultural; também fomenta espaços políticos e estratégias para o fortalecimento do protagonismo indígena.

Egon Heck e Egydio Schwade relatam causos e casos com propriedade, pois, desde os primórdios, fizeram parte das linhas de ação do Cimi, sendo impossível separar suas vidas da causa indígena brasileira. Engajados com as comunidades desde a juventude, eles compartilham dos mesmos sentimentos dos povos originários e adotaram a causa como parte integral de suas trajetórias.

 

________

*Egon Heck é ex-padre, formado em Teologia e em Filosofia, com pós-graduação em Ciência Política e lutou, e ainda luta, bravamente ao lado de comunidades indígenas em todo o país, contrariando toda carga cultural e ideológica de preconceito contra os povos indígenas a que esteve exposto em sua própria família e diante da política de inúmeros (des)governos.

Share this:
Tags: