A perda de Bruno Pereira e Dom Phillips evidencia o desmonte da política indigenista durante governo Bolsonaro
Organizações indígenas e indigenistas denunciam sistematicamente o desmonte dos órgãos e das políticas públicas de proteção aos territórios indígenas, que vitimizam diariamente a floresta, seus povos e aliados
Ainda ecoa pela floresta a perda do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, assassinados numa emboscada na região do Vale do Javari, em Atalaia do Norte, localizado no Estado do Amazonas, no dia 5 de junho. Ambos investigavam atividades ilegais e predatórias na região do Vale do Javari e empenharam suas vidas na defesa dos povos indígenas e pela apuração e disseminação de informações de qualidade. Perdas que escancaram os problemas de segurança, proteção ambiental e respeito aos povos originários e que fazem parte de um contexto de aumento de violência na região Amazônica, especialmente no Vale do Javari. Vidas destruídas pelo narcotráfico, pela caça clandestina, pela ganância, pelo ouro e pelo agronegócio, que ameaçam diariamente a vida dos povos na região, como os Marubo, Matís, Mayoruna, Kanamari, Kulina e os de recente contato Tyohom Djapá e Korubo.
“Bruno e Dom estavam realizando uma atividade de necessidade dos povos indígenas daquela região [Vale do Javari], mas tivemos um resultado terrível. É importante colocar como ponto principal a ineficiência dos órgãos públicos perante casos como esse, sobretudo a Funai. Gostaria também de ouvir o Ministério Público Federal [MPF]. O que fizeram com as tantas denúncias que fizemos?”, indagou Eliesio Marubo, representante da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), durante uma audiência pública realizada no dia 22 de junho, no Senado Federal. Marubo se referia às inúmeras denúncias feitas sobre as sistemáticas invasões na TI Vale do Javari por garimpeiros, madeireiros, narcotraficantes, pescadores caçadores, que se sentem respaldados e empoderados diante da negligência e do permanente ataque aos direitos indígenas por parte do governo federal.
O indigenista Bruno Araújo Pereira, licenciado da Funai (Fundação Nacional do Índio) e consultor da Univaja, atuava na região na tentativa de sensibilizar as comunidades ribeirinhas a explorarem de forma legal a pesca local, atividade financiada e usada na região para lavar dinheiro do narcotráfico. Ele buscava transformar as comunidades em ponto de monitoramento do território demarcado, já que as comunidades próximas à TI Vale do Javari são muito vulneráveis à presença de invasores que têm interesse na comercialização ilegal de recursos naturais. O indigenista, e todos os que buscavam atrair os ribeirinhos dessas comunidades para a legalização, vinham recebendo ameaças constantes por parte de pescadores que praticam de maneira ilegal a retirada diária de toneladas de peixes cobiçado nos rios da Amazônia (pirarucu e tracajás).
A influência do narcotráfico na região, junto a pesca local, financiando atividades de exploração ilegal da floresta, entretanto, é de conhecimento das autoridades locais, assim como os frequentes assassinatos de indígenas, quilombolas, ribeirinhos, camponeses, indigenistas, ambientalistas. E, mesmo diante da ciência das violências da região, nada foi feito até então.
“Quantos mais ‘Brunos’ e ‘Doms’ precisarão morrer? Temos que andar com segurança, com carro blindado. Isso não é vida. Não estamos pedindo nada demais, só queremos ter acesso a todas as garantias constitucionais. Apenas isso. Continuaremos de cara limpa brigando pelos nossos parentes e exigindo que o Estado cumpra sua obrigação”, desabafou Eliesio Marubo, ainda durante a audiência pública no Senado Federal.
Beto Marubo, da Univaja, em uma carta de despedida a Bruno Pereira, seu amigo pessoal, ressaltou que, mesmo após um mês dos assassinatos e apesar das ações judiciais, articulações parlamentares e mobilizações de funcionários, “a omissão, a inação, a política negacionista e a ausência total do Estado” continuam no Vale do Javari. Ou seja, governo federal não tomou nenhuma medida que possa garantir a segurança dos moradores e indigenistas os servidores continuam recebendo ameaças, diretas e veladas, de invasores.
Relembre o caso
Segundo texto divulgado pela Univaja, Bruno Pereira e Dom Phillips saíram as 6h da manhã do dia 5 de junho, um domingo, rumo à equipe de Vigilância Indígena, localizada perto do “Lago do Jaburu”, próximo também à Base e Vigilância da Fundação Nacional do Índio (Funai), no rio Ituí, onde o jornalista iria realizar algumas entrevistas com os indígenas. Antes de chegarem ao destino final, pararam na comunidade São Rafael, onde foram vistos pela última vez. No local, eles conversaram com a esposa do líder comunitário apelidado de ‘Churrasco’. De lá, eles seguiram viagem pelo rio Itaquaí em direção a Atalaia do Norte, viagem que dura aproximadamente duas horas, mas não chegaram ao destino e desapareceram no trecho. Eles viajavam com uma embarcação nova, de 40 cavalos, e 70 litros de gasolina, o suficiente para a viagem. Ainda no domingo, a Univaja começou as buscas. Sem sucesso, a instituição buscou pelas autoridades policiais competentes e de fiscalização para que ajudassem na procura.
Em coletiva à imprensa, o assessor jurídico da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), Yura Marubo, disse que apesar de a instituição ter feito o papel de comunicar o desaparecimento, o retorno foi tardio. “E mesmo não esperando nenhuma ação, tanto do governo federal quanto do Governo do Estado, [a Univaja] tomou as medidas cabíveis para procurar, por conta própria, a pessoa de Bruno Pereira e Dom Phillips”, frisou Marubo, destacando que a busca ativa somente aconteceu após a pressão da mídia internacional sobre o desaparecimento.
Posteriormente, indígenas de diferentes etnias guiaram as equipes oficiais integradas por homens da Polícia Federal, Exército e Marinha. “Esse trabalho tem se concentrado abaixo da Comunidade Cachoeira e envolve todas as etnias que estão no Vale do Javari. Os Marubos estão atuando, os Maiurunas encontraram a entrada no igapó que pode ter sido feita por uma embarcação. Os Matis encontraram os pertences. Temos também os Kanamaris e os Kulinas fazendo as buscas por terras. Então, é um trabalho em conjunto”, destacou Yura Marubo.
Um dos grupos de indígenas também foi responsável por encontrar o barco de Amarildo da Costa Oliveira, o “Pelado”, até então investigado pelo desaparecimento. No domingo, dia em que o indigenista e o jornalista desapareceram, ele foi visto por ribeirinhos passando no rio logo atrás da embarcação dos dois, no trajeto entre a comunidade ribeirinha São Rafael e a cidade de Atalaia do Norte. A prisão temporária dele foi decretada pela Justiça somente na quinta-feira (9), quatro dia após o desaparecimento, quando amostras de sangue foi encontrada na lancha de Oliveira.
Segundo Yura, as equipes de indígenas que participam das buscas foram treinadas pelo próprio indigenista Bruno Pereira. “Chegaram equipamentos, como telefones via satélite de última geração, e esse equipamento está com essa nossa equipe que foi treinada pelo próprio Bruno. Além disso, a gente também conta com outros georreferenciamentos e vamos investir em tudo o que a gente pode para acha os dois”, disse. Yura Marubo ressaltou ainda que a região não tem o poder de polícia instalado e que recai aos povos indígenas e à organização indígena o papel de fazer a fiscalização, o controle, a apreensão, a apresentação desses criminosos junto às autoridades. “Ou seja, o papel desses lugares isolados está invertido. O Estado brasileiro não tem poder nesses locais, porque não está presente”, lamentou, relatando que os problemas na terra indígena já acontecem há, aproximadamente, quatro décadas.
No 12 de junho (domingo), uma semana do desaparecimento, um cartão de saúde com nome de Bruno e outros itens dele e de Dom Phillips, como mochila, notebook e um par de sandálias, foram encontrados na área das buscas. No dia 14, terça-feira, a Polícia Civil informou que já havia ouvido nove pessoas no inquérito que investigava os sumiços, sendo oito testemunhas e um suspeito, o “Pelado”. No mesmo dia a Polícia Federal confirmou a prisão temporária de Oseney da Costa de Oliveira, conhecido como “Dos Santos”, irmão de “Pelado”.
Após onze dias de buscas, no dia 15 de junho, os corpos foram encontrados. Amarildo (“Pelado”) confessou estar envolvido no assassinato do indigenista Bruno Araújo Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips e indicou para as equipes de busca o local aonde estariam os corpos dos desaparecidos. O indigenista Bruno Pereira já havia cruzado com os dois em momentos anteriores na região, onde flagrou Amarildo e o irmão realizando pesca ilegal.
Amarildo relatou em depoimento que o assassinato foi realizado por disparo de arma de fogo, com tiros na cabeça e no tórax. No dia posterior ao crime, ele e o irmão resolveram incendiar os corpos, esquartejá-los e enterrá-los para dificultar a busca. O exame médico-legal feito pelos peritos apontou que as mortes foram causadas por “por disparo de arma de fogo com munição típica de caça”.
O crime foi declarado oficialmente ainda na quarta-feira (15), numa coletiva que reuniu Polícia Federal, Polícia Civil, Polícia Militar, Exército e Marinha – enquanto que os indígenas e a Univaja, que participaram ativamente de todas as buscas e foram imprescindíveis para a localização dos corpos, não foram sequer citados. Restou a uma jornalista representante de um veículo de imprensa internacional o questionamento ao superintendente da PF sobre a ausência: “Os indígenas ajudaram muito nas buscas e nada foi mencionado sobre os esforços que eles empenharam”. O jornalista André Trigueiro durante um programa da Globo News destacou que “o desprezo histórico oficial do Brasil pelos indígenas se materializou nessa coletiva”, e complementou: “Esse desprezo histórico pelos indígenas, que o Brasil oficial reproduz, desde a chegada dos portugueses, e chegou ao século XXI, era contra o que Bruno Pereira lutava”.
No dia 18 de junho, foi preso o terceiro homem suspeito de envolvimento no crime, Jeferson da Silva Lima, conhecido como “Pelado da Dinha”. Ele é apontado como alguém que participou diretamente do duplo homicídio e ajudou na ocultação dos corpos.
Já no dia 21 de julho, mais de um mês após as mortes, o Ministério Público Federal denunciou Amarildo da Costa Oliveira (conhecido pelo “Pelado”), Oseney da Costa de Oliveira (“Dos Santos”) e Jefferson da Silva Lima (“Pelado da Dinha”) por duplo homicídio qualificado e ocultação de cadáver pelos assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips. No documento, o MPF explica que Amarildo e Jefferson confessaram o crime, enquanto Oseney teve a participação comprovada por depoimentos de testemunhas. A denúncia traz ainda prints de conversas e cita os resultados de laudos periciais, com a análise dos corpos e objetos encontrados.
Responsabilização
Em nota, A União dos Povos Indígenas do Vale do Javari disse que “compreende que o assassinato de Pereira e Phillips constitui um crime político, pois ambos eram defensores dos Direitos Humanos e morreram desempenhando atividades em benefício de nós, povos indígenas do Vale do Javari, pelo nosso direito ao bem-viver, pelo nosso direito ao território e aos recursos naturais que são nosso alimento e garantia de vida, não apenas da nossa vida, mas também da vida dos nossos parentes isolados”.
A Univaja disse ainda que as mortes poderiam ter sido evitadas caso as autoridades tivessem tomado providencias após suas denúncias: “Fornecemos informações através de nossas denúncias às autoridades competentes. Mas as providências não foram tomadas com a devida rapidez. Por isso, hoje, assistimos ao assassinato de nossos parceiros”, relataram em nota.
Para a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari o trabalho ainda não está encerrado. “Pelado e Dos Santos fazem parte de um grupo maior, nós sabemos. Manifestamos nossa preocupação com nossas vidas, a vida das pessoas ameaçadas, componentes do movimento indígena, quando as forças armadas e a imprensa se deslocarem de Atalaia do Norte. O que acontecerá conosco? Continuaremos vivendo sob ameaças?”, questionou.
A preocupação da Univaja é legitima, tendo em vista que há uma guerra instalada no Vale do Javari contra o meio ambiente e os povos originários. Além disso, muitas perguntas ainda não foram esclarecidas sobre o caso: como a pesca ilegal conecta-se ao narcotráfico? Quem financia a morte dos povos originários e a destruição da floresta?
Faz-se urgente a apuração desses e de outros assassinatos, alcançando todos os atores que lucram e participam dos esquemas de invasão e exploração ilegal na TI Vale do Javari. Faz-se necessária ainda a apuração das responsabilidades políticas que permitiram a morte de Bruno e de Dom. A TI Vale do Javari, como outros territórios indígenas no país, vivem uma situação permanente de assédio, violência e insegurança.
No município de Atalaia do Norte, além dos não-indígenas, vivem indígenas das etnias Marubo, Mayoruna, Matis, Kulinas, Kanamari e recentemente contactados os Korubo e os Tsohom-dyapa. Na TI Vale do Javari, hoje, vivem mais de seis mil indígenas, de 27 povos indígenas, sendo 17 povos livres sem contato. É a segunda maior terra indígena do Brasil.
Localizada na fronteira com o Peru e a Colômbia, com acesso restrito por vias fluviais e aéreas, a região possui a maior população de isolados do mundo. Ela foi demarcada e homologada em 2001, ainda no governo Fernando Henrique Cardoso, mas seus 85.445 km² continuam desprotegidos, sendo alvo de pescadores ilegais, garimpeiros e narcotraficantes que ameaçam as pessoas que vivem na área. É uma cadeia criminosa em plena atividade pelos rios, florestas e cidades da tríplice fronteira.
Bruno Pereira e Dom Phillips desempenharam papéis importantes na conscientização e defesa dos direitos humanos dos povos indígenas da região, inclusive por meio do monitoramento e denúncia de atividades ilegais no Vale do Javari. Eles fizeram parte de um contexto mais amplo de constantes ataques enfrentados diariamente por indígenas, indigenistas, ambientalistas e defensores de direitos humanos no Brasil.
Governo Federal e sua política anti-indígena
Bolsonaro em 2018 deixou claro sua intenção de abrir a Amazônia para o desenvolvimento. Desde então, a pressão sobre a Amazônia aumentou, assim como as mortes em terras indígenas e os conflitos relacionados a direitos territoriais, que mais que dobraram, segundo o Relatório de Violências do Conselho Indigenista Missionário. O documento aponta que, em 2020, a violência contra indígenas aumentou mesmo com a pandemia de covid-19, foram 182 indígenas assassinados, representando alta de 61% em relação aos 113 assassinatos em 2019. Houve um aumento também nos casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio”, 263 casos apontados no relatório, um acréscimo de 137% em relação a 2018, quando haviam sido identificados 111 casos. Este foi o quinto aumento consecutivo registrado nos casos deste tipo.
O ambiente é de total descaso com o afrouxamento de normas, retaliação a servidores, paralisação dos processos demarcatórios e o estrangulamento orçamentário de órgãos como a Funai. “O presidente [Jair Bolsonaro] não demarcou um centímetro como ele prometeu. O presidente da Funai, o [Marcelo] Xavier, está lá para isso. É a administração do caos. (…) Difícil, cansativo, perigoso”, disse o indigenista Bruno Pereira à Folha durante uma entrevista semanas antes de viajar pela última vez à terra indígena Vale do Javari, no Amazonas.
Em resposta ao desaparecimento de Dom e Bruno, o presidente do Brasil, por diversas vezes, assumiu a perspectiva dos criminosos para avaliar a situação, principalmente quando disse que o jornalista Dom Phillips – na ocasião desaparecido há dez dias ao lado do indigenista Bruno Araújo Pereira – era “malvisto na região” por fazer “muita matéria contra garimpeiro” e/ou com foco em conflitos ambientais. Além disso, buscando desqualificar o indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips, em entrevista ao canal da apresentadora Leda Nagle, no YouTube, Bolsonaro classificou a expedição de trabalho que buscava denunciar crimes cometidos na floresta como uma “excursão”. E não parou por aí, em 7 de junho, dois dias depois que o sumiço foi relatado, o presidente afirmou publicamente que ambos estavam em uma “aventura” “não recomendável” pela Amazônia.
A postura pública do presidente da república além de encorajar os que se envolvem em atividades ilícitas, demonstra o descaso do governo com a pauta ambiental e sua total apatia pelos defensores da floresta. Ao assumir a presidência, Bolsonaro, além de proferir seus inúmeros discursos de ódio contra os indígenas, ambientalistas e seus defensores, mudou grande parte da liderança da Funai, incluindo oficiais militares onde podia; também nomeou um pastor evangélico para liderar o setor de povos isolados; defendeu o aproveitamento dos recursos dos territórios indígenas por empresas; rejeitou a demarcação terras indígenas e prometeu que não demarcaria mesmo que ordenado pelo Supremo Tribunal Federal; criticou e critica toda a imprensa ambientalista que coloca em evidencia o desmatamento, afirmando ser uma cobertura enganosa; rejeita todos que defendem os povos indígenas; e defende a “integração dos índios à sociedade”. Ou seja, o Brasil tem hoje a “licença” necessária para além de reproduzir todo discursos de ódio vindo da presidência da república, de seguir em atividades predatórias nas florestas, pois tem a certeza da impunidade.
Após a morte de Bruno e Dom, denúncias de perseguição dentro da Funai e de uma política anti-indígena, comandada por Marcelo Xavier, ficaram mais fortes. Tanto que senadores e deputados federais, que acompanham a investigação do duplo homicídio, pediram o afastamento imediato de Xavier do cargo que atualmente ocupa.
Um dossiê lançado no dia 14 de junho denuncia que a Fundação Nacional do Índio (Funai) se “transformou em Fundação Anti-indígena” ao promover uma política anti-indigenista durante o governo do presidente Jair Bolsonaro. O documento, intitulado “Fundação anti-indígena: um retrato da Funai sob o governo Bolsonaro”, tem 173 páginas e foi produzido pela Indigenistas Associados (INA), associação de servidores da Funai fundada em 2017, e pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc). O documento aponta ilegalidades na política de demarcação de terras, redução de verbas, militarização e perseguição a servidores, demonstrando que uma das promessas de campanha de Bolsonaro, de “dar uma foiçada no pescoço da Funai”, foi finalmente cumprida.
O desmonte da política ambiental e indigenista
Diante da incapacidade e omissão dos órgãos responsáveis pela fiscalização e proteção dos territórios indígenas, o entorno e o interior da Terra Indígena Vale do Javari condensam graves conflitos e perpetuam um clima de violência em que madeireiros, pescadores ilegais e o narcotráfico internacional exercem suas atividades livremente.
Em setembro de 2019, o colaborador da Funai Maxciel Pereira dos Santos, da Frente de Proteção Etnoambiental do Vale do Javari, foi brutalmente assassinado a tiros em Tabatinga, no Amazonas. O crime aconteceu uma semana depois de Maxciel participar da apreensão de mais de uma tonelada de carne de pescados e caça. Ele levou dois tiros na cabeça e até hoje ninguém foi preso ou acusado pelo assassinato. Ou seja, a ausência de julgamento e punição do crime consolida a sensação de impunidade na região, quando o atual Governo Brasileiro se omite diante de suas responsabilidades frente ao aumento da escalada de violência contra os povos indígenas e os defensores de direitos humanos no Brasil.
No mês seguinte ao assassinato de Maxciel, Bruno Araújo Pereira foi exonerado do cargo de coordenador-geral de Índios Isolados. A saída do indigenista aconteceu após uma operação que expulsou centenas de garimpeiros da terra indígena Yanomami, em Roraima. A Operação Korubo, como ficou conhecida, foi a maior do país daquele ano (2019) no combate à extração ilegal de minerais, quando cerca de 60 balsas de garimpeiros foram queimadas. “Fizemos [em setembro de 2019] a maior destruição de garimpo do ano em região de índios isolados. A última operação de combate à mineração foi na reserva Yanomami. Cheguei à tarde e recebi minha exoneração”, disse Pereira à época ao site Brasil de Fato. “Não há profissionais de segurança para isso. Temos uma Funai obsoleta, falida e com uma logística que não se adequa. Por conta disso, os problemas vêm ocorrendo”, relatou na época.
Após a exoneração, Pereira pediu para ser licenciado sem vencimentos por dois anos do cargo público, em seguida voltou para o Vale do Javari, desta vez, prestando consultoria à União dos Povos Indígenas da região, a Univaja, com o intuito de fiscalizar a região atacada por garimpeiros, madeireiros e pescadores. Ao lado dos indígenas, Pereira ensinava-os a manusear mapas e a operar drones, o que permitia que eles próprios fiscalizassem a área e documentaram irregularidades às autoridades de segurança. O indigenista chegou a mapear uma organização criminosa que atua na pesca e caça ilegal no Vale do Javari e entregou para as autoridades a indicação do local onde a quadrilha atuava.
Para o líder indígena Beto Marubo, integrante da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), em encontro com ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, no dia 21 de junho desse ano, a morte de Maxciel Pereira dos Santos em 2019 pode estar associada ao crime envolvendo Bruno e Dom, com envolvimento de quadrilhas internacionais ligadas a pesca e caça ilegais em ambos os casos.
O que ocorre no Vale do Javari está intrinsecamente relacionado ao desmonte das políticas e órgãos públicos de proteção aos povos originários e aos seus territórios – acompanhado do enfraquecimento das Bases de Proteção Etnoambientais da Funai, responsáveis pela fiscalização da área, que atualmente se encontram sem a capacidade operacional mínima para desempenhar o seu papel.
É nítido que as ações do governo federal para enfraquecer os sistemas de monitoramento e fiscalização da Amazônia só favorecerem o crime organizado. Tudo isso é reflexo da política do governo Bolsonaro, onde o crime é abundante, mas a supervisão do governo é escassa. Por isso Bruno Pereira vinha ajudando a associação indígena local a organizar uma rede de vigilância independente para localizar e expulsar invasores – sejam pescadores ilegais, madeireiros, traficantes ou missionários religiosos.
É fundamental que o Estado brasileiro retome, de forma imediata, a política de proteção à vida e aos territórios dos povos indígenas. No caso da TI Vale do Javari, é urgente que sejam adotadas todas as medidas de enfrentamento às frentes de invasão e de ocupação ilegal, garantindo aos povos indígenas, e de forma particular aos povos que ali vivem em situação de isolamento, proteção e segurança.
“É preciso que a Funai reveja o seu discurso, porque o Bruno Pereira estava cumprindo um trabalho que deveria ser feito pela Funai também”, declarou a deputado Joenia Wapichana (Rede-RR) durante uma audiência pública realizada no dia 22 de junho, no Senado Federal, e divulgada pela Agência Câmara de Notícias.
“Que este episódio sirva para que o Brasil enxergue os indígenas, ribeirinhos e populações tradicionais completamente desamparadas da presença do Estado”, frisou o deputado Marcelo Ramos (PSD-AM) no mesmo evento, quando também acusou o governo federal de estimular ações violentas de grileiros e garimpeiros.
Na mesma audiência pública, o deputado Sidney Leite (PSD-AM) cobrou do Ministério da Justiça maior controle sobre as fronteiras da Amazônia. “É hora de o Brasil olhar efetivamente para a Amazônia, não só com o discurso fácil de que precisamos proteger a floresta, mas também com tecnologia, com infraestrutura, comunicação e a possibilidade de melhoria de vida da população.”
“Agora, o mundo inteiro sabe que, no Vale do Javari, reina a omissão, a inação e a política negacionista, a ausência total do Estado em nossa terra, mesmo após um mês do seu assassinato. Sabem até que a Fundação Nacional do Índio (Funai) perseguia e continua perseguindo você. O atual presidente desse país tentou de todas as formas desconstruir a sua história, mas ela se manterá por gerações, pois nós, povos do Vale do Javari, sabemos que você morreu por nós, pela nossa terra. Nunca vamos nos esquecer disso. A sua luta continuará através de nós e de nossas gerações”, disse Beto Marubo, da Univaja, em uma carta de despedida a Bruno Pereira, seu amigo a mais de uma década.
Pereira era considerado pela União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) como um dos maiores indigenista de sua geração, com autoridade no trabalho em campo e especializado em índios isolados, sobretudo para as questões territoriais e as relações históricas e políticas da região. O servidor de carreira da Fundação Nacional do Índio (Funai), após 11 anos de experiência, falava quatro línguas do Javari e via os indígenas como irmãos. “Não visualizamos a realização da mesma atividade por qualquer outro indigenista na atualidade”, informou a ONG, em nota. Pereira atuou cinco anos como coordenador da Coordenação Regional do Vale do Javari na Funai e participou de pelo menos dez longas expedições de localização de índios isolados. Ele era reconhecidamente uma das pessoas mais qualificados da Funai e respeitado por sua dedicação à proteção dos povos isolados.
Homenagem
Toda solidariedade às famílias e amigos de Bruno e Dom. Ambos sempre atuaram com convicção em defesa da vida e dos direitos dos povos indígenas e essa determinação lhes deu um reconhecimento verdadeiro e uma estima extraordinária por parte dos povos indígenas, de seus aliados e de todas as pessoas de bem.
Solidariedade também aos povos indígenas da Terra Indígena (TI) Vale do Javari e à União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja), que se dedicaram com todas suas forças e conhecimentos à busca de Bruno e Dom e ainda foram alvo de falsidades e acusações por parte de autoridades federais, além de serem sistematicamente e constantemente ameaçados dentro de suas terras.
Que as autoridades alcancem todos os atores que lucram e participam dos esquemas de invasão e exploração ilegal na TI Vale do Javari e que sejam apuradas as responsabilidades políticas que permitiram a morte de Bruno e de Dom.
Que a força de Bruno Pereira e Dom Phillips, e de tantos indígenas e aliados que perderam suas vidas em defesa da vida e dos direitos, seja inspiração para a continuidade da defesa do meio ambiente e da garantia dos direitos fundamentais dos povos indígenas no país, particularmente aqueles em isolamento voluntário ou contato inicial.