06/07/2022

Em Tefé (AM), lideranças indígenas realizam Oficina de Formação Sobre Procedimentos de Demarcação de Terras Indígenas

O evento foi realizado entre os dias 28 e 30 de junho deste ano, na aldeia Porto Praia, TI Porto Praia de Baixo, no município de Tefé (AM); 15 aldeias, de cinco povos, estiveram presentes

Em Tefé (AM), lideranças indígenas realizam Oficina de Formação Sobre Procedimentos de Demarcação de Terras Indígenas. Foto: Fábio Pereira/Cimi Regional Norte I

Por Fábio Pereira, do Cimi Regional Norte I

Cantos, danças, falas empoderadas e homenagens às lideranças indígenas e indigenistas que tombaram – mas que deixaram uma marca importante na luta indígena com sua existência –, abriram a Oficina de Formação sobre Procedimentos de Demarcação de Terras Indígenas. O evento foi realizado entre os dias 28 e 30 de junho de 2022, na aldeia Porto Praia, Terra Indígena (TI) Porto Praia de Baixo, município de Tefé (AM).

A atividade contou com a participação de representantes de 15 aldeias dos povos indígenas Tikuna, Kambeba, Kokama, Apurinã e Madija Kulina, dos movimentos indígenas de Tefé, União dos Povos Indígenas do Médio Solimões e Afluentes (UNIPI-MRSA), Associação das Mulheres Indígenas do Médio Rio Solimões e Afluentes (AMIMSA-MRSA) e de Valtunino Gomes Pacaio, representando a Coordenação Municipal de Assuntos Indígenas de Tefé.

Durante os dias de atividades, foram trabalhados os conteúdos: diagnóstico das comunidades; direitos territoriais indígenas no atual contexto político brasileiro à luz da Constituição Federal de 1988 e da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT); demarcação de terras e a situação dos territórios indígenas no país; ameaças aos direitos territoriais, com destaque para o desmonte da Fundação Nacional do Índio (Funai), que está em curso, e à tese do marco temporal, que retira o direito originário ao território; formas alternativas de garantia e proteção territorial, como a autodemarcação e categorias alternativas de reconhecimento territorial; direito à consulta prévia, livre e informada aos povos indígenas como obrigação do estado, autodeterminação dos povos indígenas, características do direito à consulta, previsão legal e precedentes judiais e protocolos autônomos de consulta, com enfoque na consulta culturalmente adequada, nas experiências de protocolos de consulta já realizadas no país.

Entre as metodologias que trouxeram bons resultados na afirmação dos conteúdos, reforçando o debate e possibilitando uma dimensão nacional da luta indígena, foram os audiovisuais. Com eles, foi possível aprofundar as políticas indigenistas já adotadas e em andamento no país e os direitos indígenas, entre outros assuntos que reportaram a luta e a resistência dos povos indígenas na garantia, manutenção e efetivação dos direitos.

Jukson Urbano Kambeba, professor indígena da aldeia Barreira da Missão do Meio, TI Barreira da Missão, diz que a oficina é um rico e expressivo espaço formativo para os povos indígenas que, no contexto de hoje, precisam empoderar-se de conhecimentos para enfrentar os desafios e incidir nas instituições responsáveis pela efetivação dos direitos indígenas.

“Hoje aprendemos sobre os procedimentos das demarcações das terras indígenas, como também sobre as leis que nos respaldam para termos esses direitos garantidos. Precisamos estar sempre atualizados e com acesso às formações para sabermos como reivindicar os nossos direitos”, destacou o professor.

“Precisamos estar sempre atualizados e com acesso às formações para sabermos como reivindicar os nossos direitos”

O evento foi realizado entre os dias 28 e 30 de junho deste ano, na aldeia Porto Praia, TI Porto Praia de Baixo, no município de Tefé (AM). Foto: Fábio Pereira/Cimi Regional Norte I

A professora indígena Valcidheice Pereira Kokama, da aldeia Boará de Cima, TI Boará/Boarazinho da Ilha do Panamin, concordando com o Kambeba disse que as lutas e conquistas dos povos indígenas se concretizam a partir dos conhecimentos, tanto tradicional como também aqueles que são recebidos nos encontros, oficinas, e assembleias que os movimentos e organizações indígenas e indigenistas realizam.

“Nossos direitos precisam ser respeitados, estamos vivendo tempos de incertezas, de ataques contra a democracia, contras nossos corpos, nossa cultura, nossas matas, nossos rios, contra nosso povo que luta para viver. Participar desse momento de formação nos ajudará a termos mais conhecimentos e saber o caminho a percorrer para exigir das autoridades respeito e efetivação de nossos direitos”.

O objetivo da oficina foi proporcionar um espaço de formação para o fortalecimento dos conhecimentos e capacidades das lideranças na defesa dos seus direitos civis, políticos e sociais, sobretudo o direito ao território e, assim, constituírem autonomia na cobrança das reparações de violações desses seus direitos e se engajarem de forma ativa nos espaços de proposição e controle social de políticas públicas específicas, que promovam e protejam a cultura, os costumes e tradições.

Ter acesso à informação e à formação política e também se apropriar de conhecimentos para a garantia de melhor qualidade de vida é fundamental para os povos indígenas construírem formas e alternativas de incidência política que partam da base e que permitam unir aos seus movimentos representativos legais a aliados da causa.

Para Francisca Cardoso, missionária da Equipe do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Norte I, que atua na Prelazia de Tefé, “oportunizar momentos como esse é necessário diante da conjuntura que o Brasil vive, onde os povos indígenas são alvos de um governo anti-indígenas, que desde o princípio se manifestou totalmente contrário aos direitos indígenas e que tem executado um projeto de violências contra os povos originários”.

Cardoso disse, ainda, que acredita nesses momentos formativos, porque “além de trazer informações e proporcionar conhecimentos, eles fortalecem as lutas coletivas que buscam a garantia e a proteção dos direitos e dos territórios”.

Confirmando, assim, a percepção da missionária Kyane Seabra, professora da Aldeia Nova Esperança do Arauiri, em Tefé. Disse que as conquistas que os povos indígenas alcançaram não foram gratuitas, que custou dores, mas também forte resistência.

“Hoje temos políticas e direitos garantidos para as populações indígenas, mas isso não foi dado de graça pelos políticos. Foi graças à luta de lideranças e dos povos indígenas do Brasil, muitos desses sofreram violências e outros foram sementes para que pudéssemos seguir com a luta”, afirmou.

“Hoje temos políticas e direitos garantidos para as populações indígenas, mas isso não foi dado de graça pelos políticos. Foi graças à luta de lideranças e dos povos indígenas do Brasil”

Jó Samias Kokama, Tuxaua da aldeia Boará de Cima, em Tefé, lembrou a força da união que as lutas possuem e da coragem e resistência que os indígenas que estão em espaços governamentais devem ter. “A luta tem que ser coletiva e os parentes que hoje ocupam cargos dentro das instituições governamentais precisam somar e aderir a luta do movimento indígena, estando presente nas mobilizações e incidências. Não precisamos ter medo de se posicionar para lutar pela garantia de nossos direitos, tudo o que conquistamos foi por meio das lutas e mobilizações coletivas”, requisitou o tuxaua.

Também encorajando as lideranças, o cacique da aldeia que sediou a Oficina, Anilton Braz Kokama, manifestou sua indignação com os atuais governantes e conclamou as lideranças para a luta. “Nossas vozes devem ecoar para que todos saibam que somos sujeitos de direitos, as pessoas que ocupam cargos políticos não podem anular nossa história e nem negar nossa existência”.

 

Os debates viram documentos

Ataques de piratas contra moradores das aldeias e de comunidades ribeirinhas que têm como único meio de locomoção a via fluvial, gerando constantes episódios de violência pelos rios da região, mereceu um debate específico e a elaboração de um documento denúncia, solicitando providências emergenciais das autoridades competentes.

Também as violações territoriais e demais direitos indígenas identificados durante os debates foram descritos em documentos a serem encaminhados aos órgãos governamentais competentes. Muitas delas já foram denunciadas em outras ocasiões e, mais uma vez, serão apresentadas às instâncias de governo.

Uma comissão formada por representantes das aldeias participantes produziu o documento, que foi apresentado e aprovado por unanimidade.

Demostrando preocupação com o futuro da política indigenista, um dos pontos do documento enfatiza a posição dos indígenas frente ao atual governo. “O projeto político nacional em curso é explicitamente anti-indígena, um governo autoritário, antidemocrático que tem desde o início de seu mandato apoiado projetos de leis e outros instrumentos jurídicos para desconstruir nossos direitos conquistados coletivamente à base de luta e resistência”.

“O projeto político nacional em curso é explicitamente anti-indígena, um governo autoritário, antidemocrático que tem desde o início de seu mandato apoiado projetos de leis”

A atividade contou com a participação de representantes de 15 aldeias, de cinco povos indígenas. Foto: Fábio Pereira/Cimi Regional Norte I

E prossegue destacando o desinteresse do Estado em atender a demandas dos povos indígenas. “É preocupante a omissão e morosidade do Poder Público enquanto a demarcação e fiscalização dos territórios tradicionais dos povos indígenas de Tefé, ocasionando conflitos fundiários entre esses povos e não indígenas que possuem interesses econômicos em nossos territórios”.

“Essa omissão coloca nossas comunidades numa situação de extrema insegurança e vulnerabilidade, expostas à violência dos invasores de todo tipo: madeireiros, peixeiros, fazendeiros, caçadores, traficantes de drogas, extrativistas de castanha, açaí e outros recursos naturais que afrontam as nossas lideranças e desrespeitam nossas formas de vida e os nossos direitos. Além disso, muitas lideranças vêm sendo vítimas de ameaças de morte por lutarem a favor de nossos territórios sagrados e contra esses usurpadores”, completa.

 

Direitos, conhecimentos e espiritualidade

Retratando essa política denunciada no documento, as lideranças constatavam no decorrer dos debates o desmonte das instituições responsáveis pela política indigenista no Brasil que tem como consequência as paralisações de ações voltadas para a proteção e garantia de melhor qualidade de vida dos povos, principalmente a falta de fiscalização, de proteção e das demarcações das terras indígenas, que colocam a população indígena em situação de vulnerabilidade e risco de sua existência integral.

Mas, ao mesmo tempo, eram fortalecidas pelas falas em tom de resistência, esperança, de perspectivas por um país pluricultural, de políticas voltadas para os povos indígenas que respeitem seu modo de vida, sua cultura, suas terras e tudo que seja fundamental para sua sobrevivência.

Assim resume Chantelle Teixeira, assessora jurídica do Cimi Regional Norte I, caracterizando a Oficina como espaço de fortalecimento de conhecimentos e capacidades de autonomia para intervenção e incidências políticas.

“As oficinas, além de serem espaço de troca de conhecimento e de atualização de informações sobre a política indigenista, também é momento de intercâmbio e experiência, sobretudo nesse contexto de ameaças e desmonte dos direitos indígenas e política indigenista, experiências autônomas de proteção e monitoramento do território, também é um momento de fortalecimento das bases, das alianças e dos movimentos indígenas” destacou Chantelle.

A espiritualidade indígena figurada na dança, no entoar dos cantos e nas falas dos indígenas, traz consigo o alimentar da esperança, da construção coletiva, da unidade dos povos pelo direito de viver em seus territórios.

A dança Kokama protagonizada pela juventude da Escola Indígena da Aldeia Porto Praia encerrou as atividades da Oficina, desejando, aos demais “parentes” das aldeias participantes, um bom retorno as seus “tapiris” para seguirem fortalecidos na caminhada.

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