Povo Kokama, da TI Boará/Boarazinho (AM), se reúne em roda de conversa para manter viva a memória da resistência
Analisando sua história e as políticas indigenistas brasileiras, os Kokama da aldeia Nova Esperança do Arauiri, em Tefé (AM), afirmam que não vão desistir de suas vidas
Trocar ideias e atualizar conhecimentos sobre os desafios e as estratégias de defesa e proteção territorial, sobre as violências que sofrem, as violações de direitos que enfrentam, fazer uma análise de conjuntura das políticas indigenistas no Brasil, e, principalmente, manter viva a história de lutas do povo Kokama da aldeia Nova Esperança do Arauiri, da Terra Indígena (TI) Boará/Boarazinho, da Ilha do Panamin, em Tefé, no Amazonas, foram os assuntos da roda de conversa que aconteceu naquela aldeia, no dia 13 de maio.
Atividade integrante das ações da equipe do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Norte I, em Tefé, a roda de conversa reuniu, aproximadamente, 34 indígenas, moradores da comunidade, que socializaram e debateram informações sobre o contexto de ataques e desmontes dos direitos indígenas e os projetos de lei, portarias e outros instrumentos jurídicos pautados por parlamentares – que abertamente se declaram contrários aos direitos indígenas, entre eles os que integram as bancadas Ruralista, da Bala e da Bíblia.
A Terra Indígena Boará/Boarazinho, que compreende sete comunidades indígenas – Boará, Boarazinho, Boará de Cima, Kanata Ayetu, Nova Esperança do Arauiri, São Luiz do Macari e Novo Porto – e a comunidade São Conrado, que possui moradores não indígenas, na Ilha Panamin – ainda não está demarcada, apesar do processo de reivindicação ser anterior a 2009.
Segundo as lideranças, oficialmente a reivindicação inicia, por ocasião, com a visita da antropóloga Andrea Prado, enviada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) à região para realizar estudo preliminar previsto na Instrução Executiva nº 144/DAF. Mas, de acordo com seus depoimentos, os dois povos ocupam a região há muito mais tempo.
Na Ilha Paumin e ilhas do entorno, somam um total de, aproximadamente, 700 indígenas dos povos Kokama, Kambeba, Kaixana, Ticuna e Apurinã, sendo que Kokama e Kambeba correspondem à maioria da população.
Em janeiro de 2009, o Serviço Fundiário da Funai, em Manaus, enviou à Diretoria de Assuntos Fundiários da Funai, em Brasília, o Memorando nº 015/SFU/AER/MAO, que apresenta a urgência da demarcação do território e encaminha carta dos indígenas ocupantes do território. “Eles reivindicam a demarcação da terra, devido os invasores, que entram para pescar e tirar madeira”, destaca o documento, mostrando a vulnerabilidade do território, dos recursos naturais e de suas próprias vidas.
“Eles reivindicam a demarcação da terra, devido os invasores, que entram para pescar e tirar madeira”
Passados 13 anos do pedido de urgência, os indígenas continuam vulneráveis pela total omissão da Funai, órgão designado pelo estado brasileiro para cumprir com a obrigação constitucional de abrir e fechar processos de demarcação territorial indígena. Mesmo depois de todo esse tempo de reivindicações, idas e vindas incansáveis aos órgãos, os Kokama denunciam as invasões e os descasos. A TI Boará/Boarazinho continua sendo saqueada e em perigo constante pela iminência de conflitos com os invasores.
Para o Cacique Cláudio Kokama, é grande o sentimento de medo e ameaças que seu povo tem sofrido por lutar pelo direito de viver no território, defendendo os recursos naturais. Disse que sua defesa e resistência está “na organização interna para proteção e fiscalização e no apoio de organizações indigenistas. Só assim, dá para se fortalecer e garantir os direitos que são históricos e constitucionais”.
Rosa Kokama, da aldeia Nova Esperança de Arauiri, fala que os moradores cuidam e protegem a terra e os recursos naturais como podem, mas afirma que, enquanto o território não for demarcado, as invasões continuarão.
“Os não indígenas acham que a terra não é indígena, porque não está demarcada e, por isso, não respeitam o povo que mora na terra. Os invasores entram e tiram o que bem querem: madeira, peixe e frutas. Fazem isso a hora que querem. E ficamos com medo. Porque eles se sentem donos e no direito de tirar o que querem sem respeitar nossa presença, e ainda nos ameaçam”.
“Os não indígenas acham que a terra não é indígena, porque não está demarcada e, por isso, não respeitam o povo que mora na terra”
O patriarca da aldeia, Jose Ribamar Kokama, conta que há muitos anos o povo Kokama da TI Boará/Boarazinho, Ilha do Panamim, vem travando a luta pela demarcação do território e que essa situação desanima “pela tristeza que dá”, mas sabe que a terra demarcada “garante uma proteção maior e possibilita certa segurança ao povo para fortalecer a cultura, a educação e a saúde”.
“As invasões na aldeia são constantes, e junto com essas invasões vêm as ameaças dos invasores. Isso dá tristeza e causa desânimo no povo. Queremos ter direito legal ao território, porque as pessoas que invadem acham que não temos direito porque não temos um documento que comprove esse nosso direito sobre a terra. Queremos viver em paz em nossa terra, criar nossos filhos, plantar nossas roças para o sustento de nossa família. Passamos grande parte do tempo lutando contra os invasores, pois se nós não cuidarmos, quem vai fazer? Dá vontade de desistir, mas sabemos que, se não fizermos nada, vamos ver nossos recursos naturais acabarem, não vai ter nada para nossos filhos e netos. A luta é difícil, mas temos que continuar acreditando que um dia nossa terra será demarcada, nossos direitos serão respeitados”, conclui.
Mais um documento
Incansavelmente, em todos esses anos, várias foram as estratégias de resistência do povo Kokama da TI Boará/Boarazinho. Uma delas foi o encaminhamento de documentos aos órgãos competentes de fiscalização e proteção dos territórios e direitos indígenas.
No dia 10 de maio, mais uma Carta Denúncia foi encaminhada ao Ministério Público Federal (MPF) e demais órgãos, relatando a situação de invasões e saques dos recursos naturais da TI. Diz o documento que, “somente no ano de 2022, já nos deparamos com várias espécies de madeiras derrubadas [árvores], prontas para serem serradas e serem comercializadas. Encontramos também dentro da área 51 dúzias de tábuas, 12 dúzias de ‘ripão’, e 30 dúzias de ‘taubão’. Estas madeiras são derrubadas sem nosso consentimento e sem respeitar as leis ambientais”.
A carta descreve a forma como acontecem as invasões e afirma que os invasores são reincidentes e se dizem proprietários da área, mas sem apresentar qualquer documentação de propriedade. As lideranças indígenas, diante desse argumento, dizem que é infundado e o entendem como uma ameaça, o que gera receios e inseguranças. “A utilização desse argumento de que é proprietário de um terreno dentro do nosso território indígena sem nos comprovar com documentos, nos causa violências, transtorno, medo e gera insegurança para nós indígenas, com as ameaças e processos já abertos por estes invasores”, declaram.
E a finalizam afirmando que não querem conflitos, apenas que as devidas providências sejam tomadas para que possam ter vida digna agora e para as futuras gerações. “Afirmamos que não queremos causar conflitos com ninguém, mas não vamos permitir que pessoas que não são indígenas venham derrubar nossas árvores, tirar nosso peixe e se beneficiar dos recursos naturais existentes em nossa terra, os quais preservamos. Ressaltamos que continuaremos denunciando as invasões e lutando pela garantia de nossa terra que é o bem maior que garantirá nossa existência e a existência de nossas futuras gerações. Exigimos das autoridades as devidas providencias diante das denúncias relatadas”.
“Afirmamos que não queremos causar conflitos com ninguém, mas não vamos permitir que pessoas que não são indígenas venham derrubar nossas árvores”
Cronologia de fatos importantes
Década de 1980, o povo Kokama relata que já viviam na região. Ano de 2001, o início do processo. Visita da antropóloga Andrea Prado enviada pela Funai e memorando da Funai apresentando urgência para o avanço do processo demarcatório. Seu Jó dos Anjos Samias, um dos tuxauas da Terra Indígena, diz que “seu Paixão, coordenador da Funai à época, orientou que fizessem um abaixo-assinado e disse: ‘entreguem o abaixo-assinado à Andrea e ela passa lá com vocês’. Ela fez a vistoria da nossa terra Boará/Boarazinho, mas nunca mais tivemos retorno dos procedimentos”.
Ano de 2015, a Coordenação Técnica Local da Funai em Tefé declara a existência das sete aldeias dos povos indígenas existentes na área reivindicada e informa que a TI Boará/Boarazinho “está em processo de identificação, aguardando o Grupo Técnico realizar o levantamento fundiário e antropológico”.
Ano de 2016, o MPF instaura Inquérito Civil Público para investigar a atuação da FUNAI quanto à demarcação da TI Boará/Boarazinho, que resulta na Ação Civil Pública nº 212-91.2016.4.01.3202, com a União e Funai como rés com pedido de antecipação de tutela e condenação a “ultimar o processo administrativo para a demarcação”.
Ano de 2017, a Ação vai a julgamento em primeira instância na 1ª Vara Federal, Subseção Judiciária de Tefé, pelo Juiz Federal André Dias Irigon, que julga o pedido: “ante o exposto, julgo parcialmente procedente (…) para condenar a União e a FUNAI a ultimar o processo administrativo para a demarcação das áreas habitadas pelo povo Kambeba, na ilha do Panamim, Comunidades Boará, Boarazinho e Canata Aietu, localizada no Município de Tefé, consoante as etapas e prazos fixados no Decreto no 1.775/96 e para que o conclua no prazo máximo de 36 meses, sob pena de multa diária de R$ 10.000,00 por mês a ser revestido em favor da própria comunidade organizada”.
Nesse mesmo ano, foi feito um estudo de caso da luta pelo reconhecimento étnico e territorial das comunidades indígenas Porto Praia de Baixo, Boarazinho, Boará e Boará de Cima dos povos indígenas Kambeba e Kokama do Médio Solimões/AM.
Em 2017 e nos anos seguintes, fizeram encaminhamentos sistemáticos de documentos de requerimentos e ofícios locais à Funai e demais órgãos. Nenhum resultou em ações significativas de avanço do processo demarcatório.
Ano de 2019, construção do Relatório em Prol da Demarcação da Terra Indígena Boará/Boarazinho (Ilha do Panamim), município de Tefé (AM). O documento foi produzido a partir de estudos feitos pelo Cimi Regional Norte I, que traça a história da ocupação territorial na região.
Ano de 2022, encaminhamento de uma Carta Denúncia ao MPF e demais órgãos competentes com explicações claras sobre os procedimentos utilizados pelos invasores, inclusive nominando-os para saquear a TI Boará/Baorazinho e ameaçar a permanência dos indígenas no território.
As diversas frentes da resistência
Uma das conclusões da Roda de Conversa, realizada no dia 13 de maio, foi a inoperância do Estado e deficiência do órgão oficial, a Funai, de proteger e garantir os direitos indígenas, o que tem deixado o povo vulnerável diante dos invasores que, em alguns episódios, fizeram sérias ameaças, chegando a agredir moradores da aldeia.
Para enfrentar essas ameaças, violências e violações de direitos, o povo da aldeia Nova Esperança do Arauiri tem, constantemente, incidido, através de documentos que denunciam a situação, junto às instituições e órgãos competentes, buscando o diálogo pacífico para frear os atos dos invasores. No entanto, nenhum resultado foi alcançado até o momento.
Além dessas estratégias, apoiadas pela equipe do Cimi e do movimento indígena da região do Médio Solimões, o povo Kokama organizou a Guarda Comunitária Indígena, que atua fiscalizando e fazendo a vigilância do território. Por diversas vezes, em suas ações, a Guarda se deparou com os invasores dentro da área, fazendo pesca predatória e serrando madeira indiscriminadamente.
Mesmo com tantas agressões e riscos à sua integridade física e cultural, o povo Kokama resiste com suas formas de vida. Por meio das atividades de pesca, coleta, plantio, festas e outras práticas culturais, bem como na organização social, encontros comunitários, incidências e lutas políticas, as comunidades da Terra Indígena Boará/Boarazinho se mantém viva e não desiste da esperança de ter seu território demarcado, não só pela garantia da lei que a demarcação proporciona, mas pela garantia de continuar existindo, de continuar a ser Kokama.