Em Simpósio, indígenas e indigenistas da Amazônia debatem a r-existência dos povos indígenas frente às políticas neoliberais
Mais de 100 pessoas e 53 instituições indígenas e indigenistas participaram do Simpósio e, nessa roda de conversa, pensaram, dialogaram e propuseram estratégias urgentes para o bem viver dos povos originários
“A Funai não dá terra indígena, a Funai reconhece. O ato de demarcar é um ato declaratório, quem fala o que é terra indígena é o povo que ocupa aquela área”. Esse foi um dos saberes compartilhados e fortalecidos pelos indígenas e indigenistas presentes no “Simpósio Povos Indígenas, r-existência às políticas neoliberais na Amazônia”, realizado nos dias 27, 28 e 29 de abril, no auditório da Universidade Estadual do Amazonas (UEA), em Manaus.
A ideia do evento surgiu da preocupação com a realidade de ataques e violações de direitos que a Amazônia, especialmente os povos indígenas, vem sofrendo. Os objetivos do Simpósio foram parar para refletir e trocar informações, conhecimentos e experiências, pensar, discutir, dialogar, mas também propor estratégias urgentes e necessárias para o bem viver dos povos e um desenvolvimento não exploratório e verdadeiro para toda a Amazônia.
O projeto de lei 191/2020, que libera a mineração e outras atividades que impactam as terras indígenas, e o PL 490/2007, que prevê uma série de modificações nos direitos territoriais, entre elas de que as terras tradicionalmente indígenas são aquelas ocupadas em 5 de outubro de 1988, data de promulgação da Constituição Federal de 1988, assim como tantos outros projetos legislativos que tramitam no Congresso Nacional, são característicos de uma política neoliberal assumida pelo Estado brasileiro, e ferem os direitos e a própria existência dos povos originários.
“A Funai não dá terra indígena, a Funai reconhece”
Para o Padre Alcimar Araújo, vice-presidente da Cáritas Arquidiocesana de Manaus, uma das instituições organizadoras do evento, a necessidade é de mobilizar e somar esforços para a resistência e enfrentamento aos ataques aos direitos indígenas e às tentativas de mudança nas leis que asseguram suas formas de vida. “Nós ficamos incomodados com toda a situação que estão passando os indígenas brasileiros, sobretudo com essa PL 191, que é extremamente danosa aos povos indígenas, à vida enquanto tal e todo o ambiente. Percebemos que precisamos nos mobilizar”.
Fortalecer a autonomia que os povos indígenas conquistaram e apoiar suas estratégias de ação é estar junto em uma luta que é de todos, afirma o vice-presidente. “Hoje, os povos indígenas têm um lugar de fala, eles são autônomos, sabem o que querem, sabem defender seus interesses. Nós não estamos aqui para substituir ou dividir, mas, ao contrário, a gente quer somar com eles”, diz Alcimar, admirado com o reconhecimento dos povos pela luta conjunta. “Um dos depoimentos de uma liderança foi de que as conquistas não foram alcançadas em uma luta solitária, sozinhos, mas os parceiros sempre estiveram junto, lutando junto. Isso mostra o reconhecimento da necessidade de parceria. Então é isso que nós queremos fazer, ser parceiros, ser solidários, estar junto nessa luta que, na verdade, tem a ver com todos nós”.
“Nós não estamos aqui para substituir ou dividir, mas, ao contrário, a gente quer somar com eles”
A luta também é jurídica
Diversos elementos e situações que mostram que a luta não é apenas política, mas também jurídica, foram compartilhados pelos debatedores.
A primeira mesa do Simpósio teve como tema “Povos indígenas e a defesa do bem-viver: violação dos direitos em meio a devastação jurídica na Amazônia”, e trouxe para o debate um dos assessores jurídicos do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Ivo Macuxi, a assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Carla Cetina Castro, o Procurador Geral da República no Estado do Amazonas, Daniel Viegas, o deputado federal José Ricardo (PT-AM), e o professor indígena Gersem Baniwa, representando a Frente Amazônica de Defesa dos Direitos Indígenas (Famddi).
Fazendo uma retrospectiva da luta indígena anterior e após à Constituição Federal, Ivo Macuxi, firme em sua exposição, fala da principal característica dos povos indígenas: a teimosia. “Nós somos um povo teimoso. A gente costuma falar assim porque nós não aceitamos as coisas como estão. Nós somos um povo que vai para a luta. Somos um povo aguerrido, que vai para Brasília acampar, passa 10 dias, 20 dias juntos, discute os problemas, dança, canta, todos os dias naquelas condições, passando frio, calor, aquela coisa toda”, diz, relembrando os acampamentos na capital federal em 2021 e, em abril desse ano, o Acampamento Terra Livre, que reuniu mais de 7 mil lideranças em Brasília, mostrando sua força, persistência e resistência.
“Nós não aceitamos as coisas como estão”
O Macuxi explica que se, atualmente, o movimento indígena alcançou essa organização capaz de mobilizar nacionalmente os povos indígenas de todas as regiões do Brasil, é devido à força da luta dos seus antepassados. “Antes de 1988, não existia amparo legal para os povos indígenas. E no período de 1970, 1980, o pensamento era de dominação, de integração, e de que até o ano 2000 não existiria mais povos indígenas no Brasil, todos estariam integrados à sociedade nacional e que falaríamos a mesma língua com a mesma cultura. Mas, resistimos, lutamos e conquistamos uma Lei Maior que garante nossa existência”.
Ivo convida a juventude a conhecer a luta que as gerações anteriores travaram para que o Estado brasileiro reconhecesse as formas de vida indígenas e garantisse seus direitos legalmente. “Hoje, estarmos fortalecidos em nossa luta, enquanto uma sociedade diferenciada, com nossas especificidades, devemos aos nossos antepassados que abriram mão das suas vidas particulares, de seus desejos individuais e tiveram pensamentos coletivos muito fortes”, reflete o Macuxi, afirmando que “a Constituição é como um escudo de proteção que temos. Porque a partir daquele momento [da promulgação da Constituição], com a nova ordem jurídica, o Estado brasileiro começa a reconhecer nosso direito e a partir dali passamos a nos organizar, nos fortalecendo para incidências políticas nacionais e internacionais, cobrando do Estado brasileiro a efetivação desses direitos”.
“No entanto”, continua o advogado indígena, “esse momento [1988] é uma data em que o Estado passa a, apenas, reconhecer o nosso direito. Porque o nosso direito é anterior a ela. Nós somos povos originários do território brasileiro. Nós estávamos aqui muito antes do Brasil existir como país, um Estado com suas fronteiras artificiais”.
“Nós estávamos aqui muito antes do Brasil existir como país, um Estado com suas fronteiras artificiais”
A luta para conquistar o reconhecimento do Estado brasileiro pelos direitos indígenas e garantir na Lei Maior o amparo para a existência de suas culturas e território foi árdua. Atualmente, os desafios também estão difíceis e a luta, da mesma forma, deve ser incansável. A partir de 2015, com o golpe na jovem democracia brasileira e a volta de um Estado que quer dizimar, matando ou integrando os povos indígenas à sociedade nacional, se intensificam os projetos de lei e de emendas constitucionais que atacam, desmontam, flexibilizam e abrem as terras indígenas para grandes empreendimentos, mineração, agronegócio, garimpo, pecuária. Por todo esse contexto, Ivo afirma que a luta indígena atual está além da luta política, mas é uma guerra jurídica.
“Hoje, com a nossa caneta e tinta de urucum e jenipapo a gente vai lá para falar com o Supremo, falar com a Justiça brasileira. A gente faz a luta política, mas ao mesmo tempo a gente faz a luta jurídica, o embate jurídico. É isso que nós estamos vivendo hoje. Um retorno aos ataques com a intenção de nos dizimar. Somos 12 advogados indígenas que sentamos, analisamos, discutimos, chamamos outros parceiros, para compreender e ajuizar as ações”, conta o advogado.
Outra frente jurídica necessária, e que o Estado tem falhado em respeitar, é a realização das Consultas Prévias, Livres e Informadas a que os povos indígenas têm direito pelo acordo da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Carla Cetina, da assessoria jurídica do Cimi, comenta que “existem muitas estratégias de retrocesso dos direitos indígenas que estão sendo usadas, uma delas é desconsiderar a consulta prévia aos indígenas para a implantação de empreendimentos, como a exploração de potássio em Autazes, por exemplo. Mas a gente percebe que em muitos empreendimentos têm um denominador comum, que é a falta de consulta prévia”, diz Cetina, e reforça a necessidade das organizações indígenas exigirem esse direito, visto que “deve existir o consentimento. O Estado brasileiro precisa ouvir os indígenas que serão impactados e reconhecer a sua existência”.
“O Estado brasileiro precisa ouvir os indígenas que serão impactados e reconhecer a sua existência”
O Procurador Geral do Estado, Doutor Daniel Viegas, participou dos debates sobre direitos e territórios indígenas e trouxe uma proposta jurídica estadual para ser analisada pelos indígenas, especialmente os povos em que vivem em contexto urbano. Viegas propõe analisar e adequar às necessidades indígenas a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU).
“Os indígenas estão muito acostumados a discutir só qual é o papel da União em relação ao jeito deles. Só que existe também uma possibilidade grande de atuação dos estados em relação a eles. E a CDRU é um instrumento que vai permitir não só o direito ao território, mas o direito, o acesso a políticas públicas de educação, de saúde, de produção agrícola, que eles eventualmente precisem de assistência técnica. Então, trazer esse instrumento, essa alteração legislativa para eles é uma forma de eles analisarem se vale a pena se apropriar desse novo instrumento na defesa de seus direitos”, propõe.
Realidades compartilhadas
O evento também reuniu, em uma segunda mesa de debates, representantes de povos indígenas que enfrentam a instalação de grandes empreendimentos em seus territórios, que impactam com gravidade social e ambiental toda a região. O tema dessa mesa foi “Povos indígenas e a defesa do bem-viver em meio às multidevastações da exploração mineral nas Terras Indígenas na Amazônia”.
Jair Jacinto Juruna, da aldeia Muratuba, Terra Indígena Paquiçamba, localizada na Volta Grande do rio Xingu, município de Altamira, trouxe os problemas que a hidrelétrica de Belo Monte, construída há 10 anos, ocasiona para o seu povo. “Nós perdemos muito da cultura, de tradição. Nós somos povo do rio, que sempre viveu na beira do rio. Tirávamos nossa renda do peixe, da pesca. Agora, não temos mais. Tem várias espécies de peixe que já sumiram, outras estão aparecendo. Tem tambaqui, agora. Não tinha. É peixe predador, vai tomar o lugar dos outros. Nós não fazíamos roça para vender, só para o sustento. Agora, temos que fazer coisas que nós não sabíamos. Outra coisa é a qualidade da água, que está poluída. A gente não consegue mais se banhar no rio justamente por causa do reservatório que joga a água poluída na margem debaixo da barragem”, conta Jair.
“Tirávamos nossa renda do peixe, da pesca. Agora, não temos mais”
Na mesma região da Volta Grande do Xingu está sendo instalada a mineradora de ouro Belo Sun, outro grande empreendimento que trará mais problemas, mais impactos sociais e ambientais, diz Jair Juruna. “Nós estamos com receio de que as coisas piorem devido à Belo Sun, que vai se instalar ali. Nós já temos um rio poluído, já temos todos os impactos em Belo Monte. Então, em cima de uma coisa errada, já vem outra. Eles arrancaram tudo de nós, muito rápido, muito ligeiro. E vão arrancar o que resta”, comenta com preocupação.
De Roraima, Maurício Ye’ kuana traz para o debate os graves crimes que estão sendo cometidos na Terra Indígena Yanomami. “A minha participação aqui é falar da atuação atual que a gente está enfrentando, que é a questão do garimpo. O número de garimpeiros aumentou para mais de 20 mil na nossa terra. Tem muitos problemas e crimes acontecendo lá. E tem um que me preocupa muito. É o assédio aos nossos jovens. A gente está tentando olhar para nossos jovens que estão sendo levados para o garimpo, que estão sendo cooptados pelos garimpeiros em troca de dinheiro fácil. Eles oferecem cinco mil, oito mil reais em dinheiro vivo. O Yanomami não sabe usar dinheiro e acaba sendo explorado mais ainda”, conta Maurício demonstrando grande preocupação, mas indicando soluções que o CIR já está buscando: “vamos oportunizar nossos jovens com acesso à tecnologia, até de drones se for possível, para que eles tenham as ferramentas atuais de defesa das nossas vidas”, conclui.
“Vamos oportunizar nossos jovens com acesso à tecnologia, até de drones se for possível, para que eles tenham as ferramentas atuais de defesa das nossas vidas”
Sergio Mura, tuxaua da comunidade Soares, em Autazes (AM), ouve os depoimentos dos “parentes” (forma de tratamento entre os indígenas) e, visivelmente, seu semblante demonstra preocupação. A sua comunidade é o lugar onde a empresa Potássio do Brasil está se instalando para a extração de silvinita e potássio.
Para o tuxaua, não tem como ficar indiferente à dor que os “parentes” Yanomami sentem, nem como ficar insensível aos impactos da usina de Belo Monte, para os Juruna. “Essa troca de conhecimento é importante para nós. A dor que eu sinto, do que o parente lá de Roraima sente, veio muito forte. A hidrelétrica de Belo Monte é outro tipo de empreendimento, mas trouxe também muita consequência na vida dos indígenas de lá. E impactos ambientais também, tantos que está sendo difícil pra eles renovarem a vida. Tiveram que desaprender o que sabiam e adotar um outro tipo de atividade, que é a agricultura, para se alimentar e também ter renda. Tudo isso é muito difícil”, diz Sérgio, imaginando os impactos que a instalação da Potássio do Brasil vai trazer para o seu povo, seu rio e sua floresta.
O Procurador do Ministério Público Federal no Amazonas, Fernando Merloto, esteve presente virtualmente e deixou seu recado de resistência na luta, se colocando à disposição para esclarecimentos e qualquer ação que seja necessária ser encaminhada pelo MPF.
Por fim, a última mesa do Simpósio tratou do tema “Povos indígenas e a defesa do bem-viver: buscando caminhos para o direito à cidade”. Participaram a professora Alva Rosa, pelo Fórum de Educação Escolar e Saúde Indígena do Amazonas, FOREEIA, Maria do Socorro Elias Gamenha/Baniwa, pela organização de mulheres indígenas MAKIRA-ETA, Clarice Tukano, da Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro (AMARN), Associação de Mulheres Indígenas Sateré-Mawé (Amism), o Vereador Daniel Vasconcelos e o Procurador do Estado do Amazonas, Daniel Viegas.
O evento foi promovido pela Cáritas Arquidiocesana de Manaus, Serviço Amazônico de Ação, Reflexão e Educação Socioambiental (SARES), Núcleo de Pesquisa Dabukuri/UFAM, Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Norte I, Fórum de Educação Escolar e Saúde Indígena do Estado do Amazonas – FOREEIA, Grupo de Estudo e Pesquisas em Educação Escolar Indígena e Etnografia – UEA e Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM).