Ameaças e belezas da vida e da luta
Texto da coluna “Causos e Casos”, um especial do Jornal Porantim em comemoração aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário
Em dezembro de 1978, encontrei embaixo da porta no porão da casa paroquial de Xanxerê, onde ficava a sede do Cimi Sul, um envelope em cujo interior estava uma espécie de cartão com o seguinte dizer: “O comando de caça aos Comunistas deseja ao Pe. Egon Dionísio Heck, simpatizante e ativista da canalhada comunista que enxovalha nosso país, um péssimo natal e que se realize no ano de 1979 nosso confronto final. São Paulo, dezembro de 1978 CCC”.
Nunca é demais lembrar a estratégia do governo brasileiro de se ver livre dos índios. Neste ano de 1978, o governo era obrigado pela lei 6001, Estatuto do Índio, de demarcar todas as terras indígenas. Quanto mais se aproximava a data final, e não conseguindo se ver livre por lei através do projeto da Emancipação, era necessário calar as vozes e forças aliadas dos índios. Dentre os principais estava o Cimi. É neste contexto que veio semelhantes ameaças, criminalizações e assassinatos.
Fica o ditado popular sobre a vida valer a pena quando a alma não é pequena. Nenhuma ameaça tira a beleza da vida e da causa abraçada com todo amor e carinho. O Cimi tem sido o espaço dessa doação da vida pela causa dos povos indígenas.
Na boca da morte
Tempo de conhecer a dura realidade dos povos e populações do Rio Jutaí/AM: carregamos o barco de remédios, alimentos e esperança. Muitas esperanças. Sol causticante, causticante e muita malária foram encontrados. Nossa medicação foi rapidamente se acabando.
Quando já estávamos chegando no alto rio Juruázinho, comecei sentir os sintomas da malária. Calafrios e frios pelo corpo todo em determinados horários. O nosso remédio já havia acabado. Fui debilitando, a cada crise uma sensação de estar delirando. O jeito foi apressar a ida para Eirunepé/Am, no rio Juruá. Momentos de delírio davam a nítida impressão de estar batendo na porta do Céu. Porém, quem lá cuidava se apurava em vir me advertir: “volta, tua vez ainda não chegou. Vais ter que ralar ainda um bocado, antes da chegada definitiva”. E lá abria os olhos e via meus companheiros de trabalho. Comecei a temer pelo fim da minha jornada nesta floresta da Amazônia.
Antes de a noite nos visitar mais uma vez, decidimos juntos, imediatamente, nos colocarmos a caminho de Eirunepé. Porém, minhas energias estavam debilitadas. Não consegui mais caminhar. De forma rápida cortaram uma madeira, penduraram a rede e afundamos o pé na mata. Os momentos de delírio aumentavam. Depois de andar por mais de uma hora, os seringueiros sentiram dificuldade em continuar andando no varadouro. Juntaram umas palhas, amarraram a rede em duas árvores e tentamos fechar os olhos. Em vão. A situação era crítica e não dava para esperar. E lá, nós, mata adentro. Uma decisão providencial foi enviar um dos seringueiros a Eirunepé para conseguir uma condução que nos viesse apanhar no início da estrada. Quando avistei a estrada e o carro, foi como uma injeção de ânimo… em menos de uma hora estávamos no hospital. Imediatamente foram feitos os exames mais urgentes. Estava branco. Não era para menos. A hemoglobina apontou a gravidade. Mais meia hora e eu estaria apagado. Imediatamente procuraram sangue para fazer transfusão. Não encontrando o sangue compatível, imediatamente acionaram o Frei Fulgêncio, em Manaus, que conseguiu dois litros doados por um pastor evangélico. Talvez esse sangue estimulara meu diálogo ecumênico.
Lentamente fui me recuperando da malária Vivax, duas cruzes. Se fosse Falciparum certamente não teria aguentado. Depois fiquei mais um tempo na casa das Irmãs me recuperando. Segui de volta depois de ter passado por um fio no batismo na Amazônia.
Mais um irmão
Lágrimas quentes deslizaram sobre a face quando comuniquei, no secretariado nacional do Cimi, que estava com Parkson. O irmão Parkson é como respeitosamente se referia Dom Pero Casaldáliga se referia a esse mal: “Tirante o irmão Parkson, de saúde vou 100%, graças a Deus”. Passo a ter mais um irmão. Se éramos nove, agora somos dez.
Gratidão
Poderia ser temerário e até injusto fazer referências a algum povo indígena com quem tive o imenso prazer de aprender dia após dia a grandeza, beleza e dignidade de cada uma das centenas de povos com os quais pude partilhar pedaços do caminho desse quase meio século de indigenismo missionário. Vi, senti e partilhei de muitos momentos de dor e sofrimento. Mas, em especial, partilhei muitos momentos de felicidade e alegria. Em especial profundos momentos de espiritualidade. Os indígenas me converteram. Devo a eles eterna gratidão e aos companheiros e companheiras do Cimi e tantos com quem tive a honra de caminhar e ser feliz.
Causos e Casos
Iniciada na edição de abril de 2021, a coluna “Causos e Casos” é um especial dos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário que traz textos assinados por Egon Heck e Egydio Schwade, dois dos fundadores do Cimi e militantes da causa indígena brasileira antes mesmo da criação da entidade. É a comemoração do cinquentenário por meio do reconhecimento da contribuição do Cimi para o desenvolvimento da causa indigenista a partir de seus missionários e missionárias, aqui representados por Egon Heck e Egydio Schwade, figuras históricas de luta que contribuem fortemente para a atuação missionária junto aos povos originários, dando um novo sentido ao trabalho missionário da igreja católica.
As histórias da “Causos e Casos”, escritas especialmente para esta coluna, mostrará que a atuação missionária, além de favorecer a articulação entre aldeias e povos, promovendo as grandes assembleias indígenas, onde se desenharam os primeiros contornos da luta pela garantia do direito à diversidade cultural; também fomenta espaços políticos e estratégias para o fortalecimento do protagonismo indígena.
Egon Heck e Egydio Schwade relatam causos e casos com propriedade, pois, desde os primórdios, fizeram parte das linhas de ação do Cimi, sendo impossível separar suas vidas da causa indígena brasileira. Engajados com as comunidades desde a juventude, eles compartilham dos mesmos sentimentos dos povos originários e adotaram a causa como parte integral de suas trajetórias.
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*Egon Heck é ex-padre, formado em Teologia e em Filosofia, com pós-graduação em Ciência Política e lutou, e ainda luta, bravamente ao lado de comunidades indígenas em todo o país, contrariando toda carga cultural e ideológica de preconceito contra os povos indígenas a que esteve exposto em sua própria família e diante da política de inúmeros (des)governos.