28/04/2022

Projeto oferece formação para professores indígenas e ribeirinhos de classes multisseriadas na região do médio rio Purus (AM)

Observatório em Educação do Campo/Floresta e Indígena da região do médio Purus, integrado pelo Cimi, contribui com formação em escolas de Lábrea, Canutama e Pauini, no Amazonas

Curso de Formação Inicial e Continuada para classes multisseriadas da educação escolar indígena e ribeirinha, em Lábrea (AM). Foto: Quezia Martins Chaves/Cimi Regional Norte 1

Curso de Formação Inicial e Continuada para classes multisseriadas da educação escolar indígena e ribeirinha, em Lábrea (AM). Foto: Quezia Martins Chaves/Cimi Regional Norte 1

Por Lígia Kloster Apel, da Assessoria de Comunicação do Cimi Regional Norte 1

As classes multisseriadas são, ainda, uma realidade da educação nas áreas rurais brasileiras. Consistem em salas de aula que reúnem diferentes séries, com estudantes de diferentes faixas etárias, que estudam diferentes conteúdos com um mesmo professor. Dá para imaginar o tamanho do desafio que alunos e professores enfrentam para que o processo de ensino e aprendizagem aconteça.

Foi na perspectiva de oferecer uma nova proposta metodológica para esses professores que a equipe do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Norte 1 que atua na região do médio rio Purus somou suas forças com o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (IFAM) de Lábrea, no Amazonas, e outras seis instituições parceiras – entre elas, a Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus (Focimp). Esse coletivo vem desenvolvendo uma série de atividades educativas e de pesquisa sobre a educação rural da região.

Entre essas atividades estão os cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC) para professores de classes multisseriadas do campo, da floresta e indígenas, que estão sendo realizados nos municípios de Pauini, Lábrea e Canutama, e que fazem parte do Observatório em Educação do Campo/Floresta e Indígena da Região do Médio Purus (OECFIMP).

Em Lábrea, o primeiro curso aconteceu de 18 a 21 de abril e reuniu 115 professores, entre eles professores indígenas dos povos Jarawara, Jamamadi e Palmari.

“A relevância do Observatório para essa região está em apoiar a prática pedagógica dos professores e oferecer a eles formação para que possam ter uma prática mais reflexiva, qualificando a educação escolar na formação de cidadãos críticos, pensantes e atuantes”

Curso de Formação Inicial e Continuada para classes multisseriadas da educação escolar indígena e ribeirinha, em Lábrea (AM). Foto: Quezia Martins Chaves/Cimi Regional Norte 1

Curso de Formação Inicial e Continuada para classes multisseriadas da educação escolar indígena e ribeirinha, em Lábrea (AM). Foto: Quezia Martins Chaves/Cimi Regional Norte 1

Para a missionária do Cimi Quezia Martins Chaves, participar do Observatório significa estar junto com educadores e instituições de ensino na construção de processos de melhorias da educação escolar indígena.

“O Cimi é um apoiador da luta dos povos indígenas por políticas públicas adequadas e específicas. E, em se tratando de educação, a relevância do Observatório para essa região está justamente em apoiar a prática pedagógica dos professores e oferecer a eles uma formação inicial e continuada, para que possam ter uma prática mais reflexiva, qualificando a educação escolar na formação de cidadãos críticos, pensantes e atuantes”, relata a missionária.

Quézia explica que o propósito do projeto é “diagnosticar a realidade educacional e social no estado do Amazonas, envolvendo especialmente os municípios de Canutama, Lábrea e Pauini, situados na calha do Rio Purus”, através de “levantamentos sistemáticos de informações, monitoramento das ações ligadas às políticas públicas de educação do campo, da floresta e de indígenas”.

Também está prevista a “criação de um banco de dados consistente, que possa servir de análise para implementação de políticas públicas e melhoria da educação na região”.

Levantar as informações, analisá-las e oferecer capacitação metodológica à luz da realidade são essenciais para o incremento das práticas pedagógicas e a incidência nas políticas de educação. Mas é importante também que caminhos sejam construídos e apontados. Nesse sentido, o projeto prevê a organização de um “tipiti de soluções”.

A proposta faz alusão à secular tecnologia indígena de beneficiamento da mandioca para fazer farinha, o tipiti, que reúne e permite retirar o melhor de um dos produtos mais importantes da alimentação da população amazônica.

Assim, a ideia é “organizar e reunir as reflexões e proposições baseadas nos conhecimentos coletados e que dizem respeito às metodologias, ações e propostas docentes exitosas”, descreve o projeto, visando soluções no enfrentamento dos desafios. Ou seja, busca-se selecionar e compartilhar o que de melhor se tem nas experiências da educação escolar da região.

“Os professores indígenas não têm material específico para trabalhar em salas de aula multisseriadas e, muito menos, material na língua deles. Então, precisamos desse material também, até para a valorização de suas culturas”

Curso de Formação Inicial e Continuada para classes multisseriadas da educação escolar indígena e ribeirinha, em Lábrea (AM). Foto: Quezia Martins Chaves/Cimi Regional Norte 1

Curso de Formação Inicial e Continuada para classes multisseriadas da educação escolar indígena e ribeirinha, em Lábrea (AM). Foto: Quezia Martins Chaves/Cimi Regional Norte 1

O olhar pedagógico indígena

Trazendo as referências conceituais de Paulo Freire e sua Pedagogia da Autonomia, e seguindo a metodologia dos temas geradores, os cursos propõem aos professores “organizar as aulas a partir das vivências dos alunos, da realidade da aldeia, valorizando a oralidade como fonte de conhecimento e fortalecimento da identidade cultural de cada povo”.

Andrea Prado, pedagoga do IFAM e pesquisadora do projeto, identifica como principal desafio das salas multisseriadas, justamente, a metodologia de ensino. Ela explica que a proposta é atender alunos e professores para que o processo de ensino/aprendizagem aconteça com qualidade. Um desafio duplicado quando se trata da educação escolar indígena.

“Você tem um aluno que está no primeiro ano, mas você também tem um aluno que está no nono [ano], dentro de uma mesma sala”, explica Andrea. Ela comenta que, entre outros problemas, há ausência de material de apoio e, em situações mais desoladoras, os professores indígenas não contam com nenhum material específico sobre sua cultura para trabalhar.

“Os professores indígenas não têm material específico para trabalhar em salas de aula multisseriadas e, muito menos, material na língua deles. Então, precisamos desse material também, até para a valorização de suas culturas”, avalia.

“Na proposta paulofreiriana”, explica a pedagoga, “trabalhamos o letramento e o numeroamento, que tem como base o desenvolvimento da alfabetização, mas baseada no desenvolvimento também da criticidade do aluno. Então ela não vem numa proposta tradicional”, resgata Prado.

“O aluno não começa a fazer a leitura a partir das letras, depois sílabas, depois palavras e depois textos. Mas a partir de alguns textos, as palavras, dentro de temas geradores, promovem o debate com e entre os alunos. Porque é uma proposta de desenvolvimento de criticidade”, explica a pedagoga.

Na nova proposta do curso de formação para professores de salas multisseriadas, “apresentar aos professores um outro formato, um outro jeito de desenvolver as atividades nessas classes”, a vida da aldeia deve estar presente no contexto da escola.

“Uma pescaria coletiva, a abertura de um roçado para alimentação escolar, a limpeza do terreno em volta da escola, uma caçada, e outras atividades próprias da comunidade, tais eventos fazem a ponte entre o saber escolar e os conhecimentos tradicionais”

Curso de Formação Inicial e Continuada para classes multisseriadas da educação escolar indígena e ribeirinha, em Lábrea (AM). Foto: Quezia Martins Chaves/Cimi Regional Norte 1

Curso de Formação Inicial e Continuada para classes multisseriadas da educação escolar indígena e ribeirinha, em Lábrea (AM). Foto: Quezia Martins Chaves/Cimi Regional Norte 1

“Uma pescaria coletiva, a abertura de um roçado para alimentação escolar, a limpeza do terreno em volta da escola, uma caçada, e outras atividades próprias da comunidade”, diz Prado, reforçando os laços existentes entre a escola e a comunidade: “tais eventos fazem a ponte entre o saber escolar e os conhecimentos tradicionais”.

Dessa forma, a função que o professor indígena desempenha é a de mediador dos conhecimentos. Ele assume a posição de professor pesquisador, “aquele que busca e produz conhecimento, organiza materiais para trabalhar em sala de aula, mediando e articulando as informações entre a aldeia, a escola e a sociedade”, define a proposta dos FIC.

Essa perspectiva cativou a equipe do Cimi de Lábrea pela possibilidade concreta de unir conhecimentos e construir junto com os professores indígenas, as metodologias eficientes.

“A ideia do curso é discutir metodologias de ensino que possam facilitar a prática dos professores indígenas, que possam desenvolver uma atuação reflexiva e crítica, e propor também um ensino contextualizado, um ensino que faça sentido para essas populações”, conclui Quézia.

Para o professor Gleison Apurinã, que virou aluno no curso FIC e que também é coordenador da Associação dos Professores Indígenas do Município de Lábrea (AMPILA), o curso chegou em boa hora.

“Eu agradeço às instituições envolvidas nesse curso do observatório, que é de suma importância para nós professores indígenas, principalmente. Nós passamos por dificuldades nas nossas escolas indígenas por trabalhar com turmas multisseriadas, multidisciplinares, várias turmas. Temos dificuldade para desenvolver um bom trabalho, então esse curso chegou em boa hora”, diz Gleison.

A professora Francinete Dias de Freitas, também do povo Apurinã, tem a certeza de que “esse curso vai trazer muitos benefícios para nós, principalmente nas metodologias aplicadas em sala de aula multisseriadas. A gente precisa, como profissional da educação, cada dia se qualificar cada vez mais e esse observatório veio enriquecer as nossas metodologias, práticas de sala de aula”, afirma. Ela se diz admirada com o aprendizado e deseja que outras versões do curso sejam oportunizadas.

Correspondendo com o desejo da professora, Andrea Prado explica que o curso, por ser de Formação Inicial e Continuada com carga horária de 180 horas, possui etapas.

“A primeira parte é presencial, mas depois há continuidade. Eles ficam com o material produzido com as sugestões metodológicas para desenvolver a outra parte, que é a aplicação delas em sala de aula. Em outro momento, então, é verificado se conseguiram aplicar as metodologias e se elas foram realmente efetivas”, explica.

“É preciso dar mais atenção às escolas que tem classes multisseriadas”

Curso de Formação Inicial e Continuada para classes multisseriadas da educação escolar indígena e ribeirinha, em Lábrea (AM). Foto: Quezia Martins Chaves/Cimi Regional Norte 1

Curso de Formação Inicial e Continuada para classes multisseriadas da educação escolar indígena e ribeirinha, em Lábrea (AM). Foto: Quezia Martins Chaves/Cimi Regional Norte 1

Uma avaliação amplificada

Diante dos diversos desafios enfrentados na sala de aula, um deles é colocado pela pedagoga como crucial: “os desafios são enormes, porque os professore sofrem de um certo abandono do poder público. Porque ninguém vai aonde estão essas salas de aula multisseriadas, ninguém pensa uma proposta de formação para esses professores em específico”, aponta Prado, e avalia:

“Eu avalio que o curso foi um momento muito proveitoso e um momento importante, que precisa ser repensado pelo poder público. É preciso dar mais atenção às escolas que tem classes multisseriadas”.

Enquanto essa atenção é morosa e, muitas vezes, inexistente, as instituições locais contribuem com projetos de educação como esse. Os professores avaliam e Prado confirma que “esses dias que convivemos presencialmente foram importantes, principalmente, por levar a eles uma outra forma, uma outra metodologia, uma outra proposta que eles podem trabalhar, que vai além daquela forma tradicional que estão acostumados a ver e que, pelas próprias palavras deles, não atende as classes de aula multisseriadas”, conclui a pedagoga.

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