Povo Deni: a vitória da vida
Texto da coluna “Causos e Casos”, um especial do Jornal Porantim em comemoração aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário
Neste quase um século de presença e apoio solidário junto aos povos indígenas do Brasil, a situação mais dramática que encontrei foi sem dúvida do Povo Deni do Xeruãn/Jurua.
Quando chegamos às suas aldeias, encontramos um povo prostrado, sendo amordaçado e vitimado por um surto de tuberculose que, na década de 70, foi lentamente exterminando esse povo. Era visível o momento de desespero. Ouvimos inúmeras vezes a descrição do drama: é tudo assim. Começa tossir, fica magro, vomita sangue e morre. A tuberculose ia se espalhando rapidamente. Quando perguntamos se muita gente já tinha morrido, começaram a citar a lista dos que morreram com os mesmos sintomas. Tinham dificuldade de precisar as datas das mortes. Descemos imediatamente para Carauari para solicitar apoio urgente. Levamos alguns já em estado mais grave conosco no barco até Carauari para dali encaminhar imediatamente para Manaus. Nos comprometemos de tomar medidas urgentes. Em Carauari, onde a Petrobras tinha uma grande estrutura para exploração de gás, conseguimos um helicóptero e um médico enviado pela Funai. Retornamos imediatamente para as aldeias Deni.
Para espanto e indignação nossa, o médico ficava quase o dia todo na rede. Indagado porque ele não se empenhava para ver como estancar essa mortandade, ele simplesmente dizia que não se fazia preciso. Apenas fez uma biópsia de uma pereba.
Graças ao empenho da paróquia de Carauari e da pastoral indigenista de Tefé, o surto de tuberculose passou a ser estancado. Mesmo assim a burocracia da Funai fez com que o processo fosse bem mais lento do que poderia se esperar. Visitei várias vezes o grupo de Deni na casa do índio em Manaus. Teve um momento em que um grupo de uns dez indígenas tinham terminado o tratamento e tiveram que esperar mais de meio ano para serem encaminhados de volta para suas aldeias.
Ao comemorar os 50 anos da OPAN – 6 de fevereiro de 2019 – fiquei muito feliz por ser informado de que os Deni estavam muito bem no seu processo de vida e autonomia. E que tinham se emocionado com a mensagem que gravei para eles por ocasião de uma grande Assembleia.
Mataram kiwxi, mataram Kiwi
Após algumas horas de subida do Rio Juruena, chegamos à aldeia dos Enawene Nawe. Logo foi se fazendo um alvoroço no porto em que encostamos a canoa. Não demorou em ouvir os gritos dos indígenas “Mataram kiwi, mataram kiwi”, e alguns apontando as flechas em nossa direção… “Vocês mataram Kiwixi”. Um frio na espinha. Tomas Lisboa se esforçou em afirmar que mataram Kiwixi. “Os jagunços mataram Kiwixi. Nós fomos visita-lo e encontramos ele morto. Mataram Kiwixi”. Depois de algum tempo de tensão e nervosismo, uma das lideranças pediu que descêssemos da canoa e nos conduziu para a aldeia. Novo esforço de comunicar a trágica notícia do assassinato do Vicente Kiwxi.
Aos poucos os guerreiros foram se retirando e a liderança nos conduziu parra a sua casa. Foi combinado que no outro dia cedo descríamos até o barraco do Vicente. Um ar menos tenso encobriu a aldeia. Tentamos entender melhor a animosidade dos Enawenê. Fomos depois informados que essa animosidade se devia à tensão dos indígenas provocado por um sobrevoo rasante que a Funai teria feito uma semana atrás. Certamente, esse fato concorreu para que estivessem extremamente irritados. Algumas perguntas ficam sepultadas no silêncio da floresta.
Causos e Casos
Iniciada na edição de abril de 2021, a coluna “Causos e Casos” é um especial rumo aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário, que traz textos assinados por Egon Heck e Egydio Schwade, dois dos fundadores do Cimi e militantes da causa indígena brasileira antes mesmo da criação da entidade.
É a comemoração do cinquentenário por meio do reconhecimento da contribuição do Cimi para o desenvolvimento da causa indigenista a partir de seus missionários e missionárias, aqui representados por Egon Heck e Egydio Schwade. Figuras históricas de luta que contribuem fortemente para a atuação missionária junto aos povos originários, dando um novo sentido ao trabalho da igreja católica.
As histórias da “Causos e Casos”, escritas especialmente para esta coluna, mostrará que a atuação missionária, além de favorecer a articulação entre aldeias e povos, promovendo as grandes assembleias indígenas, onde se desenharam os primeiros contornos da luta pela garantia do direito à diversidade cultural; também fomenta espaços políticos e estratégias para o fortalecimento do protagonismo indígena.
Egon Heck e Egydio Schwade relatam causos e casos com propriedade, pois, desde os primórdios, fizeram parte das linhas de ação do Cimi, sendo impossível separar suas vidas da causa indígena brasileira. Engajados com as comunidades desde a juventude, eles compartilham dos mesmos sentimentos dos povos originários e adotaram a causa como parte integral de suas trajetórias.
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*Egon Heck é ex-padre, formado em Teologia e em Filosofia, com pós-graduação em Ciência Política e lutou, e ainda luta, bravamente ao lado de comunidades indígenas em todo o país, contrariando toda carga cultural e ideológica de preconceito contra os povos indígenas a que esteve exposto em sua própria família e diante da política de inúmeros (des)governos.