13/01/2022

A morte de Rodolfo e Simão

Texto da coluna “Causos e Casos”, um especial do Jornal Porantim em comemoração aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário

Por Egydio Schwade* – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 441 DO JORNAL PORANTIM

Pelas 7:30hs da manhã, do dia 15 de julho de 1976, me despedi do Pe. Rodolfo Lunkenbein e do povo Bororo na aldeia de Meruri/MT. No mesmo dia, à noite, quando bati na porta da casa paroquial dos padres Claretianos, em Goiânia, ainda ouvi a toada final do Jornal Nacional. O Padre que me abriu a porta, com feições marcadamente perplexas, me pergunta: “Egydio, de onde você vem?” Quando disse que vinha de Meruri, me perguntou: Como está o Pe. Rodolfo!”? Respondi: “Ele está bem”! Percebi então que alguém cochichou lá dentro querendo interromper o padre para não me assustar, mas ele diz instintivamente: “Mataram o Pe. Rodolfo hoje de manhã. Acabamos de ouvir no Jornal Nacional.”

No dia seguinte, cedo, voltei para Meruri com D. Tomás Balduino, então presidente do Cimi. D. Tomás era piloto e fomos com o seu aviãozinho. Em Meruri, reinava um clima de extrema tensão, mantido sob controle por um grupo de guerreiros xavantes que, de rifle em punho, protegiam a aldeia contra qualquer novo ataque dos fazendeiros.

Sob este forte clima de tensão, acompanhei, na mesma tarde, um irmão salesiano que foi buscar companheiros padres em Barra do Garças. Já era noite quando voltamos à Meruri. Todos silenciosos, reflexivos, tristonhos. De repente, um padre, também salesiano, professor de colégio, sentado do meu lado, colocando as duas mãos sobre a cabeça, interrompe o silêncio: “O P. Rodolfo foi um imprudente. O que será de nosso internato agora? Depois de tudo isso os fazendeiros não vão mais enviar os seus filhos para a nossa escola!”.

E na homilia da missa de corpo presente do Pe. Rodolfo, o bispo de Guiratinga, D.Camilo Farisin comparava o martírio de Rodolfo com o massacre de dois outros salesianos, missionários entre os Xavantes na mesma região, na década de 1930. Os dois acontecimentos não tinham nada em comum, a não ser o fato de envolverem três confrades salesianos. Enquanto os dois primeiros morreram como tantos outros missionários, colonizadores e invasores, nos 500 anos de resistência indígena, ali em Meruri, selara-se uma nova presença missionária. O missionário morrendo pelo índio e o índio morrendo pelo missionário. Xavantes e Bororos sentiram e entenderam melhor esse novo momento: ali se selou uma aliança no sangue.

À frente do bispo, os Bororo choravam em prolongados lamentos, a morte do amigo Pe. Rodolfo e do irmão Simão, bororo, esquecido na homilia do bispo, morto ao lado do padre, “irmãos de sangue” – como diziam – ambos martirizados por fazendeiros. E os guerreiros Xavantes, de rifle em punho, cercavam a Missão, prontos para defender índios e missionários em caso de novo ataque.

Poucos meses antes, na III Assembleia Nacional Indígena, realizada ali perto em outra aldeia bororo, Aidje Bororo dizia: “A gente tem que defender o que é da gente. A gente tem que morrer pelo que é da gente”. E Chibae Ewororo, acrescentava: “Como sabemos tem muitos padres que estão sofrendo e lutando conosco”. E Aidje continuou: “Temos que reparar de onde recebemos benefícios. Estamos dispostos a se sacrificar por um missionário, se acontecer alguma desgraça com ele. Tive notícia de que um teve pena de 10 anos de cadeia em Campo Grande, por causa da questão do índio. (Tratava-se do Pe. Francisco Gentel da Prelazia de São Félix do Araguaia, francês, perseguido, preso e, finalmente, deportado pelo governo militar). Por causa da questão de terras. Estamos dispostos a arrancar as unhas por quem nos faz bem”.

Se a maioria dos Bispos, como D. Camilo, não conseguiram entender os novos caminhos desencadeados pela Igreja Missionária, não assim os índios e demais oprimidos, que, sentindo os efeitos dessa mudança, mudaram a sua atitude. O sinal visível estava ali: Xavantes, velhos e jovens, de rifle em punho, com certeza conhecedores da história dos missionários salesianos flechados em tempos idos, identificados como invasores de suas terras ou como gente que veio para amolecê-los e oferecer “franca entrada naquele sertão, favorecendo a todos a extração da borracha e outros produtos, inclusive, infelizmente, o garimpo que será causa de desavenças e desastres morais”. Como descreve, com “santo orgulho”, D. Pedro Massa, ex-Bispo da Prelazia do Rio Negro, os efeitos da ação missionária em seu livro “De Tupã a Cristo”. Essa missão trazia a morte para o povo indígena. A missão salesiana que os bororo e Xavante sentiram nascer em Meruri, com Pe. Rodolfo e o Cimi, lhes anunciava a vida.

Tanto o sermão de D.Camilo, como o desabafo do colega salesiano poucas horas após o martírio de Rodolfo e Simão, pela causa dos Bororo, exprimem a atitude missionária tradicional, do harmonioso convívio com o opressor, ocultando o processo etnocida de integração, sempre desfavorável ao índio.

 

Causos e Casos

Iniciada na edição de abril de 2021, a coluna “Causos e Casos” é um especial rumo aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário, que traz textos assinados por Egon Heck e Egydio Schwade, dois dos fundadores do Cimi e militantes da causa indígena brasileira antes mesmo da criação da entidade.

É a comemoração do cinquentenário por meio do reconhecimento da contribuição do Cimi para o desenvolvimento da causa indigenista a partir de seus missionários e missionárias, aqui representados por Egon Heck e Egydio Schwade. Figuras históricas de luta que contribuem fortemente para a atuação missionária junto aos povos originários, dando um novo sentido ao trabalho da igreja católica.

As histórias da “Causos e Casos”, escritas especialmente para esta coluna, mostrará que a atuação missionária, além de favorecer a articulação entre aldeias e povos, promovendo as grandes assembleias indígenas, onde se desenharam os primeiros contornos da luta pela garantia do direito à diversidade cultural; também fomenta espaços políticos e estratégias para o fortalecimento do protagonismo indígena.

Egon Heck e Egydio Schwade relatam causos e casos com propriedade, pois, desde os primórdios, fizeram parte das linhas de ação do Cimi, sendo impossível separar suas vidas da causa indígena brasileira. Engajados com as comunidades desde a juventude, eles compartilham dos mesmos sentimentos dos povos originários e adotaram a causa como parte integral de suas trajetórias.

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* Egydio Schwade é indigenista, pesquisador, apicultor, ativista e cidadão do Estado do Amazonas, título concedido pela Assembleia Legislativa daquele Estado pela dedicação em prol dos povos indígenas da Amazônia. Relação que se iniciou em 1963, num momento em que os povos daquela região eram dizimados, tendo seus territórios rasgados por estradas, invadidos, saqueados e sendo sistematicamente desqualificados e discriminados nas suas formas de ser e agir.

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