13/12/2021

Tentativa de assassinato: dois dias de tensão medo e terror

Texto da coluna “Causos e Casos”, um especial do Jornal Porantim em comemoração aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário

Ilustração Mariosan

Por Egon Heck* – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 440 DO JORNAL PORANTIM

Eu, Egon Dionísio Heck, brasileiro, natural de Giruá/RS, residente em Manaus, trabalhando no Conselho Indigenista Missionário – Cimi, Regional Norte I, e na causa indígena há 27 anos, faço o registro dos acontecimentos para as autoridades deste país e opinião pública, no intuito de contribuir com a verdade, a justiça, a liberdade e a construção da democracia. Procurarei relatar o que presenciei, vi, senti e ouvi durante os dias 10 e 11 de fevereiro de 1999, na vila de Uiramutã, a 300 km ao norte de Boa Vista, próximo à fronteira com a Guiana, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol.

Em Roraima, os Tuxauas e lideranças indígenas encerram mais uma grande Assembleia, realizada na aldeia do Pium, de 4 a 8 de fevereiro, em que analisaram as violências que sofriam por parte dos fazendeiros, arrozeiros e seus jagunços. Ao ser convidado a visitar uma comunidade que havia sofrido forte ataque dos pistoleiros, confirmei minha disposição de acompanhá-los e contribuir com a denúncia de mais essa agressão aos povos indignas da Raposa Serra do Sol.

Após a Assembleia, 39 tuxauas da região da serra seguiram para a aldeia de Maturuca, para aprofundarem as decisões ali tomadas e fazerem a programação e encaminhamentos para todas as malocas da região. Chegando o dia 9, refletiram sobre os acontecimentos do evento, na aldeia de Willimon, quando foi baleado o índio Paulo César de Souza, de 46 anos, pelo fazendeiro Roberto Oliveira Rodrigues, morador da vila de Uiramutã, encontrando-se o índio ferido na UTI no hospital em Boa Vista. Diante desse acontecimento decidiram os tuxauas inteirarem-se dos fatos deslocando-se até a aldeia para conversarem com a comunidade, para poderem encaminhar documentos às autoridades pedindo providências.

No dia 10, partiram, cedo, para a aldeia de Willimon, distante daí há uns 27 km. O deslocamento deu-se no caminhão Mercedes Benz 1113, ano 82, doado aos índios pela diocese de Roraima. O mesmo era mantido pela comunidade sendo seu motorista o Dejaci, filho do tuxaua Jaci, habilitado com carteira profissional. Por solicitação do tuxaua Jaci do Maturuca e Orlando de Uiramutã, segui com o grupo para fazer o registro fotográfico.

Ali chegando, fomos verificar o local onde fora baleado o Paulo César, na cachoeira do Sarapó – rio Ailã, próximo à qual situa-se a maloca. O tuxaua Carlos Clementino reuniu-se com os demais tuxauas e membros da comunidade. Ali narraram detalhadamente os acontecimentos. A invasão por onze pessoas da vila num caminhão F4000, visivelmente embriagados, assustando as crianças, ofendendo os membros da comunidade. Quando o Paulo César chegou do trabalho, vendo as crianças gritando, tomou uma flecha e foi pedir explicação aos invasores. Estes foram logo lhe tomar a flecha, quando o fazendeiro Roberto Oliveira Rodrigues desferiu um tiro de revólver 38, perfurando o corpo do índio próximo ao coração, que começou a esvair-se em sangue, enquanto os agressores fugiram no caminhão.

Revoltados, os índios dirigiram-se ao sítio S. José, de Degas Batista, tio do autor do tiro, destruindo, parcialmente o telhado e partes da parede da casa. O motivo alegado para a violência era o de furto de gado. Era comum o furto de gado feito pelos próprios “brancos”, sendo a carne vendida em Pacaraima e a culpa atribuída aos índios.

A barreira policial na ponte de Uiramutã

Saindo do Willimon, foi feita uma parada na aldeia do Uiramutã para se comer algo, conforme combinado na ida. Por volta das ll horas partimos de retomo a Maturuca. Atravessamos a vila e, ao avistarmos a ponte, não avistamos ninguém ali. Porém, passados uns 300 metros, apareceram correndo, do lado oposto da ponte, três pessoas à paisana, de bermuda, com armas apontando para o caminhão, fazendo sinal de parar. Imediatamente o motorista parou o carro. Neste momento, apareceu correndo outro policial fardado com metralhadora. Fizeram sinal para desligar o motor e o motorista atendeu prontamente. Ordenaram às pessoas que estavam na cabine que descessem. Pediram que ficássemos de costas com as mãos encostadas na cabine do caminhão para efetuarem a revista.

Enquanto isso, alguns policiais foram subir na carroceria do caminhão para revistar os que ali estavam. Um deles (provavelmente o sargento Cleiber da Silva Castro – coordenador da operação) falou: “aqui quem manda sou eu – estou ordenando que desça todo mundo do caminhão”. Na medida que os índios foram descendo, eram encostados com as mãos na carroceria para a revista. Com a demora em descer, e estando algumas das mulheres falando em Macuxi, um dos policiais gritou – “deixem de falar na língua suas filhas da p., vão descendo logo”. Confesso que nunca vi aparato e prepotência igual, nem mesmo nos tempos da ditadura militar. Mais parecia uma operação de guerra, do que uma barreira para averiguação de transito.

A covarde tentativa de assassinato

Logo que Dejaci, motorista, Jaime, coordenador do conselho dos tuxauas da serra, Orlando, tuxaua da aldeia de Uiramutã e eu fomos revistados, ficamos ao lado da cabine do caminhão, estando ao nosso lado dois policiais. Nesse momento, se postou entre os policiais e na minha frente um sujeito de bermuda e camisa branca. Imaginei tratar-se de um membro da operação. Ele começou a perguntar quem eu era, de onde eu era, o que fazia ali. Permaneci em silêncio. O sujeito foi se alterando, erguendo a voz em tom ameaçador. Respondi então que era amigo dos índios. No que ele exclamou, em tom carregado de ódio e visivelmente transtornado: – Amigo? Amigo? Você é um sem vergonha, um safado, um bandido. Você, um branco como nós, ao invés de estar do nosso lado, devia ter vergonha de estar aí com esses caboclos ladrão…

Sentindo o tom ameaçador e provocativo, permaneci em silêncio e tentei me aproximar dos índios que estavam sendo revistados. Porém fui afastado por um policial, dizendo que eu já havia passado pela revista e deveria ficar do lado. Nesse momento, o mesmo sujeito postou-se novamente em minha frente gritando – de onde você é. Isso repetidas vezes e em tom cada vez mais alterado. Respondi: sou brasileiro, do Rio Grande do Sul. Enfurecido ele replicou – brasileiro? brasileiro? Você é um bandido, um terrorista, e outras palavras de baixo escalão. Nisso, vejo ele colocar a mão direita embaixo da camisa e desferi-lo sobre mim. Instintivamente dei um leve deslocamento do corpo e procurei me proteger deslocando os braços sobre o peito, e em direção à arma. Senti o baque forte do braço do agressor sobre as minhas mãos e peito. No mesmo instante gritei e sai correndo para trás dos índios que estavam sendo revistado. Após uns 30 metros encostei-me numa árvore, aos prantos, sem ter ainda constatado a dimensão da agressão. Olhei para a caminha, vi que estava furada, mas não vi sangue. Estava numa espécie de estado de choque e aos prantos. Fui então agarrado por policiais que me colocaram num Toyota que estava ali próximo e me levaram para o posto de saúde. Ali certifiquei-me de que, graças a Deus, nada de grave havia ocorrido. Tive ali um rápido atendimento, enquanto um policial tomava os dados para lavrar o fragrante e pedindo aos dois tuxauas, Orlando e Inácio que estavam ao meu lado, que servissem de testemunho.

Contou-me, posteriormente, o Dejaci, que logo após a primeira facada ele tentou uma segunda, sendo, porém, agarrado no braço pelos policiais que estavam ao seu lado. Foi no mesmo momento o agressor, Jarede Batista da Silva, 31, desarmado e preso. Contou ainda que um dos policiais gritou para trazerem algemas, obtendo resposta de que não havia ali. O que não é verdade pois eu vi um dos policiais com vários pares de algemas pendurados na cintura.

Dejaci contou também que outro morador do local conhecido como Chico Talo, aproximou-se duas vezes do local do conflito, armado com revólver na cintura, dando a nítida impressão de estar articulado no esquema de agressão.

Conforme narrou Iolanda Pereira da Silva – agente indígena de saúde que foi impedida de verificar a situação -, disseram que se tratava de um refém. Igualmente narrou a conversa que escutou de umas senhoras que estavam exultantes ao saberem que um padre havia sido esfaqueado. Porém, quando uma delas disse ter recebido informações de que não se tratava de um padre, mas sim de um jornalista, esta teria exclamado: Bá, então estamos fritos, pois ele vai divulgar toda a verdade.

 

Causos e Casos

Iniciada na edição de abril de 2021, a coluna “Causos e Casos” é um especial rumo aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário, que traz textos assinados por Egon Heck e Egydio Schwade, dois dos fundadores do Cimi e militantes da causa indígena brasileira antes mesmo da criação da entidade.

É a comemoração do cinquentenário por meio do reconhecimento da contribuição do Cimi para o desenvolvimento da causa indigenista a partir de seus missionários e missionárias, aqui representados por Egon Heck e Egydio Schwade. Figuras históricas de luta que contribuem fortemente para a atuação missionária junto aos povos originários, dando um novo sentido ao trabalho da igreja católica.

As histórias da “Causos e Casos”, escritas especialmente para esta coluna, mostrará que a atuação missionária, além de favorecer a articulação entre aldeias e povos, promovendo as grandes assembleias indígenas, onde se desenharam os primeiros contornos da luta pela garantia do direito à diversidade cultural; também fomenta espaços políticos e estratégias para o fortalecimento do protagonismo indígena.

Egon Heck e Egydio Schwade relatam causos e casos com propriedade, pois, desde os primórdios, fizeram parte das linhas de ação do Cimi, sendo impossível separar suas vidas da causa indígena brasileira. Engajados com as comunidades desde a juventude, eles compartilham dos mesmos sentimentos dos povos originários e adotaram a causa como parte integral de suas trajetórias.

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*Egon Heck é ex-padre, formado em Teologia e em Filosofia, com pós-graduação em Ciência Política e lutou, e ainda luta, bravamente ao lado de comunidades indígenas em todo o país, contrariando toda carga cultural e ideológica de preconceito contra os povos indígenas a que esteve exposto em sua própria família e diante da política de inúmeros (des)governos.

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