08/12/2021

Artigo | Discernimentos depois da Primeira Assembleia Eclesial

A real participação do povo de Deus, além da escuta, da presença numérica e de atividades executivas, dependerá de permanentes ajustes entre conversão sinodal e participação eclesial. Por Paulo Suess

Celebração na Basílica de São Pedro durante a abertura do Sínodo da Amazônia. Crédito da foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Por Paulo Suess, assessor teológico do Cimi

A continuidade da V Conferência Episcopal de Aparecida como Primeira Assembleia Eclesial do povo de Deus, realizada de maneira híbrida, fisicamente no México e virtualmente em dimensão continental, foi um balão de ensaio. A convocação dessa assembleia pelo Papa Francisco tinha dois objetivos:

– Primeiro, retomar sugestões de Aparecida que, no decorrer dos 14 anos desde a sua realização, não encontraram a devida atenção.
– Segundo, ampliar a base dos interlocutores na preparação, na realização e no encaminhamento das decisões de eventos semelhantes.

Na Evangelii gaudium (EG 113, cf. 239), de 2013, o Papa Francisco refere-se a essa base mais ampla: “Jesus não diz aos Apóstolos para formarem um grupo exclusivo, um grupo de elite. Jesus diz: «Ide, pois, fazei discípulos de todos os povos»” (Mt 28, 19). Pela pregação e o batismo, os apóstolos edificaram a Igreja e fizeram discípulos de todos os povos. Nessa Igreja, “cada ministro é um batizado entre os batizados” (Episcopalis Communio 10), cada bispo é “mestre e discípulo, […] discípulo quando, sabendo que o Espírito é doado a todo batizado, põe-se em escuta da voz de Cristo que fala através do inteiro povo de Deus, tornando-o `infalível in credendo´ (Episcopalis Communio 5)”. O Espírito, o qual guia o povo de Deus, transforma os batizados de “ouvidores” da hierarquia e de executores de decisões, das quais não participaram, em protagonistas da evangelização. “Como parte do seu mistério de amor pela humanidade, Deus dota a totalidade dos fiéis com um instinto da fé […]. A presença do Espírito confere aos cristãos certa conaturalidade com as realidades divinas […], embora não possuam os meios adequados para expressá-las com precisão” (EG 119).

Ao lembrar o Vaticano II (cf. Lumen gentium 12), o papa ainda considera que, por conseguinte “não seria apropriado pensar em um esquema de evangelização realizado por agentes qualificados enquanto o resto do povo fiel seria apenas receptor das suas ações. A nova evangelização deve implicar um novo protagonismo de cada um dos batizados” (EG 120). A realização desse “novo protagonismo” inspirou a transformação de uma esperada “VI Conferência Episcopal” em “Primeira Assembleia Eclesial”, uma proposta realmente profética em continuidade ao Concílio Vaticano II e ao magistério latino-americano e caribenho posterior.

1. Continuidade

Na origem da “Primeira Assembleia Eclesial”, pela proposta de seu conteúdo e a prática de sua metodologia, está o Concílio Vaticano II e o magistério latino-americano e caribenho. Nem o fato de que a “Assembleia Eclesial” foi declarada início de um processo, justificaria um distanciamento além daquele que a própria história impõe aos caminhantes desses dois referenciais. Também o Vaticano II e as Conferências Episcopais desencadearam processos nas comunidades, paróquias e faculdades de teologia, através de seus Documentos e suas Conclusões. A “Primeira Assembleia Eclesial” e sua bandeira da “conversão sinodal” não significa ruptura, mas inserção e continuidade criativa em uma longa caminhada desde o Vaticano II (1961-65), Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007). A “Primeira Assembleia Eclesial” não começa em um marco zero imaginado, mas faz parte de uma caminhada histórica concreta.

2. Consenso

Os eventos referenciais da “Primeira Assembleia Eclesial”, seus conteúdos e métodos, foram resultado de calorosas discussões. Em nenhum desses eventos e processos que geravam, havia unanimidade. Basta ler as votações finais dos documentos do Vaticano II para se dar conta da realidade histórica, na qual precisamos aprender a viver com consensos sofridos e plurais que não significam unanimidade. Basta reconstruir as discussões em torno da eclesiologia do Vaticano II, nas quais a eclesiologia de “comunhão” e “mistério”, defendida pelo cardeal Ratzinger, e a eclesiologia de “povo de Deus”, na base do capítulo II da Lumen Gentium e defendida por setores em torno da Teologia da Libertação e do Terceiro Mundo foram disputadas.

Unanimidade caracteriza regimes autoritários. “A lógica da encarnação”, nos lembrou o “Documento Final do Sínodo para a Amazônia”, contribui necessariamente para um “rosto pluriforme” da Igreja, “enraizada em muitas culturas diferentes” (DFSA 91). Não podemos esperar de sínodos ou assembleias eclesiais unanimidade, o que significaria desprezar a condição humana histórica e as contingências dos atores sociais. O Espírito pode transformar as diferenças entre as pessoas e povos, que por vezes são incômodas, “em dinamismo evangelizador” (EG 131, cf. 162). Sínodos e concílios nos ensinam a conviver com “uma realidade dinâmica” (FT 211) e a aceitar os condicionamentos históricos da verdade. “A expressão da verdade pode ser multiforme” (EG 41). Sua unidade é escatológica, quando veremos Deus face a face. Sínodos e assembleias eclesiais não precisam ter medo de divergências e discussões. Podem ser lugares de convivência civilizada e discussões produtivas entre setores diferentes da Igreja una e santa.

3. Clericalismo

Embora as conferências latino-americanas tenham sido episcopais, não se realizaram desarticuladas do conjunto do povo de Deus. A maioria dos delegados dessas conferências veio de realidades sofridas em suas dioceses e prelazias. Em seu conjunto, não se tratava de elites, e por causa disso não servem como exemplos de um clericalismo que precisa ser erradicado. Basta ler as respectivas Conclusões. Basta ler o Documento Final do “Sínodo [ainda episcopal] para a Amazônia” (DFSA) para sentir o zelo pastoral dos seus autores, em sua maioria clérigos. Contudo, mesmo as decisões pastorais corretas precisam da participação do povo de Deus ao qual se referem.

Com a palavra “clericalismo”, que de fato é um fenômeno abominável na Igreja, trata-se do uso e abuso do poder institucionalizado que mantém os leigos “à margem das decisões” (EG 102). Para sanar a Igreja desse “abuso do poder institucionalizado”, que pode ser clerical ou laical, o Papa Francisco propôs essa metamorfose da “Conferência Episcopal” em “Assembleia Eclesial”. A maioria estatística dos “assembleístas” foi composta de leigos e leigas. Na condução da assembleia, porém, o papel decisivo não foi deles, mas dos quadros institucionais do Celam, que cumpriu o papel que a Cúria Romana teve durante o Vaticano II. Ao iniciar seus trabalhos, a assembleia foi confrontada com o Programa Geral do evento, sem consulta ou possibilidade de alguma modificação. Tudo já estava previsto e decidido, como antigamente nos Cursilhos de Cristandade.

4. Participação

A perspectiva de uma real participação do povo de Deus na “Assembleia Eclesial” desencadeou grandes expectativas. É compreensível que essa participação não pode acontecer de uma dia para o outro. Convém lembrar uma frase programática de Aparecida sobre essa participação, válida para a e além da “Primeira Assembleia Eclesial”: Na realização da “conversão pastoral” da Igreja e da “renovação missionária das comunidades” (DAp 7.2), “os leigos devem participar do discernimento, da tomada de decisões, do planejamento e da execução” (DAp 371). A “Assembleia Eclesial” de 2021, convocada como “Assembleia do povo de Deus”, deve ser avaliada a partir dessa efetiva participação.

Essa “participação” já foi praticada no início do Concílio Vaticano II, quando a assembleia dos mais de dois mil padres conciliares presentes se declarou soberana, face aos esquemas preparados pela Cúria Romana. No final da primeira sessão conciliar, criou uma Comissão de Coordenação e rejeitou, salvo o esquema da liturgia, praticamente o restante dos 69 esquemas preparados. Também vale a pena reler o que a Conferência de Puebla (1979) propõe na terceira parte de suas Conclusões, sobre a prática ampla de participação na Igreja: “Evangelização na Igreja da América Latina: Comunhão e Participação” (DP 563-1127). A “conversão sinodal” exige “comunhão e participação” na busca de “novos caminhos eclesiais, sobretudo, na ministerialidade e sacramentalidade da Igreja” (DFSA 86).

Na “Síntese Narrativa”, que sistematizou a escuta das vozes do povo de Deus, antes da realização da “Assembleia Eclesial”, o anseio conceitual da “participação” é mais de duzentas vezes mencionado. Por conseguinte, pode-se presumir dessa assembleia uma forte vontade de maior e real participação em tudo aquilo que a Igreja propõe para servir à humanidade.

5. Autonomia

As Conferências Episcopais que precederam a “Primeira Assembleia Eclesial” iniciaram seus trabalhos com a constatação da soberania da assembleia, e com a consulta aos participantes sobre a possibilidade e qualidade de um Documento Final. Uma minoria, mais distante da realidade pastoral ou mais próxima à Cúria Romana, votou, geralmente, contra um Documento Final, mas foram exatamente as Conclusões das respectivas Conferências Episcopais que permitiram prolongar os eventos em processos frutíferos, os quais tiveram ampla participação nas Igrejas locais.

Ao receberem no início da “Assembleia Eclesial” o Programa Geral, os assembleístas souberam que a “Primeira Assembleia Eclesial” não produziria um Documento Final que significou o aviso de uma ruptura com as experiências bem sucedidas das Conferências Episcopais anteriores. Haveria no final, no sábado 27 de novembro, a “Apresentação de Conclusões” que se tornaram “Doze Desafios Pastorais”, os quais, quase em sua totalidade, já se encontram no Capítulo II da Evangelii gaudium, de 2013. Na computação dos votos, esses desafios foram matematicamente somados. Entretanto, “o Consensus Ecclesiae não resulta da contagem dos votos, mas é fruto da ação do Espírito, alma da única Igreja de Cristo” (Episcopalis Communio 7). Outras experiências pastorais e seus desafios, como as Comunidades Eclesiais de Base, as Missões Populares e os mártires nem foram mencionados. Os povos indígenas e afrodescendentes entraram de raspão como último desafio. Resultado austero para um evento tão esperado para abrir caminhos de uma ampla participação do povo de Deus na Igreja. A Assembleia foi conduzida para dar respostas a algo que não foi perguntado. No “ver”, que trata do levantamento da realidade, todas as Conferências Episcopais se desdobraram para identificar desafios. Agora é o tempo de os discípulos missionários assumirem a Igreja em saída. O que o papa disse sobre a “corresponsabilidade”, a “reabilitação e apoio das sociedades feridas” (Fratelli Tutti 77), é muito concreto e vale também para a Igreja.

Uma real participação do povo de Deus, além da escuta, da presença numérica e de atividades pastorais executivas, vai depender de permanentes ajustes entre conversão sinodal e participação eclesial. Esses ajustes necessitam humildade, vigilância, discernimento, coragem profética e lealdade eclesial. Os cinco discernimentos sobre continuidade, consenso, clericalismo, participação e autonomia na “Primeira Assembleia Eclesial”, fazem parte da recepção festiva que ela recebeu de seus organizadores, que merecem gratidão, e por parte de muitos assembleístas que, pela primeira vez, participaram de um evento dessa magnitude. O “discernimento evangélico da realidade” (cf. EG 45; 50) e “a alegria do Evangelho” são dons do Espírito. Ambos sustentam o ardor missionário.

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