Genocídio indígena é minimizado em relatório final da CPI da Pandemia
A forma como o governo federal conduziu a política indigenista, todavia, se mostrou oportuna a destruir total ou parcialmente as comunidades indígenas
A Covid-19 já matou 1.218 indígenas, deixando nas comunidades tradicionais o rastro do conjunto de agressões e negligências do governo federal. Questões que apontam para a ocorrência do crime de genocídio e que exigem a responsabilização dos respectivos culpados. Para tanto, veio o relatório da CPI, como o resultado de mais de seis meses de trabalho, centenas de horas de depoimentos e milhares de documentos que tentavam esclarecer como se deu a resposta do governo brasileiro à pandemia. O texto do relatório final da CPI, entretanto, retirou as acusações relativas aos crimes de homicídio qualificado e genocídio contra indígena, pois dividia o grupo de senadores que coordenava os trabalhos, conhecido como G7.
A forma como o governo federal conduziu a política indigenista, todavia, se mostrou oportuna a destruir total ou parcialmente as comunidades indígenas, bem como a causar intenso sofrimento aos povos originários. Prova disso foi, por exemplo, o veto do presidente a 14 dispositivos da Lei 14.021/2020. Entre as medidas aprovadas pelo Congresso Nacional e derrubadas por Bolsonaro estavam a obrigação de o governo fornecer água potável, higiene e leitos hospitalares a indígenas. Os povos originários ficaram então expostos e submetidos a condições de completa ou precária assistência, mas o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, entretanto, seguiu sem a acusação principal de genocídio e foi aprovado, no dia 26 de novembro, por 7 votos a 4.
Na véspera da apresentação do relatório final da CPI da Pandemia, a deputada Joenia Wapichana (Rede/RR), como coordenadora da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas (FPMDDPI), e um grupo de parlamentares e indigenistas, entre eles o Cimi, entregaram ao presidente da comissão, Omar Aziz (PSD/AM), um dossiê apresentando casos sobre ações do Executivo que expuseram populações tradicionais a riscos de contágio pelo novo coronavírus, além das inúmeras situações de omissões do governo no enfrentamento da pandemia.
Vale ressaltar que, diante do contexto indígena, o governo federal tinha conhecimento da vulnerabilidade histórica dos povos originários a epidemias, mas, a morosidade dos atos do governo federal permitiu que o vírus se alastrasse pelos territórios. E, quando o governo federal decidiu agir, pressionado pelo Supremo Tribunal Federal, ao invés de criar mecanismos para frear as invasões ilegais e criminosas, por exemplo, se baseou em informações falsas (fake news) e distribuiu kit Covid aos indígenas que, desde o início das políticas de confinamento, receberam uma quantidade excessiva de medicamentos sem comprovação de eficácia contra o novo coronavírus.
O relatório da CPI, de 1.299 páginas, todavia, ignorou os dados presentes no dossiê – que comprovam o genocídio indígena – e apontou para o indiciamento do presidente Jair Bolsonaro por outros nove crimes (menos o de genocídio), são eles: epidemia com resultado morte, infração de medida sanitária preventiva, charlatanismo, incitação ao crime, falsificação de documento particular, emprego irregular de verbas públicas, prevaricação, crimes contra a humanidade, nas modalidades extermínio, perseguição e outros atos desumanos, violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo.
Agora, na prática, o aprofundamento das investigações e o eventual oferecimento de denúncia dependem de outras instituições, já que a CPI não tem caráter punitivo, por se tratar de um tribunal político, e pode apenas recomendar indiciamentos. Como Bolsonaro é uma autoridade com foro privilegiado, cabe à Procuradoria-Geral da República (PGR) analisar e realizar o indiciamento. Ainda pode acontecer o compartilhamento das investigações realizadas pela CPI ao Ministério Público que fará o indiciamento dos citados. E, caso seja identificado crimes de responsabilidade contra Bolsonaro, o presidente Arthur Lira (PP-AL) avalia se irá pautar a Câmara dos Deputados para a abertura do processo de impeachment.
O Genocídio
O presidente da República é constantemente pressionado por entidades de defesa dos direitos dos povos originários por protagonizar um genocídio contra os povos indígenas, em especial, no contexto da pandemia. É clara e evidente a violação sistemática, pelo governo federal, dos direitos dos povos originários consagrados tanto na Constituição quanto em tratados internacionais assinados pelo Brasil, como a Convenção 169 da OIT e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas e Tribais.
Em 2019, Jair Bolsonaro foi denunciado perante o Tribunal Penal Internacional (TPI) por “crimes contra a humanidade” e “incitação ao genocídio de povos indígenas” do Brasil. O pedido foi protocolado pelo Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos e a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns para investigar as ações do atual governo que ameaçam a sobrevivência da população indígena. O TPI, em Haia, atua desde 2002 como primeiro tribunal permanente encarregado de julgar autores de genocídios, crimes contra a humanidade e crimes de guerra.
No dia 11 de julho de 2020, em referência à abstenção do governo federal no combate à pandemia, quando o país estava prestes a completar dois meses sem ter um ministro interino no Ministério da Saúde e ultrapassava 71,5 mil mortes por conta da doença – segundo boletim do consórcio de veículos de imprensa -, Gilmar Mendes afirmou em uma live que, se o objetivo de manter um militar à frente da Pasta é tirar o protagonismo do governo federal na crise, “o Exército está se associando a esse genocídio”.
Ainda em julho daquele ano, em evento do Instituto Brasileiro de Direito Público, o Ministro do STF voltou a utilizar a palavra genocídio para se referir às omissões do governo federal sobre os povos indígenas. Além disso, o Ministro Luís Roberto Barroso também usou o termo, em mais de uma ocasião, para se referir às ações do presidente da República, que ataca sistematicamente os direitos dos povos originários consagrados na Constituição de 1988.
Também em 2020, Jair Bolsonaro vetou da Lei 14.021/2020 – Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígena – o acesso universal à água potável, a distribuição gratuita de materiais de higiene, a oferta emergencial de leitos hospitalares e de unidade de terapia intensiva e a aquisição de ventiladores e máquinas de oxigenação sanguínea. Pontos cruciais para a garantia de sobrevivência dos povos indígenas no contexto da pandemia.
Dadas as ações do governo federal no trato à pandemia, especificamente àquelas destinadas à proteção dos povos indígenas e da crise institucional produzida, a utilização da palavra genocídio não parece ser inadequada. De acordo com o artigo 6º do Estatuto de Roma, o qual o Brasil é signatário, entende-se por genocídio, qualquer ato cometido com a intenção de destruir parcial ou totalmente um grupo devido a suas características, sejam elas nacional, étnico, racial ou religioso, atingindo os membros de um determinado grupo por meio de ofensa física ou mental, ou impor uma determinada condição ao grupo com a finalidade de provocar a destruição deste, ou mesmo impedir novos nascimentos. Destaca-se aqui a intencionalidade do autor como requisito para a tipificação dos seus atos, demandando provas da intenção.
“A partir da política de integração dos povos indígenas, portanto uma política intencional, o Governo Federal tem feito [por exemplo] a distribuição de medicamentos não comprovados cientificamente como a hidroxicloroquina e a ivermectina aos povos indígenas para o tratamento da covid-19, isso leva a um processo de genocídio, principalmente às populações de pouco contato”, destacou o secretário-executivo do Conselho Indigenista Missionários (Cimi), Antônio Eduardo Cerqueira em reunião para entrega de Dossiê ao presidente da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Pandemia, senador Omar Aziz (PSD-AM), sobre a disseminação da covid-19 entre os povos indígenas.