Em evento, povos indígenas e tradicionais compartilham desafios do atual contexto
O “Encontro dos Povos e Comunidades Tradicionais” reuniu representantes de povos originários e comunidades tradicionais de todo o país; no evento, foram partilhadas as principais lutas enfrentadas hoje
Cheiro dos biomas, da fauna, da flora e do mar. Cheiro da resistência dos povos originários. A partir desse compartilhamento de sensações, foi aberto o “Encontro da Comissão de Povos e Comunidades Tradicionais”, realizado nos dias 9 e 10 de novembro, no Centro de Formação Vicente Cañas, em Luziânia (GO). No momento inicial, cada pessoa se apresentou e levou para a roda da mística um “cheiro”, neste caso, uma memória de sua região. Esse foi o primeiro encontro presencial no espaço desde que a pandemia começou.
Estiveram presentes no evento representantes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), do Conselho Pastoral dos/das Pescadores/as (CPP), da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da Cáritas Brasileira, do Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM), do Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUIBOM), da Articulação Camponesa de Luta Terra e Defesa dos Territórios no Tocantins, da Articulação Estadual de Fundo e Fecho de Pasto, do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais, da Articulação das Mulheres do Cerrado e dos Guardiões das Sementes Crioulas.
Para Eduardo de Oliveira, secretário-executivo do Cimi, o encontro tem uma “importância fundamental no sentido da animação das comunidades tradicionais”. “Discutimos durante esses dias os problemas vivenciados por essas comunidades, que têm como centro a interferência do agronegócio, das políticas governamentais e, ao mesmo tempo, a violência e retirada de direitos que recai sobre as comunidades, sobrecarregando as lideranças, as famílias e o modo de vida tradicional dessas comunidades. O Cimi acompanha e dá apoio a essas populações”, afirmou.
Durante o evento, foi realizada uma análise de conjuntura: lideranças indígenas, quilombolas, quebradeiras de coco, pescadores e pescadoras artesanais e agricultores familiares partilharam suas lutas perante o atual contexto. Muitos relembraram os impasses e retrocessos causados pelo governo de Bolsonaro na vida dos povos originários e das comunidades tradicionais.
Realidades partilhadas
Na roda de conversa, Luzia Bezerra, a agricultora familiar de Itatuba, município da Paraíba, falou sobre a ameaça dos agrotóxicos onde mora. “Como agricultora e experimentadora, estamos guardando sementes, não plantando. A nossa luta principal é para evitar os transgênicos e agrotóxicos em nossa região. Fizeram testagens recentemente e detectaram que o milho de toda a comunidade estava contaminado por esses venenos”.
“A nossa luta principal é para evitar os transgênicos e agrotóxicos em nossa região”
“Para a gente conseguir a ‘semente da paixão’, mais conhecida como semente crioula, é muito difícil. É uma luta constante, um trabalho minucioso para a gente resgatar sementes de hortaliças, de plantas nativas e distribuir para os agricultores e, então, recuperar as sementes perdidas e preservar aquelas que já temos”, concluiu.
Diretamente do outro extremo do país, da região Sul, uma liderança indígena – que não será identificada por motivo de segurança -, denunciou os casos de arrendamento em terras indígenas de seu povo.
“A nossa luta não é diferente. Assim como todos aqui, estamos passando por muitas dificuldades. E a luta vem lá de trás, da época do Serviço de Proteção ao Índio [SPI], quando fazíamos trabalhos forçados e éramos perseguidos. Hoje não é diferente, os próprios caciques entraram no agronegócio e oprimem outros indígenas. Em nossos territórios, existe uma ‘parceria disfarçada’, uma prática de arrendamento que veio lá da época do SPI, quando o órgão arrendava as terras e ganhava 20% dos colonos. As nossas terras sofrem até hoje as consequências, a situação piorou”, desabafou.
“Em nossos territórios, existe uma ‘parceria disfarçada’, uma prática de arrendamento que veio lá da época do SPI”
Para Ormezita Barbosa, secretária-executiva do Conselho Pastoral dos Pescadores – Nacional, a realização do encontro é uma forma de fortalecer e protagonizar a luta dos povos originários e das comunidades tradicionais. “Nós acreditamos que esse espaço de articulação é muito potente no sentido de expressar a riqueza da luta dos povos de todo o país. Além disso, esse evento propõe uma agenda comum de enfrentamento a esse contexto de violência que tem sido bastante agravado na realidade dos povos indígenas e das comunidades tradicionais”.
“É uma estratégia importante, uma semente que gera muitos frutos positivos. A gente aposta muito nesse processo, que também tem a ver com o fortalecimento do protagonismo das mulheres e da juventude. Tudo isso é fundamental para construir uma denúncia robusta que esses povos enfrentam”, completou.
Desafios políticos
Presente no evento, Ivônio Barros, membro da Comissão Brasileira Justiça e Paz, falou sobre os principais desafios de dialogar com o parlamento, principalmente nos dias de hoje. “O Congresso Nacional tem sido um espaço exclusivo para retirada de direitos por meio do agronegócio e exploração do meio ambiente. Isso tem sido feito de uma força avassaladora. É um ambiente complicado para atuar, porque é uma cultura muito diferente da nossa”.
“Infelizmente, foi estabelecida uma lógica de que tudo tem que ser negociado. É difícil conviver com uma situação em que cerca de 100 deputados precisam ‘respeitar’ os outros 400, que fazem parte da bancada do agronegócio, da mineração e da exploração capitalista”, lamentou.
“É difícil conviver com uma situação em que cerca de 100 deputados precisam ‘respeitar’ os outros 400”
Ivônio denunciou, ainda, que o contexto ficou ainda mais difícil após a pandemia do novo coronavírus. “Com a pandemia, a coisa piorou muito, porque o Congresso Nacional se fechou, a Câmara Federal fez uma reforma do regimento interno que tirou muito dos direitos das minorias e tirou também o espaço de pressão de movimentos sociais dentro do parlamento. Hoje estão retomando as atividades presenciais, mas os movimentos não conseguem entrar no Congresso Nacional para participar de audiências públicas, porque precisa de autorização dos gabinetes para entrar”.
Na mesma linha, Cleber César Buzatto, assessor-adjunto do Cimi, fez críticas ao atual contexto político do país e disse que é preciso “nomear” aqueles que vão na direção contrária das pautas socioambientais.
“Há partidos que têm uma atuação exclusiva contra tudo o que é do campo de direitos dos povos originários. À época da votação do Projeto de Lei 490 [PL 490/2007], mapeamos pelo Cimi os parlamentares que votaram contra e a favor do projeto. Isso é fundamental para sabermos como cada um se posiciona contra os direitos originários. É preciso identificar com letras, nomes e números”. Cleber também falou sobre a importância de identificar e frear as empresas “inimigas” dos povos originários.
“À época da votação do PL 490, mapeamos pelo Cimi os parlamentares que votaram contra e a favor do projeto. Isso é fundamental para sabermos como cada um se posiciona contra os direitos originários”
Por fim, o secretário-adjunto do Cimi frisou também a importância de renovar o contexto do parlamento brasileiro nas próximas eleições, em 2022. “Se a gente não mudar esse quadro na próxima legislatura, não sei se manteremos fôlego para segurar a bancada ruralista de aprovar projetos que vão na contramão dos direitos dos povos indígenas”, explicou.