Arrendamento na TI Serrinha: prática criminosa incentivada pelo governo coloca em risco a vida dos povos indígenas
Em outubro deste ano, um episódio na Terra Indígena Serrinha chamou a atenção do país: em razão de disputa por arrendamento, um cacique foi acusado de matar indígenas do seu próprio povo
Era fevereiro de 2018, época de campanha eleitoral no Brasil. Jair Bolsonaro ainda nem estava na presidência do país, mas já prometia que, se assumisse o cargo, “não demarcaria um centímetro de terra indígena”. Dito e feito: além de não realizar as demarcações dos territórios dos povos originários, o atual governo faz questão de caminhar na contramão do mundo com a sua descarada agenda política anti-indígena.
Reflexo disso são os conflitos relacionados à prática de arrendamentos e esbulho dos territórios indígenas. No dia 24 de fevereiro de 2021, três anos após a promessa feita por Bolsonaro, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), sob ordem do governo federal, expediram a Instrução Normativa 01/2021, medida que autoriza a “parceria” entre indígenas e não-indígenas para a exploração econômica dos territórios. A norma foi autorizada sem o consentimento e a Consulta Livre, Prévia e Informada aos povos, como prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Além de colocar em risco a vida dos povos originários, esse tipo de ação normativa gera insegurança jurídica e social e fere direitos garantidos pela Constituição Federal, como os Artigos 231 e 232, que garantem aos indígenas o direito à cidadania, a viver em seus territórios, à sua cultura e ao usufruto exclusivo de suas terras.
Presenciar a aprovação da Instrução Normativa 01/2021 foi como voltar no tempo e relembrar o período que, mediante apoio do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) – que de “protetores” não havia nada –, as terras indígenas eram alvos de ataques de latifundiários. Assim como no atual contexto, as décadas de 1940, 1950 e 1960 foram palco de conflitos devido aos arrendamentos e exploração de terras. Não é para menos que, até hoje, indígenas de todo o país lutam para recuperar os seus territórios arrancados, à força, anos atrás.
TI Serrinha (RS)
Recentemente, chamou a atenção do país o violento cenário da Terra Indígena (TI) Serrinha, em Ronda Alta, no Rio Grande do Sul (RS). Indígenas Kaingang – povo que habita esse território – denunciaram a omissão do governo federal perante as práticas ilegais de arrendamento, para o plantio de soja, dentro do território. Em razão disso, há constantes conflitos entre os próprios indígenas, incluindo assassinatos e expulsões de famílias de suas casas.
No dia 16 de outubro, Vãngri Kaingang relatou, por meio de vídeo publicado nas redes sociais, que um cacique da TI Serrinha matou mais de cinco pessoas em razão de disputa por arrendamento. “Hoje de manhã ele [cacique] passou com o carro dele e mais de 20 índios em outros carros para matar indígenas que não queriam sair, que queriam lutar pelas suas terras. Outros indígenas foram embora, foram retirados de suas casas. Nos deram ordem para sair até às 17h, não temos o que fazer”, disse, aos prantos, Vãngri.
“Ele [cacique] tem muito dinheiro, tudo isso é culpa do arrendamento, do agronegócio. Mais de 12 mil hectares de terra arrendado e ele tem o dinheiro de tudo isso para fazer morte, para matar, para tirar parte das aldeias. Eu peço ajuda à imprensa nacional, à Polícia Federal, ao governo do Estado. Que as pessoas façam alguma coisa. Nós somos índios, somos pessoas. Arrendamento não é do nosso costume”, completou.
“Ele [cacique] tem muito dinheiro, tudo isso é culpa do arrendamento, do agronegócio”
Antes mesmo desse último episódio, o Conselho da TI Serrinha havia publicado uma nota, no dia 24 de setembro, com o pedido de “socorro”. “Há 14 meses irregularidades e corrupção na gestão do plantio nas terras indígenas têm sido denunciadas pelo Conselho de Anciãos da Terra Indígena Serrinha à Fundação Nacional do Índio [Funai], ao Ministério Público Federal [MPF], à 6ª Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, conhecida como 6ª Câmara de Coordenação e Revisão da Procuradoria da República, e, pela inércia dessas instituições, as denúncias foram encaminhadas, em abril de 2021, à justiça federal, sem nenhuma proteção concedida aos membros do Conselho e suas famílias”, diz a nota.
“As famílias denunciaram que 59% da população da Terra Indígena Serrinha não têm terras, enquanto o cacique e sua liderança arrendam toda a área agricultável. O arrendamento das terras indígenas é realizado por uma Cooperativa denominada Cotriserra, que recebe três sacas de soja por hectare, dos plantadores não indígenas, para um Fundo de Transição que deveria executar projetos sustentáveis que nunca saíram do papel. As denúncias do Conselho informam que a Cooperativa não presta contas à comunidade, os recursos recebidos são utilizados exclusivamente para o plantio de monoculturas e para a compra de maquinários, deixando no abandono 387 famílias, em plena pandemia”, diz o Conselho em outro trecho da nota.
“As denúncias do Conselho informam que a Cooperativa não presta contas à comunidade, os recursos recebidos são utilizados exclusivamente para o plantio de monoculturas”
O Conselho da Terra Indígena Serrinha afirmou também que as denúncias feitas pelo Conselho de Anciãos não foram investigadas pela Funai e pelo MPF até o momento da publicação da nota, em setembro, e exigiram “transparência”. “O arrendamento foi implantado pelo Governo Federal nas terras indígenas. As famílias do Conselho de Anciãos estão ameaçadas de serem expulsas por terem denunciado a má gestão das terras a que todo o indígena teria direito. A população da TI Serrinha pede transparência!”, frisou o Conselho.
TI Serrinha militarizada
Após as últimas denúncias, o Ministério da Justiça e Segurança Pública autorizou, no dia 19 de outubro, o uso da Força Nacional no território por 30 dias após conflitos internos. Segundo o coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – Regional Sul, Roberto Liebgott, a terra está “basicamente militarizada”.
“Dezenas de policiais fazem a ronda na área. Em função disso, este primeiro é de calmaria, mas não sabemos as consequências internas disso da intervenção para o futuro próximo. De todo modo, há que acompanhar as ações dessa força policial para que não venham a cometer excessos e perseguir inocentes”, afirmou o coordenador.
“O Ministério Público Federal não pretende concordar com a Funai, no sentido de validar um TAC [Termo de Ajustamento de Conduta] que prevê a continuidade da exploração econômica das terras para produção de soja vinculada às cooperativas. Esta já é uma prática que existe e de forma absolutamente injusta. Portanto, não é uma solução, uma vez que não mudará, em si, a lógica privatista da produção e distribuição de renda. Além do que, mantém a concentração de bens e terra e, como consequência, se perpetuará a exclusão da maioria das famílias. Há que se ressaltar que a soja plantada e cultivada é transgênica, fato que prejudica as diversidades de culturas agrícolas tradicionais”, concluiu.
Caso antigo
Por meio do artigo “Relações de Poder e Conflitos Agrários: demarcação da área indígena de Serrinha, no Rio Grande do Sul, Brasil”, escrito pelas mestras Janaína Rigo Santin e Karina Roberta Arenhart, foi possível levantar informações sobre o contexto do conflito agrário entre indígenas e colonos na região norte do Rio Grande do Sul.
Segundo o estudo, a reserva indígena de Serrinha foi “invadida há muito tempo por centenas de famílias de pequenos e médios agricultores, detentores de títulos das glebas ocupadas outorgados pelo Estado, que acabaram por expulsar os indígenas do local”.
“A TI Serrinha foi invadida há muito tempo por centenas de famílias de pequenos e médios agricultores”
Foi no século XIX que houve uma “real transformação” na vida do povo Kaingang: em um momento, o artigo mostra que, neste período, houve interferências no território e na organização desse povo, especialmente com os aldeamentos que desencadearam a redução do território original dos Kaingang. Ou seja, com a chegada dos imigrantes no sul do país, ocorreu um longo processo de desapropriação territorial – esbulho das terras – por acharem que os indígenas eram incapazes de “gerar riquezas” ao país.
“Além da segregação das populações indígenas com a expulsão de suas terras e a ruptura forçada da manutenção de seu modo de vida e tradições, as ações do governo do Rio Grande do Sul ao longo dos anos interferiram na vida da população em geral, pois geraram muitos conflitos pela disputa de terra, violência e tragédias para índios, colonos, posseiros entre outros”, afirmam as pesquisadoras.
Demarcação: TI Serrinha
Localizada na região norte do Rio Grande do Sul, a TI Serrinha foi demarcada pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul em 1911, com uma área total de 11.950 hectares. Apesar de ter passado pelo processo de demarcação, o território sofreu, entre as décadas de 1920 e 1940, invasões de posseiros, madeireiros, pecuaristas, agricultores e granjeiros. Já em 1941, o governo estadual transferiu a administração do território do povo Kaingang para o governo federal, ou seja, para o Serviço de Proteção ao Índio (SPI).
“Porém, antes de passá-las, através do Decreto n. 658 de 10/03/1941, retirou uma parte da terra e designou-as para a criação de um Parque Florestal (6.624 hectares). Entre 1941 a 1960, as terras da Serrinha foram arrendadas pelos funcionários do Estado, que cuidavam da Reserva Florestal, para os colonos plantarem”, mencionam, em artigo, Janaína e Karina.
” Entre 1941 a 1960, as terras da Serrinha foram arrendadas pelos funcionários do Estado, que cuidavam da Reserva Florestal, para os colonos plantarem”
Dos quase 12 mil hectares da TI Serrinha, sobraram 4.725 hectares – sendo que 6.624 foram destinados à criação do Parque Estadual, que foi permitida, oficialmente, em 1949. Na sequência, entre as décadas de 1950 e 1960, novas invasões ocorreram na área dos indígenas: sob o consentimento do governo local, camponeses sem-terra e colonos foram abrigados em parte do local. Em 1965, ocorreu a expropriação do restante das terras indígenas.
O “novo” processo de demarcação da TI Serrinha teve início no dia 16 de julho de 1997, por meio da Ação Civil Pública 97.1201417-7 pelo Ministério Público Federal (MPF) contra a União Federal e a Fundação Nacional do Índio (Funai). Mas não foi nada simples. Houve, por exemplo, contestação por parte da União, que alegou ser desnecessária a demarcação da reserva, pois ela já havia sido “demarcada administrativamente”.
No ano seguinte, em meados de 1998, a demarcação da Terra Indígena Serrinha foi consolidada – dez anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, um importante instrumento de proteção aos indígenas e suas terras. No entanto, a reintrodução das famílias indígenas no interior da área de Serrinha ocorreu à medida que ocorria a retirada dos colonos. As consequências geradas pela proximidade de indígenas e não-indígenas no mesmo espaço repercutem até os dias de hoje.
“Em suma, o processo judicial analisado representou um importante aporte que trouxe resultados significativos no que tange ao início do processo de demarcação da área, ao pagamento das benfeitorias pela Funai, bem como os reassentamentos de terras e pagamento de indenizações realizados pelo governo do Rio Grande do Sul aos colonos que estavam na reserva de Serrinha. Entretanto, a problemática ainda persiste porque existem algumas famílias que aguardam o pagamento de indenizações e/ ou um lugar para retomar suas vidas” afirmam as autoras.
Arrendamento x RE 1.017.365
Em 2019, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a repercussão geral do Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365, caso que discute uma reintegração de posse movida contra o povo Xokleng, em Santa Catarina. Ou seja, a decisão tomada neste julgamento terá consequência para os povos indígenas de todo o país. Mas, depois de ler o breve contexto de arrendamento na TI Serrinha, você parou para se questionar sobre o que isso tudo tem a ver com o julgamento do RE?
Em seu voto, o ministro Nunes Marques reconheceu que a tese do marco temporal propõe “anistiar oficialmente esbulhos ancestrais, ocorridos em épocas distantes, e já acomodados pelo tempo e pela própria dinâmica histórica”. O julgamento havia sido suspenso por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes no dia 15 de setembro, mas a ação já foi devolvida pelo ministro no dia 13 de outubro.
Para o advogado da Assessoria Jurídica do Cimi, Rafael Modesto, há uma “relação estreita” entre as áreas de ocupação tradicional indígena e o RE 1.017.365. “Existe a tentativa de criar uma legislação para abrir as porteiras das terras indígenas para produção agrícola ou para o agronegócio, seja para a soja, gado ou para a produção de grãos. Então o Recurso Extraordinário pode dar um norte importante quando finalizado o julgamento para esse conflito latente, em especial nas terras indígenas degradadas pelo desmatamento, produção de madeira, soja e criação de boi”, explica Rafael.
“Existe a tentativa de criar uma legislação para abrir as porteiras das terras indígenas para produção agrícola ou para o agronegócio”
O advogado explicou, ainda, que, caso o Supremo Tribunal Federal diga que as terras indígenas sejam demarcadas, independente do marco temporal, também sustentará a existência do Indigenato, de que “as terras indígenas são declaradas e não constituídas”. “Ou seja, já existiam antes mesmo do surgimento do estado brasileiro e, então, os indígenas têm o direito ao usufruto exclusivo dessas terras como está escrito em nosso texto constitucional. Essa posição do STF impediria a criação de uma legislação nova que possibilite as invasões em territórios indígenas”.
“O STF, no julgamento do RE, vai ter um papel importante quando reafirmar os direitos dos povos indígenas e dizer ‘não ao marco temporal’. Do contrário, caso a Corte aplique a tese dos ruralistas, com certeza irá flexibilizar o que está escrito na nossa Constituição Federal e abrirá as porteiras das terras indígenas para invasão, como, por exemplo, por meio de arrendamentos, o que é expressamente proibido pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 231”, concluiu Rafael.