A participação da Assembleia Indígena que não aconteceu
Texto da coluna “Causos e Casos”, um especial do Jornal Porantim em comemoração aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário
Quando a ditadura militar avançava, em 1976, fiz a primeira viagem internacional. O Cimi havia recebido convite para participar de uma Assembleia dos Povos Indígenas do CISA – Consejo Indio de Sud América. Sem experiência de presença em semelhante espaço e sem saber falar espanhol, restava-me a determinação de ampliar o conhecimento e solidariedade às lutas dos povos indígenas.
Armei-me de coragem e me dirigi ao aeroporto Congonhas, de onde partiria o avião para Quito, no Equador. Faltavam umas três horas para o avião partir. Me senti amarrado no tempo.
Faltava apenas uma hora, quando comei me preocupar. Mas pensei, deve ser natural. Me dirigi delicadamente à funcionária da empresa, se não me engano Aeroperú. Com certo espanto e delicadeza ela foi dizendo: “lamento, mas o seu avião sai do aeroporto de Viracopos, em Campinas. Os passageiros já foram pra lá faz tempo. Você não consegue mais pegar esse voo. Mas vou ver o que posso fazer”. Uma certa angustia e revolta tomou conta de mim. O jeito foi pegar o caminho de volta para o bairro do Sumarezinho. Ali os jesuítas tinham uma casa de apoio. La chegando, um espanto geral se estampou nos rostos: “O que aconteceu?”. Nada de mais, respondi. Só perdi o voo. E fui logo esclarecendo tudo para evitar ter que ficar remoendo essa questão que me deixou magoado com o fato atravessado na garganta.
No dia seguinte, lá vou repetir toda a maratona que é movimentar-se em São Paulo. Tudo certo, finalmente bons ventos foram soprando ao nosso favor. Algumas horas de viagem, e chego em Quito, no Equador. Para surpresa minha em meio a uma multidão, vi um cartaz com o meu nome. Pensava que tudo iria ser mais complicado. “Ustedes és Egon de Cimi”. Exato, confirmei em bom portunhol. Não demorou muito e chegamos numa bonita casa, repleta de cerâmica e objetos dos mais diversos do povo Asteca. Na viagem ele já foi esclarecendo que não causou nenhum transtorno o meu atraso, pois está havendo uma forte repressão à Assembleia indígena por parte do governo do Equador. Teríamos que aguardar o desfecho da realização do evento, ou cancelamento do mesmo.
Depois de dois dias, foi me deixar na rodoviária. Recomendou cuidado em não falar nada sobre a Assembleia, poiso o governo havia proibido a realização da Assembleia Indígena. Em função disso poderia haver algumas ações contra os indígenas que seriam identificados.
O ônibus estava uma maravilha. Parecia uma arca de Noé. Animais e humanos disputavam e compartilhavam o espaço. Estávamos ainda longe de Sucua, onde estava previsto o encontro dos povos indígenas da América do Sul. Não demorou e a polícia para o ônibus. Mandou todo mundo descer. Queriam saber quem estava indo para a Assembleia. Apresentei meu passaporte, bem limpinho, que estava sendo inaugurado. Quando interrogado sobre meu destino falei que era turista, estava conhecendo o Equador.
“Gracias, ¿puedo embarcar?”
“Si. Listo”.
Na primeira barreira passei bem. Chegando em Sucua, veio logo um indígena ao meu encontro.
¿Eres de Cimi, Brasil?”
“Sí”
“Entonces, ¿me acompañarás al hotel donde te alojarás?”
Logo foi dando instruções sobre os cuidados que teria que ter, não me identificando como participante da Assembleia. Lá fiquei eu lá plantado mais dois dias. Aproveitei para visitar um interessante trabalho que os Salesianos estavam realizando com os Shuaras, nas áreas de educação e comunicação.
No terceiro dia, vieram me comunicar que eu retornasse a Quito, pois a Assembleia não seria realizada. Restava-me ser turista forçado. Lá vou eu de volta para Quito. Meu simpático anfitrião providenciou logo minha passagem para Guayaquil, donde seguiria para o Brasil.
Sobrevoando os Andes, repentinamente o avião pegou um vácuo de uns 40 metros, provocando gritos, aeromoças e comida caindo ao chão. Um passageiro comentou: tivemos sorte, pois nessa mesma região, na semana passada caiu o avião do presidente da república e toda sua comitiva.
Finalmente em Guayaquil, no entardecer. Meu companheiro de fileira, querendo me alertar, sugeriu “Tenha muito cuidado com sua bagagem, pois aqui no aeroporto acontecem muitos roubos”. Eu só viajaria na manhã do dia seguinte. A grana estava terminando. Me agarrei com a bagarem e seja o que Deus quiser. Embrulhei a noite e, finalmente, depois de umas horas, estava de volta para o Brasil.
Confesso – talvez por causa dos sustos e medos -, estava com saudade do Brasil. Até a próxima Assembleia.
Causos e Casos
Iniciada na edição de abril de 2021, a coluna “Causos e Casos” é um especial rumo aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário, que traz textos assinados por Egon Heck e Egydio Schwade, dois dos fundadores do Cimi e militantes da causa indígena brasileira antes mesmo da criação da entidade.
É a comemoração do cinquentenário por meio do reconhecimento da contribuição do Cimi para o desenvolvimento da causa indigenista a partir de seus missionários e missionárias, aqui representados por Egon Heck e Egydio Schwade. Figuras históricas de luta que contribuem fortemente para a atuação missionária junto aos povos originários, dando um novo sentido ao trabalho da igreja católica.
As histórias da “Causos e Casos”, escritas especialmente para esta coluna, mostrará que a atuação missionária, além de favorecer a articulação entre aldeias e povos, promovendo as grandes assembleias indígenas, onde se desenharam os primeiros contornos da luta pela garantia do direito à diversidade cultural; também fomenta espaços políticos e estratégias para o fortalecimento do protagonismo indígena.
Egon Heck e Egydio Schwade relatam causos e casos com propriedade, pois, desde os primórdios, fizeram parte das linhas de ação do Cimi, sendo impossível separar suas vidas da causa indígena brasileira. Engajados com as comunidades desde a juventude, eles compartilham dos mesmos sentimentos dos povos originários e adotaram a causa como parte integral de suas trajetórias.
_____________
*Egon Heck é ex-padre, formado em Teologia e em Filosofia, com pós-graduação em Ciência Política e lutou, e ainda luta, bravamente ao lado de comunidades indígenas em todo o país, contrariando toda carga cultural e ideológica de preconceito contra os povos indígenas a que esteve exposto em sua própria família e diante da política de inúmeros (des)governos.