19/09/2021

Um Sábado Santo em Cacique Dobre

Texto da coluna “Causos e Casos”, um especial do Jornal Porantim em comemoração aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário

Ilustração Mariosan

Por Egydio Schwade* – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 437 DO JORNAL PORANTIM

Foi no fim da tarde do Sábado Santo de 1967. Thomaz Lisboa e eu, seminaristas jesuítas, batemos às portas da casa paroquial dos padres capuchinhos de Cacique Doble/RS. Não havia lugar para nós na casa paroquial. Assim mesmo decidimos permanecer na cidade, para participar das cerimonias do Sábado Santo, embora tivéssemos decidido buscar abrigo na aldeia indígena há uns três quilômetros dali, pois não tínhamos dinheiro para nos abrigar em algum albergue da cidade. Assim, após as cerimonias, seguimos a pé até a aldeia, mesmo desconhecida de para nós, confiantes de que os mais pobres, sempre acham alguma vaguinha em seus ranchos.

Chegamos à aldeia após a meia-noite, sob um luar pascal. Nos apresentamos ao chefe de posto do Serviço de Proteção ao Índio-SPI, Reinaldo Veloso, que nos acolheu, mas nos disse que tinha apenas uma cama disponível no posto. Na cama, colocou dois travesseiros: um na cabeceira e o outro no pé da cama. Cansados da viagem e das longas caminhadas do dia, passamos uma noite muito tranquila.

No outro dia, domingo de Páscoa, à tarde, voltamos à paróquia. Dois capuchinhos estavam de saída para Lagoa Vermelha e nos ofereceram carona. Havia chovido muito naquele dia e a estrada, cheia de lama, era um sabão. Mas o motorista, Frei Henrique, não estava nem aí. Disparava, como se a estrada estivesse em condições normais. Ignorando a advertência do seu colega sentado à minha direita: “Henrique, vá devagar, você está levando carga preciosa!”. Continuava no mesmo ritmo, até que na decida de uma lombada perdeu o controle a Rural Willis, que capotou ficando de rodas para o ar, no meio da estrada. O motorista, eu e frei meu vizinho, estávamos no banco dianteiro, conseguimos sair logo do carro. E o frei do meu lado preocupado insistia: “Mestre, Egydio como está?” Embora o tranquilizasse, ele insistia. Lembrei-me então do Thomaz e outras duas pessoas que estavam no banco traseiro. E insisti: “Thomaz como está?” Thomaz, com voz sufocada, tentou me acalmar: “Nããão foi naaada!”.

Neste meio tempo o motorista conseguiu abrir o capô e garrafões de cachaça começaram a rolar para fora. Thomaz estava deitado debaixo deles e um bem no seu peito, sem rolha, aberto e ‘cloque, cloque’, a cachaça escorria na sua cara. Retirado lá debaixo, o levei a uma lagoa próxima, onde lavou a cara. Mas como ainda não enxergasse direito, segui com ele, de carona em uma Kombi, até o hospital das irmãs em Lagoa Vermelha. Ali no corredor do hospital, ficamos esperando para sermos atendidos.

“…apareceu uma irmã enfermeira que atendeu Thomaz e uma hora depois eu já estava dando palestra para as irmãs, sobre nossa experiência missionaria no Mato Grosso!”

Já estávamos uma meia hora ali sentados e ninguém atendia o Thomaz. Então falei a uma irmã que estava passando a nossa frente: “Não tem ninguém para atender este seminarista acidentado?” De imediato, apareceu uma irmã enfermeira que atendeu Thomaz e uma hora depois eu já estava dando palestra para as irmãs, sobre nossa experiência missionária no Mato Grosso!

Causos e Casos

Iniciada na edição de abril de 2021, a coluna “Causos e Casos” é um especial rumo aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário, que traz textos assinados por Egon Heck e Egydio Schwade, dois dos fundadores do Cimi e militantes da causa indígena brasileira antes mesmo da criação da entidade.

É a comemoração do cinquentenário por meio do reconhecimento da contribuição do Cimi para o desenvolvimento da causa indigenista a partir de seus missionários e missionárias, aqui representados por Egon Heck e Egydio Schwade. Figuras históricas de luta que contribuem fortemente para a atuação missionária junto aos povos originários, dando um novo sentido ao trabalho da igreja católica.

As histórias da “Causos e Casos”, escritas especialmente para esta coluna, mostrará que a atuação missionária, além de favorecer a articulação entre aldeias e povos, promovendo as grandes assembleias indígenas, onde se desenharam os primeiros contornos da luta pela garantia do direito à diversidade cultural; também fomenta espaços políticos e estratégias para o fortalecimento do protagonismo indígena.

Egon Heck e Egydio Schwade relatam causos e casos com propriedade, pois, desde os primórdios, fizeram parte das linhas de ação do Cimi, sendo impossível separar suas vidas da causa indígena brasileira. Engajados com as comunidades desde a juventude, eles compartilham dos mesmos sentimentos dos povos originários e adotaram a causa como parte integral de suas trajetórias.

 

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*Egydio Schwade é indigenista, pesquisador, apicultor, ativista e cidadão do Estado do Amazonas, título concedido pela Assembleia Legislativa daquele Estado pela dedicação em prol dos povos indígenas da Amazônia. Relação que se iniciou em 1963, num momento em que os povos daquela região eram dizimados, tendo seus territórios rasgados por estradas, invadidos, saqueados e sendo sistematicamente desqualificados e discriminados nas suas formas de ser e agir.

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