Em encontro virtual, povos indígenas debatem processo de retomada no Maranhão
O evento “II Seminário Povos Originários em Processo de Retomada” contou com depoimentos e partilhas sobre as vivências dos povos indígenas do estado
Em continuidade ao diálogo sobre os povos em processo de retomada no Maranhão, foi realizado, entre 11 e 13 de agosto, o “II Seminário Povos Originários em Processo de Retomada”. A primeira edição do seminário ocorreu em 2019 de forma presencial, e, em razão da pandemia da Covid-19, este ano o encontro foi em formato virtual, transmitido pelo canal de youtube do Grupo de Estudos: Desenvolvimento, Modernidade e Meio Ambiente (GEDMMA).
O ponto importante deste seminário é que os povos originários Akroá-Gamella do Maranhão, Akroá-Gamella do Piauí, Kariú Kariri, Anapuru Muypurá, Tremembé do Engenho, Tremembé da Raposa, Tupinambá do Maranhão, todos em processo de retomada, participaram ativamente da construção do encontro, juntamente com o Conselho Indigenista Missionário Regional Maranhão (Cimi-MA), do GEDMMA e do Grupo de Estudos e Pesquisas Indígenas e Indigenistas no Maranhão (GEIIMA). Além disso, o evento contou com o apoio do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Cada roda de conversa foi definida em “Raízes”, estipuladas pelos povos originários participantes do seminário, priorizando o seu protagonismo.
As inscrições chegaram a 260 pessoas, sendo mais de 16 povos indígenas, entre ouvintes e palestrantes. O encontro reuniu acadêmicos, povos de vários estados do Brasil e diversas pessoas interessadas em ouvir as experiências de lutas que percorrem séculos.
Como o encontro ocorreu em formato virtual, os povos originários se mobilizaram em suas casas e locais de encontro para se conectar na internet e compartilhar o momento. Os povos, na mística de abertura do seminário, mostraram alegria, resistência e conexão com suas espiritualidades a partir das cantorias, emocionando os participantes.
Mediada por Hemerson Herbet, missionário do Cimi Regioal Maranhão, as partilhas dos saberes iniciaram na manhã do dia 11 de agosto pela primeira “Raíz” e teve como tema “Processos de Retomadas e criminalização dos povos originários”. Herbet abriu a fala destacando a importância do evento, que proporcionou aos povos originários pontuar “a retomada de sua identidade, sua luta pelo território e luta contínua pela defesa de seus direitos”. Durante o evento, ele também lembrou que o CIMI fará 50 anos em 2022 e reforçou a importância dessa construção do Conselho ao longo dos anos, acompanhando os povos originários do Maranhão e de todo o Brasil.
Representando o povo Anapuru Muypurá de Chapadinha (MA), Lucca Muypurá afirmou que o espaço do seminário é necessário para o fortalecimento da retomada de seu povo na região do Baixo do Parnaíba. “É uma região que dizem que não há presença de povos indígenas, que o discurso é de extinção”. Ele também apontou que utilizam a memória como “fio condutor” nesta resistência e levante. De acordo com Lucca, a memória reafirma a ancestralidade. “Cavacar a memória e poder plantar sementes que estão prontas para germinar”.
Além dele, também partilharam seus processos de retomadas no primeiro diálogo do dia, Fernanda Muypurá, Kum’tum Akroá Gamella/MA, Mercês Alves Gamella do Piauí, Lidiane Kariú Kariri, Robson Tremembé de Engenho, Rosa Tremembé da Raposa, Amanda Tupinambá do Maranhão.
A segunda “Raiz”, “Discussão Teórica e Conceitual e a Luta dos Povos Criando Conceitos”, foi debatida na tarde do primeiro dia do seminário, com mediação de Madian Frazão Pereira, do GEDMMA/DESOC/UFMA. A discussão foi sobre as retomadas como processo pedagógico.
Lidiane Alves Kariú Kariri expôs o que para ela é uma “fantasia colonial de indigenista”, que torna leviano o apontamento de quem é “mais ou menos” indígena e que acarreta na negação de direitos a quem não se adequa a este ideal. “É um ideal indigenista que opera dentro da sociedade e também no Estado, por meio das instituições”. Ela salientou que, apesar de não haver uma lei, esse grau é o que determina os direitos.
Também fizeram análise sobre o tema da segunda “raiz”, Rosane Lacerda (UFPE – Campus Caruaru), Larissa Cortez (CIMI-MA), Rosa Tremembé da Raposa, Valdivino Neto Kariú Kariri/CE, Caw Akroá Gamella, Lucca Muypurá, Emerson Rubens Mesquita Almeida (GEIIMA/DESOC/UFMA), Estêvão Martins Palitot (PPGA/UFPB).
A terceira “Raíz”, “Racismo Estrutural e a Necropolítica”, debateu sobre as várias formas de racismo contra os povos originários, do ponto de vista estrutural, institucional (negativa de atendimento de vacinação aos povos em retomadas; municipalização da saúde indígena), as estratégias de apagamento/negação, os planos de evangelização e os impactos nos processos de luta, educação branca, entraves e omissão do Estado no acesso a políticas públicas específicas.
A discussão ocorreu no dia 12 de agosto, pela manhã, com mediação de Larissa Cortez, do Cimi Regional Maranhão. A proposta de fazer somente pela manhã foi possibilitar que os povos que estavam em encontros nos seus territórios, ou em outros locais, continuassem dialogando sobre os seus processos.
Iolanda Alves Kariú Kariri, irmã de Lidiane Alves, denunciou a tentativa de intimidação por parte da Secretaria de Saúde do município de Estreito, do Maranhão, que dificultou a imunização da Covid-19 dos povos daquela localidade. “Um conjunto de racismo. A Secretaria pediu que provássemos que somos indígenas”, disse ela.
Iolanda disse também que os profissionais da Secretaria de Saúde chegaram a alegar que não pareciam indígenas e, além disso, pontuaram que não possuíam vacinas para povos “não aldeados”. De acordo com ela, apenas depois de muita luta, conseguiram entrar no plano de imunização.
Fortalecendo o depoimento da Iolanda Kariú Kariri, a jovem Emilly Tremembé, do município de Raposa, também denunciou as dificuldades da imunização contra Covid-19 aos povos indígenas em contexto urbano e que não possuem suas terras demarcadas.
No Plano Nacional de Imunização do Governo Federal, eles foram inicialmente excluídos, assim como no plano estadual. “Percebemos o quanto o Estado quer invalidar, a todo momento, nossa identidade indígena”, declarou Iolanda.
Do povo Anapuru Muypurá, Jhonatan também compartilhou sobre o racismo que envolve ser indígena e sobre a luta para ter direito à imunização na pandemia. Ele comentou que é uma forma do Estado negar suas existências.
Jhonatan também aproveitou para comentar sobre pontos maléficos que atingem a saúde mental dos indígenas, a negação de direitos, da identidade e o racismo sofrido diariamente. Segundo ele, a negação dessa identidade é como “uma lança que perfura seus corpos”.
Dentro desta perspectiva, o jovem expressou o racismo sofrido na escola, no trabalho e nas instituições. E como afeta, especialmente, a juventude e as crianças que ainda estão afirmando sua identidade.
“A gente vê que as crianças e os jovens indígenas fazem parte das maiores taxas de suicídio e de doenças mentais na sociedade brasileira”, expôs.
Na roda de conversa, Dan Caboclos Indígenas Gamella da Baixa Funda (de Uruçuí Piauí), a professora Ana Caroline Amorim Oliveira (UFMA – Campus São Bernardo), o integrante da Rede (CO) Vida, Felipe Cruz (povo Tüxá da Bahia), o professor István van Deursen Varga (DESOC/UFMA) também compartilharam seus depoimentos sobre a situação do contexto da pandemia da Covid-19 entre os povos indígenas.
Para encerrar o seminário, a quarta “Raíz” apresentou o tema “Territórios, Direitos Originários e Julgamento da Repercussão Geral”, com mediação da Fran Gonçalves, do GEDMMA. O encontro foi realizado na manhã do dia 13 de agosto, com o diálogo sobre os desafios e perspectivas dos povos originários para além do atual governo, “zonas de sacrifício”: legalidade dos territórios e povos sacrificados em prol da atividade/exploração econômica (mineração, agronegócio, estradas, linhões).
Abrindo as falas, Zulmira e Jaira Akroá Gamella, do Piauí, falaram sobre a negação dos direitos por parte do Governo Federal. Jaira comentou a tristeza que sente ao falar sobre o atual contexto político do Brasil. Ela também destacou a dificuldade da afirmação de sua identidade e a conquista do nome de sua filha, em registro civil, levando o nome do povo Akroá Gamella.
Para Zulmira o reconhecimento por parte do Estado iria gerar felicidade nela. “Nós vivemos lutando pelo nosso território. Se o governo nos olhar e nos der nossa área, ficaremos agradecidos”, disse.
Continuando as partilhas, Cruupoohre, do povo Akroá Gamella do Maranhão, falou, em tom de tristeza, sobre as várias demandas que estão dentro do pacote de retirada de direitos dos povos indígenas. “Seguimos firmes aqui no território e continuamos lutando”, expôs. Cruupoohre também denunciou ações da FUNAI que os prejudicam. Para ele, a resistência está na luta conjunta. “Admiro muito a nossa força, porque não andamos sozinhos”.
Também participaram da quarta “Raíz”, Lucimar Carvalho, assessora jurídica do Cimi Regional Maranhão, Leandro Araújo, do PPGS/UFMA/GEIIMA, Aurila, da comunidade Tremembé da Raposa, e João, da comunidade Tremembé do Engenho.
Após as diversas falas e depoimentos, os participantes do seminário agradeceram e falaram sobre o fortalecimento da luta indígena e do momento de partilha entre todos. Com as dificuldades existentes na pandemia e a não realização presencial, esse segundo encontro, feito virtualmente, proporcionou momentos de reencontros para muitos que não se viam há tempos em razão do isolamento social imposto neste momento.
Com resistência, mostrando a força da ancestralidade, os povos presentes cantaram os cantos tradicionais, confraternizando entre si para fechar o seminário.
Em paralelo ao seminário, o povo Anapuru Muypurá realizou, em Brejo (MA), o “Encontro do Povo Anapuru Muypurá – Cavacar Memórias, Retomar a Terra”
Encontro Simultâneo
Em paralelo ao seminário, o povo Anapuru Muypurá realizou, em Brejo (MA), o “Encontro do Povo Anapuru Muypurá – Cavacar Memórias, Retomar a Terra”, que também ocorreu nos três dias do “II Seminário Povos Originários em Processo de Retomada”. A mobilização também aconteceu com o objetivo de acompanharem, em conjunto, as falas das “Raízes” do evento.
Além disso, organizaram uma roda de conversa no local para, segundo Lucca Muypurá, que fez a mediação presencial, “cavacarem as memórias contadas pelos nossos mais velhos”.
No terceiro dia, na sexta-feira (13), finalizando o encontro presencial, o povo realizou uma roda cultural debaixo de uma árvore, onde fizeram pinturas corporais e um Toré com cânticos, salvando a força da espiritualidade e da ancestralidade.
“Eu mediava, falando quem era o parente que estava falando no seminário virtual, de que povo ele era, para todos entenderem que o contexto de outros povos é muito próximo do nosso. E que também houve um processo de silenciamento e tomada de territórios”, destacou Lucca Muypurá.
O povo Kariú Kariri também se reuniu presencialmente para acompanhar o seminário. De acordo com Lidiane Alves Kariú Kariri, os encontros aconteceram em três casas, em bairros diferentes, para envolver os participantes.
Ela também destacou que foi importante para a inclusão das crianças neste processo de entendimento sobre a retomada. Lidiane declarou que eles ajudaram com a confecção de cartazes e com pinturas. E, para ela, é importante esse papel pedagógico e educativo, porque “acredita muito no potencial delas como futuras lideranças”. “O encontro presencial foi bom porque conversamos sobre as narrativas do nosso povo, os saberes”, avaliou.
Além dos povos Anapuru Muypurá e Kariú Kariri, os Akroá-Gamella também realizaram encontro presencial em paralelo ao seminário.
Na avaliação de Rosimeire Diniz, do Cimi Regional Maranhão, o novo encontro foi maior e mais intenso que o primeiro, realizado em 2019. “Esse espaço está crescendo e os próprios povos estão trazendo seus saberes, suas experiências, compartilhando seu processo de retomada e também contribuindo nessa caminhada de celebração dos 50 anos do Cimi”, disse. Ela destaca que o seminário possibilita que os povos indígenas afirmem que essa retomada não é apenas sobre os territórios, mas também do ser, do fazer e do sentir dos povos.
Para Madian Frazão Pereira, integrante do GEDMMA/DESOC/UFMA, o encontro cumpriu seu objetivo, em especial, sobre o protagonismo dos povos originários. “A roda de conversa foi um espaço de troca, tanto dentro quanto fora do espaço acadêmico”. Segundo Madian, foi importante para dar visibilidade à luta contra o apagamento e silenciamento desses povos. Ela também reforçou a retomada por meio de um processo pedagógico.
O II Seminário teve grande audiência no Youtube e diversas pessoas que o acompanharam já perguntaram sobre o próximo encontro e sobre a possibilidade de a discussão da retomada ser ampliada a povos originários de outros estados.
Os vídeos com todas as falas dos participantes e todos os diálogos, durante os três dias, podem ser vistos no canal de Youtube do GEDMMA Oficial.