Obediência criativa: da Missão Anchieta à criação do Cimi
Texto da coluna “Causos e Casos”, um especial do Jornal Porantim em comemoração aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário
Em dezembro de 1967 voltei, brevemente, à Missão Anchieta com outro colega estudante jesuíta, a convite do vigário de Porto dos Gaúchos, Rio Arinos, para fazer um levantamento do povo da paróquia. Descemos o Arinos, território dos índios Tapaiuna, conhecidos como Beicos-de-pau. A certa altura estes flecharam contra nossa embarcação. E uma flecha caiu a meu lado. Após o levantamento, no início do mês seguinte, voltando pelo mesmo rio, outro grupo Tapaiuna arredio se apresentou, pacificamente, na margem do rio. Alguns tripulantes jogavam roupa, enquanto os índios ofereciam cestas e colares e com gestos pediam que o barco encostasse. Mas o dono, receoso, apenas passou rente, evitando encostar.
Preocupado pelos índios, temendo que algum irresponsável se aproveitasse dessa situação e fosse contatar o grupo levando-lhes doenças, procurei em Diamantino/MT o Superior Religioso dos jesuítas e tentei convencê-lo a enviar imediatamente algum missionário para que contatasse o grupo e ficasse com ele, animando-o a permanecer na sua aldeia, afastado do rio. Mas os superiores alegaram que não tinham ninguém disponível. Prontifiquei-me, então a interromper a Teologia para ir morar com esse povo. Não me permitiram. Deixei ainda uma carta manuscrita, bastante dura, manifestando a minha preocupação e alertando os responsáveis da Missão Anchieta sobre o perigo que os índios corriam, expostos a contatos indiscriminados de aventureiros que não faltavam na região.
Ali mesmo recebi um convite da CNBB/Brasília para participar de um encontro de missionários de diferentes congregações religiosas para dar início a novos rumos às missões como orientava o Concílio. Foi o começo de um processo que desembocou em 1972 na criação do Cimi. No encontro ficou claro que um dos entraves principais à mudança que se fazia necessária nas missões, eram os próprios superiores das províncias e missões religiosas que investiam tudo nas obras já estruturadas. Todos sentiam que se deveria enfrentar essa situação com nova visão da obediência.
Em meio a uma acalorada discussão sobre este problema, a certa altura, reboou o vozeirão do Padre Angelo Venturelli professor da Universidade salesiana de Campo Grande: “E onde fica, então, a obediência religiosa?” Em resposta o dominicano, Frei Gil Gomes Leitão, missionário junto aos Suruí do Pará nos deu esta inesquecível lição: “Obediência, sim, mas obediência criativa!” – retrucou ele. E relatou um exemplo de sua própria vida para ilustrar o sobredito. “Certa vez os meus superiores me chamaram da Missão para atender uma comunidade de freiras em Uberlândia/MG. Obedeci, mas logo percebi que aquela comunidade não necessitava de mim. Todas eram santas e tinham tudo o que necessitavam. Arrumei, então, as malas e voltei aos Suruí, que precisavam mais de minha presença.” Me lembrei dos Tapaiuna do Rio Arinos.
Causos e Casos
Iniciada na edição de abril de 2021, a coluna “Causos e Casos” é um especial rumo aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário, que traz textos assinados por Egon Heck e Egydio Schwade, dois dos fundadores do Cimi e militantes da causa indígena brasileira antes mesmo da criação da entidade.
É a comemoração do cinquentenário por meio do reconhecimento da contribuição do Cimi para o desenvolvimento da causa indigenista a partir de seus missionários e missionárias, aqui representados por Egon Heck e Egydio Schwade. Figuras históricas de luta que contribuem fortemente para a atuação missionária junto aos povos originários, dando um novo sentido ao trabalho da igreja católica.
As histórias da “Causos e Casos”, escritas especialmente para esta coluna, mostrará que a atuação missionária, além de favorecer a articulação entre aldeias e povos, promovendo as grandes assembleias indígenas, onde se desenharam os primeiros contornos da luta pela garantia do direito à diversidade cultural; também fomenta espaços políticos e estratégias para o fortalecimento do protagonismo indígena.
Egon Heck e Egydio Schwade relatam causos e casos com propriedade, pois, desde os primórdios, fizeram parte das linhas de ação do Cimi, sendo impossível separar suas vidas da causa indígena brasileira. Engajados com as comunidades desde a juventude, eles compartilham dos mesmos sentimentos dos povos originários e adotaram a causa como parte integral de suas trajetórias.
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*Egydio Schwade é indigenista, pesquisador, apicultor, ativista e cidadão do Estado do Amazonas, título concedido pela Assembleia Legislativa daquele Estado pela dedicação em prol dos povos indígenas da Amazônia. Relação que se iniciou em 1963, num momento em que os povos daquela região eram dizimados, tendo seus territórios rasgados por estradas, invadidos, saqueados e sendo sistematicamente desqualificados e discriminados nas suas formas de ser e agir.