19/06/2021

A continuidade do “cataclismo biológico”

Expressão utilizada pelo antropólogo norte-americano Henry Dobyns para descrever o efeito das epidemias trazidas pelo homem branco durante a colonização

Charge da edição de 1º de agosto de 1981 do Jornal Porantim, quando a epidemia de sarampo matou 21 Waimirí-Atroarí e a Funai desviou a atenção geral sobre as verdadeiras causas do surto na região

Por Hellen Loures da Assessoria de Comunicação do Cimi – MATÉRIA PUBLICADA ORIGINALMENTE NA EDIÇÃO 435 DO JORNAL PORANTIM

A história mostra que epidemias dizimaram por completo povos indígenas e deixaram outros à beira da extinção. O contágio por doenças infectocontagiosas é, há séculos, uma das múltiplas violações sofridas pelos povos originários, que ficam expostos à transmissão por serem alvos da perseguição dos que visam a apropriação de seus territórios. É o que o antropólogo norte-americano Henry Dobyns chamou de “cataclismo biológico”: expressão utilizada para descrever o efeito das epidemias trazidas pelo homem branco durante a colonização. Agentes de Estado, por sua vez, que deveriam proteger e promover os direitos dos povos originários no Brasil, dão causa aos extermínios indígenas.

A Comissão Nacional da Verdade (CNV) – colegiado que investigou graves violações de direitos humanos -, apresentou em seu relatório final as violências apuradas contra os indígenas brasileiros entre 1946-1988, período de horror, barbárie e inúmeras impunidades. Na descrição de um dos casos mais emblemáticos levantados no relatório: “Aviões que atiravam brinquedos contaminados com vírus da gripe, sarampo e varíola”, um dos fatores que levou aproximadamente cinco mil índios Cinta Larga a óbito. Segundo o documento, tais aviões eram enviados por seringalistas, mineradores, madeireiros e garimpeiros com a conivência do governo federal.

Outro caso marcante denunciado no relatório ocorreu em 1976, quando a Divisão de Saúde da Fundação Nacional do Índio (Funai) se negou a vacinar os indígenas da região de Surucucus e, “como consequência dessa situação de omissão do órgão indigenista, diversas epidemias de alta letalidade, como sarampo, gripe, malária, caxumba, tuberculose, além da contaminação por DSTs, eclodiram entre os Yanomami”, aponta o documento.

O relatório aponta que a população indígena brasileira foi uma das mais atingidas por graves violações e violências, e reconhece a responsabilidade do Estado brasileiro, por ação direta ou omissão, “no esbulho das terras indígenas ocupadas ilegalmente no período investigado e nas demais graves violações de direitos humanos que se operaram contra os povos indígenas”, conclui o texto.

Passados 75 anos do período analisado pela Comissão e a situação ainda não é diferente. Com o alastramento do coronavírus no Brasil, o descaso do Governo Federal com as comunidades indígenas foi gritante, fato extremamente oportuno dentro do conflito histórico de interesses entre o Estado e os povos originários, em especial com a atuação de Bolsonaro na Presidência da República, que, desde o princípio, atentou abertamente contra os direitos e as terras indígenas.

O governo federal se tornou um dos agentes transmissores de covid-19 aos povos indígenas. No início do combate ao coronavírus, foi preciso que o Supremo Tribunal Federal intervisse para “obrigar” o presidente da República a tomar medidas emergenciais de combate à pandemia entre os povos originários, pois era grande o risco de genocídio indígena. A Funai, por sua vez, tentava mascarar a ausência de um plano de atuação, usurpando as medidas de autogestão dos povos perante a ineficiência das políticas contra a proliferação da pandemia.

Com a ausência do Estado, a crise sanitária e humanitária no contexto indígena se intensificou. A vulnerabilidade dos índios, que deveria ter motivado a ação decisiva do Governo para evitar que o vírus chegasse às aldeias, foi usada como “vantagem” para a tomada de espaços. Os casos foram de negligência a divulgação de informações negacionistas. De ataques de garimpeiros nas áreas indígenas a crimes de racismo contra os povos originários. De ações do exército e da Sesai disseminado o vírus em territórios mais isolados do país a suspensão de entrega de cestas básicas e kits de higiene nas aldeias. Da distribuição de remédios sem comprovação de eficiência à exclusão e descaso no atendimento de indígenas. Da lentidão dos investimentos federais voltados a medidas de combate ao vírus à execução pífia dos recursos públicos reservados para esta finalidade.

A prática comum na estratégia bolsonarista durante essa crise sanitária, entre outros fatores, foi de não tomar medidas adequadas para o enfrentamento do coranavirus, minimizando mortes e apostando no tensionamento. O governo foi omisso e negligente nas ações para evitar o contágio, atender aos infectados e dar transparência aos números. O coronavírus e o governo surgem como um grave problema que vem se somar aos demais que os povos indígenas enfrentam cotidianamente.

Diante desse cenário de retrocesso, de acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), o número de óbitos de indígenas já ultrapassou a marca dos mil, quase o dobro do que foi divulgado pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde, que não contabiliza os indígenas que vivem em contexto urbano. Tal medida contraria, inclusive, o posicionamento do Ministério Público Federal (MPF), ao recomendar que respeitem ao autorreconhecimento desses indígenas e que seja realizado o cadastramento de todos eles, incluindo os que não residem em aldeias. São 1.070 indígenas de todas as idades que morreram em decorrência da covid-19 até abril de 2021. Ao todo, 163 povos de diferentes etnias já foram contaminados e somam-se a mais de 54 mil casos.

É essa a realidade indígena em tempos de pandemia: violações aos povos originários cresceram em todos os aspectos imagináveis. Uma tragédia humanitária sem precedentes que vem na esteira de vários outros problemas, como a ostensiva atividade mineradora em terras indígenas, o aumento das queimadas, a invasão e exploração ilegal de recursos, recorde no aumento do desmatamento sobreposto a áreas indígenas, anistia e incentivo à grilagem, estímulo ao garimpo, impunidade ao desmate criminoso, expropriação e fim das demarcações de territórios, entre tantas outras.

Ou seja, o governo brasileiro além de ser omisso e não adotar medidas sanitárias de forma planejada para enfrentar a grave ameaça da covid-19 dentro das comunidades, também sinaliza e autoriza, com o discurso expansionista e irresponsável do presidente, o avanço do crime ambiental e as invasões para exploração ilegal das terras indígenas, incentivando muitas vezes o extermínio dessa população. O fato é que as ações praticadas após a posse do presidente Jair Bolsonaro são as mais letais desde a colonização.

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