Organizações posicionam-se contra redução de unidades de conservação em Rondônia
Projeto sancionado pelo governo do estado premia grileiros e desmatadores ilegais com mais de 220 mil hectares de terras públicas, denunciam organizações
Organizações da sociedade civil têm se mobilizado contra a proposta de redução de unidades de conservação no estado de Rondônia, prevista no Projeto de Lei Complementar (PLC) 080/2020, de autoria do governo estadual. A proposição foi aprovada pela Assembleia Legislativa de Rondônia. no final de abril, e recentemente sancionada pelo governador do estado, o coronel Marcos Rocha (PSL).
O PLC 080/2020 prevê a exclusão de 171 mil hectares da Reserva Extrativista Jaci-Paraná, reduzindo-a em quase 90%, e a retirada de 55 mil hectares do Parque Estadual de Guajará-Mirim.
“A decisão da Assembleia Legislativa reconhece e premia a ação violenta dos grileiros, ao mesmo tempo em que legitima a expulsão de indígenas, seringueiros e extrativistas para dar lugar à pastagem e ao boi”
Em carta entregue ao governador no dia 6 de maio, as organizações afirmam que “a decisão da Assembleia Legislativa reconhece e premia a ação violenta dos grileiros, ao mesmo tempo em que legitima a expulsão de indígenas, seringueiros e extrativistas para dar lugar à pastagem e ao boi. Essa medida contribuiria para enriquecer alguns poucos poderosos, deixando para a população a conta do prejuízo ambiental”.
A carta é assinada por Organização dos Seringueiros de Rondônia (OSR), Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé, Greenpeace, SOS Amazônia, WWF-Brasil e Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
As organizações alertaram o governador do estado, no documento, que a aprovação do projeto e a consequente apropriação ilegal de terras públicas teria impactos “diretos e irreversíveis” nas Terras Indígenas Uru-Eu-Wau-Wau, Karipuna, Igarapé Lage, Igarapé Ribeirão, Karitiana e em povos em isolamento voluntário na região.
“Esses povos, que nunca foram consultados sobre as alterações nas unidades de conservação, têm agora ameaçadas sua integridade física, cultural e territorial, ficando expostos à expulsão, à doença e à morte”, afirmam as organizações.
Leia a carta abaixo, na íntegra, ou clique aqui para baixá-la em pdf:
Porto Velho, 6 de maio de 2021
Senhor Marcos Rocha
Governador do Estado de Rondônia
Palácio Rio Madeira – Av. Farquar, 2986 – Bairro Pedrinhas
CEP 76.801-470 – Porto Velho, RO
No momento em que a população de Rondônia tenta sobreviver à pandemia de covid-19, que já provocou a morte de mais de 5 mil pessoas no Estado, a Assembleia Legislativa aproveita para premiar grileiros e desmatadores ilegais com mais de 220 mil hectares de terras públicas. Os deputados estaduais fizeram isso com base no projeto de lei complementar 080/2020, enviada pelo senhor àquela casa, propondo o corte de imensas áreas da Reserva Extrativista de Jaci-Paraná e do Parque Estadual de Guajará-Mirim.
O projeto teve discussão e aprovação relâmpagos, numa única noite. Ofício do governo do estado, autor do projeto, solicitando sua retirada de pauta, foi ignorado. Os parlamentares passaram mais tempo em reuniões secretas do que em sessão pública, em uma demonstração inaceitável de falta de transparência e de déficit democrático. O resultado, ao final da sessão, foi a quase extinção da resex e a desfiguração do parque. As informações exatas sobre os novos limites das unidades de conservação, alteradas durante a votação, nunca foram conhecidas. Os parlamentares aprovaram as mudanças sem nenhuma base científica ou técnica. As alterações foram feitas sem nenhuma discussão com a sociedade. O texto aprovado nunca foi divulgado pela Assembleia Legislativa.
De acordo com o decidido pela Assembleia, a reserva extrativista de Jaci-Paraná ficaria praticamente extinta. Dos 193 mil hectares existentes, sobrariam apenas 22 mil, pouco mais de 10% da área original. O parque estadual de Guajará-Mirim perderia 55 mil hectares, num corte que atinge inclusive a sede da unidade de conservação, que ficaria de fora da área preservada. Os números ainda são estimados.
A Assembleia propõe que as terras retiradas das unidades de conservação sejam dadas como prêmio a invasores ilegais, que ocuparam a floresta com base na violência, como o senhor mesmo deve ter acompanhado desde seu posto de coronel na Polícia Militar. Comunidades tradicionais foram expulsas a força, para colocar, em seu lugar, 120 mil cabeças de gado.
É conhecido, por exemplo, o testemunho do Presidente da Associação de Seringueiros Bentivi, Francisco Lopes da Silva, transcrito em nota técnica do Grupo de Trabalho Amazônico de 2014. Chico enviou carta pedindo ajuda à Sedam. Ele solicitava providências contra a expulsão violenta de famílias de moradores da Reserva Extrativista, como neste trecho: “Os grileiros já queimaram quatro casas dos seringueiros nas margens do rio Jaci e estão ameaçando queimar o restante das casas. Pude presenciar o seringueiro José Valério Parente com todos os seus pertences em uma praia”. Essa foi a dinâmica de ocupação da área pública para a criação de gado, com a expulsão das comunidades tradicionais.
A nota técnica ainda informa: “O processo de grilagem de terras da Resex Jaci-Paraná obedece à tática de ‘crime organizado’ que está destruindo várias unidades de conservação do Estado. A indústria madeireira instalada em Rondônia, em número muito maior que o de florestas disponíveis, sobrevive em boa proporção de madeiras roubadas de unidades de conservação e terras indígenas, com toda sorte de fraudes e conivências para esquentar madeiras. No caso da Resex Jaci-Paraná, além de madeireiras licenciadas vizinhas à Resex, os madeireiros foram saqueando madeiras e no seu rastro deu-se a invasão por grileiros. A posse das terras, via de regra, se dá com a invasão em grande número de pessoas que destroem a floresta, vendem as madeiras, semeiam o capim e ficam de fora, incendiando anualmente a área. De um a dois anos, é possível transformar uma vasta região de floresta em fazendas pecuárias, e eles apostam na lógica do fato consumado, segundo o qual destruir floresta é aceito como ‘benfeitoria’. É difícil responsabilizar os autores, uma vez que os grandes em geral agem com prepostos e mesmo os pequenos nos primeiros anos entram esporadicamente na reserva e em geral impera a ‘lei do silêncio’, sendo corrente o jargão mafioso “quem dedurar morre’”. Portanto, senhor governador, não se trata de pequenos agricultores, mas do crime organizado, que impõe sua própria lei.
Os grandes responsáveis pelas invasões, como o senhor sabe, são gente poderosa e influente, que usa posseiros como laranjas. Gente que contrata jagunços armados para expulsar a força famílias tradicionais que tiram seu sustento da floresta em pé.
Agora, a decisão da Assembleia Legislativa reconhece e premia a ação violenta dos grileiros, ao mesmo tempo em que legitima a expulsão de indígenas, seringueiros e extrativistas para dar lugar à pastagem e ao boi. Essa medida contribuiria para enriquecer alguns poucos poderosos, deixando para a população a conta do prejuízo ambiental. Condenaria à miséria na periferia das cidades centenas de famílias impedidas de continuar vivendo de maneira sustentável na floresta – que agora cai oficialmente em nome do rebanho de gado.
Essa apropriação ilegal de terras públicas teria impactos diretos e irreversíveis nas terras indígenas Uru-eu-wau-wau, Karipuna, Igarapé Lage, Igarapé Ribeirão, Karitiana e comunidades em isolamento voluntário na região. Esses povos, que nunca foram consultados sobre as alterações nas unidades de conservação, têm agora ameaçadas sua integridade física, cultural e territorial, ficando expostos à expulsão, à doença e à morte.
A drástica redução das unidades de conservação é o coroamento de ataques sistemáticos à lei e à ordem, numa história de mais de 20 anos de agressões. Contraria a Constituição Federal e diversas decisões judiciais e dos ministérios públicos Estadual e Federal. Descumpre a legislação vigente e acordos internacionais assinados pelo Brasil.
A decisão da Assembleia Legislativa coloca, ainda, o estado de Rondônia na condição de pária perante um mundo que busca por mais florestas, que precisa de mais natureza, para garantir o próprio futuro da humanidade.
Implicaria, ainda, em potencial barreira econômica para o Estado de Rondônia, que corre o sério risco de ver se fecharem mercados importantes para as commodities aqui produzidas, em função da legalização da grilagem de florestas públicas e sua conversão em pastagens.
Entendemos que o governador não pretenda se aliar a essa imagem nem compactuar com o procedimento antidemocrático levado a cabo pela Assembleia.
Não lhe faltam argumentos para vetar integralmente o texto aprovado na Assembleia Legislativa e evitar, assim, o isolamento do Estado de Rondônia mesmo entre os governadores da Amazônia.
Depois de vetar integralmente o projeto de lei, o governo deve chamar um amplo debate com a sociedade civil organizada, de maneira que se encontre uma solução com base na ciência, na Constituição, nas leis e nas decisões judiciais. E, para colaborar com esse objetivo, nos colocamos desde já à disposição.
O senhor tem agora a oportunidade de escolher como quer entrar para a história. Vetando o projeto, enviará ao Brasil e ao mundo a mensagem de alguém que cuida das pessoas e da natureza. Se sancionar, ficará aliado à ilegalidade, à devastação, à violência, à grilagem e aos desmatamentos que destroem a Amazônia. Além disso, corre o risco de ser desautorizado pela Justiça, que tem, repetidamente, barrado agressões à floresta e à população.
De nossa parte, não permitiremos a consolidação dessas ameaças. Vamos denunciá-las e lutar de todas as formas, inclusive fora do país se necessário, para defender nossas populações, nossas florestas, nosso clima e nossa Democracia.
Assinam:
Organização dos Seringueiros de Rondônia (OSR)
Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé
Greenpeace
SOS Amazônia
WWF-Brasil
CIMI – Conselho Indigenista Missionário