Na ONU, Nação Guarani realiza denúncia conjunta sobre violações contra seus povos na América Latina
Representantes da Nação Guarani se dirigiram às Nações Unidas durante evento virtual paralelo à 20ª Sessão do Fórum Permanente da ONU sobre Questões Indígenas
Por Alass Derivas, especial para a Assessoria de Comunicação – Cimi
O povo Guarani é um dos maiores das terras baixas da América do Sul, com mais de 280 mil pessoas distribuídas em seis países. Durante a 20ª Sessão do Fórum Permanente de Assuntos Indígenas das Nações Unidas, lideranças das principais organizações Guarani da Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai debateram o tema “Desterritorialização, livre determinação e pandemia, a situação dos direitos humanos dos Povos Guarani na América do Sul”. A atividade foi organizada pelo Conselho Continental da Nação Guarani (CCNAGUA) e contou com o apoio da rede indigenista Guarani nos quatro países.
O debate foi acompanhado por relatores do Alto Comissariado da ONU para Questões Indígenas. A intenção foi alertar a comunidade internacional sobre a situação dos Guarani no continente. Grande parte das 1.600 comunidades Guarani ainda não possui território garantido, o que causa um alto índice de migração para as cidades vizinhas em busca da sobrevivência de suas famílias e do Teko Porã (Bem Viver).
Para Elias Caurey, mediador do evento e integrante do Centro de Pesquisa e Promoção do Campesinato Boliviano (CIPCA), o povo Guarani pode ser a referência do novo mundo que está sendo construído, presente no Uruguai, Venezuela, Argentina, Bolívia, Brasil e Paraguai. Atualmente, 3 milhões de pessoas falam a língua Guarani no continente. Segundo Elias, é o segundo povo indígena mais populoso da América Latina, atrás apenas do Quechua.
Durante a saudação inicial, “evocar o espírito e a energia”, Elias Caurey convidou Getúlio e Alda Kaiowá, da Terra Indígena Reserva de Dourados. Os dois anciões cantaram e dançaram para dar a bênção espiritual aos participantes.
“Uma comitiva do meu povo acabou de regressar de Brasília, semana passada. Precisou se expor ao novo coronavírus para ir até a capital lutar para manter um direito”
O professor da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) Clóvis Bringhenti informou que no Brasil são cerca de 85 mil Guarani, habitantes do Mato Grosso do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A maioria são crianças e jovens de até 25 anos. “O que traz vitalidade e esperança no seguir sendo guarani”, comenta Clóvis.
De 350 comunidades, grande parte segue sem garantia legal, sem demarcação. Apesar da determinação legal de que as terras Guarani sejam devolvidas, pontua Brighenti, a elite agrária, em conluio com o Estado brasileiro, através de obstáculos judiciais e da violência, não admitem que este povo originário recupere suas terras. Apesar da luta pelos seus direitos, tendo as retomadas como estratégia, em muitos casos o que resta aos Guarani, como consequência dos ataques, é a fome, assassinatos e suicídio.
Mato Grosso do Sul: emergência humanitária
Como no caso dos Guarani e Kaiowá, povo ao qual pertence Otoniel Ricardo. Professor no município de Paranhos, Otoniel relatou o aumento das violações de direitos contra este povo após a eleição de um inimigo declarado dos indígenas, o presidente Jair Bolsonaro.
“Uma comitiva do meu povo acabou de regressar de Brasília, semana passada. Precisou se expor ao novo coronavírus para ir até a capital lutar para manter um direito. Colocamos nosso corpo na luta pelos direitos constitucionais para dizer não a garimpeiros e madeireiros nas nossas terras”, declarou.
Otoniel se refere à luta contra a aprovação do Projeto de Lei (PL) 191, que permitirá, se aprovado, o garimpo em Terras Indígenas. No dia 19 de abril, ocasião em que os Guarani e Kaiowá estavam em Brasília, Bolsonaro convocou lideranças cooptadas para ir à Capital Federal se manifestar a favor do PL. Indígenas contrários, com o apoio do CIMI, se articularam e ocuparam as imediações do Palácio do Planalto para dizer “não à mineração”.
Segundo Otoniel, o PL 191 é um de mais de dez instrumentos de morte que atualmente ameaçam as demarcações para beneficiar o agronegócio e os monocultivos de soja, cana e milho. O principal destes instrumentos é o marco temporal, tese inconstitucional que visa restringir o direito à terra aos povos que estavam sobre elas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal.
Celso Japoty Alves, líder do povo Awá Guarani, educador e integrante da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), explica que os indígenas no Paraná tiveram territórios alagados com a construção da Itaipu Binacional
A esta tese se contrapõe o Indigenato, uma tradição legislativa que vem desde o período colonial e que reconhece o direito dos povos indígenas sobre suas terras como um direito originário – ou seja, anterior ao próprio Estado. A Constituição Federal de 1988 segue essa tradição e garante aos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.
“Por isso é importante a ONU entender nossa situação. A violência segue cercando nosso território”. Otoniel relata, como exemplo, os ataques às retomadas de áreas limítrofes à Reserva de Dourados, onde indígenas chegaram a sofrer tortura e os acampamentos atentados, sobretudo nos últimos três anos.
Além da luta pela terra, Otoniel reforça ainda que é preciso denunciar Bolsonaro na condução do combate à pandemia. A ausência de planejamento do governo federal e a falta de estrutura já anterior deixaram comunidades sem água, sem saneamento básico e sem assistência. Condição que sabotou as estratégias de autoproteção das comunidades. “Isso a gente chama de genocídio”, desabafa Otoniel, que relata a morte de lideranças, anciões, rezadores. “Nossa resposta será sempre a solidariedade, a luta, a resistência”.
Terras invadidas no Paraná
Um dos pontos mais conhecidos do Brasil, as sete quedas de Foz do Iguaçu, hoje explorado turisticamente, é território sagrado Guarani. Este é um exemplo das áreas que no estado do Paraná são de ocupação tradicional Guarani e hoje estão sob os interesses e exploração econômica de não indígenas.
Segundo Celso Japoty Alves, líder do povo Avá Guarani, educador e integrante da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), os indígenas no estado tiveram territórios alagados com a construção da Itaipu Binacional, durante a ditadura militar (1964-1985). Uma ação civil pública corria no Supremo Tribunal Federal (STF) para indenizar o povo originário. Em outubro de 2019 foi retirada da pauta a pedido do procurador-Geral da República, Augusto Aras. Um ataque direto à justiça e à memória do povo Avá Guarani.
Segundo Celso Japoty, a própria Fundação Nacional do Índio (Funai) se absteve de recorrer a 15 anulações de processos de demarcação. O que torna o enfrentamento dos Guarani ainda mais difícil ao perder o apoio que recebiam do órgão indigenista oficial. “E o pior é que nesse momento de pandemia não podemos fazer nada para questionar essas posturas”, afirmou.
“Vivemos em acampamentos exprimidos perto de fazendas de soja, cheia de agrotóxicos que envenenam nossas águas. Os bebês estão nascendo com acefalia”
“A falta de terra para plantar nos tekoha faz com que tenhamos que buscar empregos. Parentes foram trabalhar em frigorífico que, mesmo a justiça determinando o fechamento pela Pandemia, não liberou os trabalhadores. Resultado: morreram de Covid-19”. Além das mortes pela doença, a violência ainda mais direta.
“Vivemos em acampamentos exprimidos perto de fazendas de soja, cheia de agrotóxicos que envenenam nossas águas. Os bebês estão nascendo com acefalia”, relatou Celso. “Somos vítimas de atropelamentos propositais, com pessoas fugindo sem prestar socorro, tentativas de assassinatos que não são investigadas”.
Após a fala de Celso, o mediador Elias Caurey reforçou a importância dos relatores da ONU em levarem essas denúncias adiante e tomarem atitudes concretas na responsabilização dos governos na omissão do combate a essas violências.
Miséria e desassistência no Paraguai
No Paraguai, os Guarani estão cada vez mais presentes na cidade de Assunção, deslocados de territórios não garantidos. Recentemente, protestos tomaram conta das ruas de Assunção e uma parte importante das manifestações foi formada por indígenas do povo Guarani, em luta por seus direitos.
Segundo o integrante da Federação pela Autodeterminação dos Povos Indígenas (FAPI), Alberto Vasquez Guarani Mbya, a população indígena tem reivindicado os direitos fundamentais dos povos, que o Estado paraguaio se comprometeu a cumprir em acordos internacionais como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
“Depois de muito tempo de luta, temos atualmente uma lei de educação e de saúde indígenas, alguns subsídios para os povos por parte do governo. Mas ainda assim o conflito territorial parece eterno e o reconhecimento dos povos avança muito pouco ou nada”, disse. Alberto se soma a Celso na denúncia de violações provocadas pela Itaipu Binacional. “Milhares de hectares de terras Guarani estão inundados hoje. Em 2019, denunciei essa dívida histórica em Genebra. A reparação é uma demanda internacional de respeito aos povos”, defendeu Alberto.
De acordo com o Guarani Mbya, os indígenas têm se protegido da pandemia tentando manter o isolamento em suas comunidades. No entanto, essa situação chegará a um nível catastrófico se o governo não mudar sua postura. “Não há perspectiva de vacina para o povo indígena. Não é possível vender o artesanato. Até quando vão conseguir manter o isolamento?”, questionou.
Das 711 comunidades do Paraguai, 134 não têm terras próprias; 75% dos indígenas vivem em extrema pobreza
Alberto denuncia que o Instituto Paraguaio do Indígena (INDI), a Funai do país vizinho, deveria visitar as comunidades uma vez por mês dando assistência, comida e medicamentos aos povos, mas há territórios em que o órgão do governo esteve apenas duas vezes em um ano. “Se não morrermos de Covid, será de fome”, declarou.
Somado a esse cenário, Angela Sales, da Kuña Guarani Aty, denuncia que 1.600 milhões de dólares foram destinados ao INDI no combate à pandemia e não se sabe o quanto deste dinheiro foi destinado às comunidades. Segundo Angela, das 711 comunidades do país, 134 não têm terras próprias; 75% dos indígenas vivem em extrema pobreza.
“É um número muito alto! Na pandemia, a maioria não tem acesso a serviços básicos como comida, trabalho, água, eletricidade. Sem falar na ausência de internet, que compromete a educação das crianças nesse período que estamos vivendo”, relata Ângela. Para enfrentar esse cenário, os Guarani têm se protegido através da espiritualidade. “As práticas tradicionais e o cuidado ancestral se fortaleceram neste período, é a nossa resistência”.
As autonomias na Bolívia
São 400 comunidades Guarani que habitam o Chaco boliviano, região sudeste, distribuídas em três estados. Segundo o diretor do Centro de Investigação e Promoção do Campesinato (CIPCA), Nestor Cuellar, este povo vive em locais com fontes de água, o que garante certa subsistência. No entanto, também estão sobre reservas de petróleo, o que garante inúmeras violações de direitos humanos.
Nestor relata que dos 10 milhões de hectares reivindicados pela Nação Guarani na Bolívia, pouco mais de 1 milhão está destinado aos Guarani. São 85 mil pessoas que se autoidentificam Guarani. A luta deste povo, atualmente, está relacionada à garantia de direitos básicos como terra, alimentação, educação e saúde. O direito à consulta prévia é algo que ainda não está estabelecido no país.
Sob o Estado Plurinacional boliviano, os Guarani compartilham uma experiência única com as chamadas “autonomias”. Cinco autonomias estão em processo de consolidação, segundo Demétrio Romero, presidente da Coordenação Nacional de Autonomias Indígenas Originários Campesinas.
“As autonomias não são um presente de um partido político ou de uma pessoa particular, mas sim um produto da luta das nações indígenas, que desde 1992 vêm se articulando nesse sentido”. Demétrio rememora que desde as décadas de 1960 e 1970 vem se falando em autodeterminação, mas somente na década de 1990 ela começou a se desenhar na prática.
“A autonomia é um novo modelo de organização, que envolve o território. O mais complicado são as leis que dificultam a nossa gestão. No entanto, estamos solicitando sete modificações para melhorar a concretização das autonomias”
“A autonomia é um novo modelo de organização, que envolve o território. O mais complicado são as leis que dificultam a nossa gestão. No entanto, estamos solicitando sete modificações para melhorar a concretização das autonomias”. Ainda há muita luta pela frente para conquistar o que garante a Constituição boliviana aos povos. “Foram muitos que nos dividiram com bandeiras e limites, mas o coração Guarani é um só”, finalizou Romero.
Margoth Changaray é responsável pela consolidação das autonomias dentro da Assembleia do Povo Guaraní (APG). “A lei está dada para que sejam estabelecidas, mas cada resolução referente às autonomias só anda dentro do Estado se for feita com muita pressão, do contrário não avança”. Segundo Margoth, duas autonomias foram consolidadas depois de mais de 12 anos de luta dos Guarani.
Além da luta pelas autonomias, Margoth é uma das mulheres Guarani que estão assumindo cargos políticos em assembleia, ou como senadoras, deputadas. Segundo Margoth, até pouco tempo atrás era uma realidade impossível de se estabelecer. “Lutamos pelas autonomias e para se fazer presente nas disputas pensando nas novas gerações!”.
Pressão madeireira na Argentina
Vasco Baigorri, da Pastoral Aborigena (EMiPA), trouxe alguns elementos sobre o cenário Guarani na Argentina. Presentes majoritariamente nas províncias de Salta, Jujuy e Missiones, os Guarani sofrem com a pressão do Estado e das empresas privadas, especialmente as que plantam Pinus e Eucalipto. “Não há respeito ao direito consuetudinário da Nação Guarani. Juízes e policiais intervêm em questões que são internas a este povo”. Para Vasco, é imprescindível frear o desmatamento em Terras Indígenas e respeitar a consulta aos povos.
Esta semana, Jorgelina Duarte, em nome do Conselho Continental da Nação Guarani (CCNAGUA), enviou ao Relator Especial sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU uma declaração em que recomenda ao Fórum Permanente um estudo sobre a situação dos povos Guarani no continente, levando em consideração todas estas denúncias apresentadas acima. Você pode ler a íntegra desta declaração ao final desta matéria.
Ao Alto Comissariado da ONU
Além da declaração de Jorgelina, como já citado, o debate foi acompanhado por representantes do Alto Comissariado da ONU. Para os participantes, é imprescindível que a ONU se manifeste para garantir os territórios indígenas, o cumprimento de acordos internacionais, como a Convenção 169 da OIT, e responsabilizar os governos na gestão do combate à pandemia do novo coronavírus.
Apesar das violações e ataques, o canto de Getúlio e Alda Guarani Kaiowá inundou a sala com a força espiritual do povo Guarani. “As fronteiras têm sido impostas à Nação Guarani, mas que a Nação possa se unir e trabalhar para muito além destes limites colonizadores”, afirmou Vasco Baigorri. Para finalizar, Nestor Cuellas, da Bolívia, disse: “nosso caminhar, ainda que tenha espinhos, com unidade, pode nos levar ao que estamos buscando, que é a Terra Sem Males”.
Leia a íntegra da carta de Jorgelina Duarte, Coordenadora da Aty Ñechyro, integrante do Conselho Continental da Nação Guarani (CCNAGUA):
Diálogo sobre direitos humanos com o Relator Especial sobre os direitos de povos indígenas e o Mecanismo de Especialistas em Direitos dos Povos Indígenas
Distintos membros do Fórum Permanente, Senhor Relator Especial e representante do Mecanismo especialista. Nossa organização, o Conselho Continental da Nação Guarani – CCNAGUA, que reúne as lideranças Guarani da Argentina, Brasil, Bolívia e Paraguai, defende nossos direitos nesta região desde 2010, quando foi fundado em nossa Assembleia Continental.
Nossas mais de 1600 comunidades passaram pelas mais diversas situações de violações durante este período pandêmico e, infelizmente, porque não é uma prioridade, a vacina para todos é uma realidade muito distante e para poucos. É por isso que acreditamos que as patentes das vacinas atuais devem ser quebradas e distribuídas gratuitamente a todos os povos.
A realidade de nossos territórios em situação de emergência sanitária não está mais grave porque houve ações autogeridas de nossa parte. Mesmo sob todo o discurso negacionista, anti-vacina e racista que temos registrado na região pelos governos.
Por todas essas razões, tememos o pior, um agravamento sem precedentes das condições de sobrevivência de nossas comunidades. Principalmente aqueles que tem seus direitos territoriais negados.
No Brasil, o Judiciário está prestes a tomar uma decisão histórica sobre os direitos originais dos povos indígenas sobre seus territórios. Na Bolívia, após o colapso da democracia institucional, nosso povo permanece firme e determinado e constrói territórios autogovernados. Estamos seriamente preocupados com a situação no Paraguai, onde notícias sobre despejos são regularmente noticiadas, povos indígenas estão em situações de rua e ataques armados a comunidades que foram deslocadas, incluindo perpetrados por brasileiros que exploram exaustivamente as terras da região.
Finalmente, na Argentina, nossos direitos consuetudinários são totalmente desrespeitados e não podemos nem exercer nossa autodeterminação em nossos territórios.
Também denunciamos as ações de despejos, poluição e privatização da água e o avanço da indústria extrativa em nossos territórios reconhecidos e naqueles que ainda estão em processo de reconhecimento.
Portanto, queremos recomendar a este distinto Fórum Permanente um estudo sobre a situação dos povos guaranis no continente, como um dos maiores povos indígenas nas terras baixas da América do Sul.
Aguyjevete!