Kaingang e Guarani – meus primeiros mestres
Texto da coluna “Causos e Casos”, um especial do Jornal Porantim em comemoração aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário
De 1975 a 1978, assumi a responsabilidade da pastoral indigenista da diocese de Chapecó, Dom José Gomes, em parceria com o Padre Lotário. Com a condição de não ficar amarrado à paróquia de Chapecó, fui fazendo uns arranjos de morar com famílias próximo à Terra indígena de Xapecó. Também improvisamos um pequeno espaço, no porão da casa paroquial, para dalí articularmos o trabalho de regional do Cimi Sul e, para reforçar esse trabalho, conseguimos a valiosa contribuição do Vilmar e da Juracilda.
Dos porões da liberdade, fomos aprendendo com nossos mestres Kaingang e Guarani. Mateando (tomando chimarrão), fomos aprendendo as estratégias de luta e resistência secular desses povos. Com eles, fomos amadurecendo o compromisso com a vida e também com os direitos desse povo.
Aos poucos, fomos sendo referência para trabalhos bem elementares, como fazer visitas e encontros, rompendo o isolamento e a dominação a que estavam submetidos. Não demorou e eles foram articulando suas lutas, enfrentando a massiva invasão de seus territórios e o arrendamento dos mesmos pela Funai.
Ou morremos ou expulsamos os invasores de nossas terras. Esse passou a ser o objetivo maior de suas lutas. No início de janeiro de 1978, começou a revolta dos Guarani e Kaingang, na Terra Indígena Rio das Cobras, em Laranjeira do Sul, no Paraná. Foi o estopim para que começassem a expulsar centenas de famílias das demais terras indígenas no sul do Brasil. Irresponsável política indigenista dos vários governos e estímulo de interesses criminosos e de saque dos recursos naturais, especialmente a madeira-pinheiros.
Foi o início da grande revolta. Em dezembro de 1976, foi uma primeira delegação falar com o presidente da Funai, em Brasília. Voltaram com a promessa de que o governo se empenharia na retirada dos invasores e exploradores dos recursos naturais, estimulada e feita também pela própria Funai.
Comunistas, recuperação das terras e trabalho comunitário
Não demorou e esse trabalho de apoio aos povos indígenas passou a ser considerado ações de comunistas. Mas isso não intimidou nossa solidariedade e apoio incondicional aos direitos desses povos. Apoiamos o trabalho de roças comunitárias no Pinhalzinho.
Fomos proibidos de entrar na terra indígena. Um dia desses, fomos apoiar o deslocamento de algumas lideranças para uma reunião na Terra Indígena Nonoai. Quando estávamos perto da serraria do Posto indígena, subitamente, em alta velocidade, o chefe do posto, João Mader, passou a nossa velha kombi azul, sustando nossa condução. Saiu de seu Opala branco, com arma em mãos, gritando: “Pra onde estás levando esses índios?”, respondi com tranquilidade, mas assustado: “eles me solicitaram apoio para fazerem uma reunião”. Gritando ele ordenou: “desçam todos imediatamente” e me encarando gritou: “e você se retire imediatamente daqui e não pise mais aqui dentro”. Os índios desceram da Kombi e eu me mandei para Xanxerê.
Num belo dia de dezembro de 1978, ao abrir a porta do porão, vi um bilhete no chão. Abri, li o seu conteúdo intimidador e pensei comigo: “quanto mais intimidarem, mais certeza temos de estar no caminho certo”. Meus primeiros mestres seguiram seus caminhos de luta por seus direitos. Eu segui o aprendizado, nas universidades dos índios, Brasil e mundo afora.
Não poderia deixar de fazer menção a guerreiros e guerreiras que estiveram mais próximos nesses tempos difíceis, mas extremamente gratificantes: Vicente-Foquei, Dona Diva e Nelson Xangre. Uma gratidão coletiva aos Garanti, que depois aprendi amar de todo coração, pelo povo extraordinário e guerreiro com quem partilhei momentos mais fortes da minha vida, no Mato Grosso do Sul. Da qual partilharam vários companheiros e companheiras, de maneira especial, minha companheira Laila.
Causos e Casos
Iniciada na edição de abril de 2021, a coluna “Causos e Casos” é um especial rumo aos 50 anos do Conselho Indigenista Missionário, que traz textos assinados por Egon Heck e Egydio Schwade, dois dos fundadores do Cimi e militantes da causa indígena brasileira antes mesmo da criação da entidade.
É a comemoração do cinquentenário por meio do reconhecimento da contribuição do Cimi para o desenvolvimento da causa indigenista a partir de seus missionários e missionárias, aqui representados por Egon Heck e Egydio Schwade. Figuras históricas de luta que contribuem fortemente para a atuação missionária junto aos povos originários, dando um novo sentido ao trabalho da igreja católica.
As histórias da “Causos e Casos”, escritas especialmente para esta coluna, mostrará que a atuação missionária, além de favorecer a articulação entre aldeias e povos, promovendo as grandes assembleias indígenas, onde se desenharam os primeiros contornos da luta pela garantia do direito à diversidade cultural; também fomenta espaços políticos e estratégias para o fortalecimento do protagonismo indígena.
Egon Heck e Egydio Schwade relatam causos e casos com propriedade, pois, desde os primórdios, fizeram parte das linhas de ação do Cimi, sendo impossível separar suas vidas da causa indígena brasileira. Engajados com as comunidades desde a juventude, eles compartilham dos mesmos sentimentos dos povos originários e adotaram a causa como parte integral de suas trajetórias.
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*Egon Heck é ex-padre, formado em Teologia e em Filosofia, com pós-graduação em Ciência Política e lutou, e ainda luta, bravamente ao lado de comunidades indígenas em todo o país, contrariando toda carga cultural e ideológica de preconceito contra os povos indígenas a que esteve exposto em sua própria família e diante da política de inúmeros (des)governos.