Notícias falsas ampliam o genocídio dos povos indígenas, salienta coordenador do Cimi Regional Sul
Em entrevista ao Portal Desacato.Info, Roberto Antonio Liebgott explica o caminho das fake news até as aldeias e defende investida em diálogo e esclarecimentos sobre a vacinação
Uma das principais ferramentas da antipolítica do governo de Jair Messias Bolsonaro são as notícias falsas, as quais sempre existiram na história do Brasil e passaram a ser difundidas nos meios de comunicação de massa, especialmente rádio e televisão. Acontece que, com a ascensão do WhatsApp em 2009, mais pessoas passaram a ter contato com essas notícias e tornaram-se uma via de acesso fácil para disseminação. A apropriação dessa estratégia de mentira como ferramenta da classe dominante fez com que surgisse no país, empresas especializas em propagar de forma acelerada esse tipo de conteúdo, como o conhecido “gabinete do ódio” dos filhos de Bolsonaro, que também se apresentam como grandes financiadores desse negócio que foi determinante inclusive, na eleição de Bolsonaro, Trump nos EUA e hoje contempla um mercado gigante no mundo todo e a partir de qualquer tema.
Essa prática é grave, especialmente no que diz respeito a disseminação de informações falsas sobre o plano de vacinação nas comunidades indígenas, que se encontram ainda mais vulneráveis na pandemia do novo coronavírus. Roberto Antonio Liebgott, do Conselho Indigenista Missionário, do regional Sul, concedeu entrevista na semana passada para a rádio Sputinik, trazendo o exemplo da região amazônica, onde 71% dos indígenas não teriam sido vacinados, isso porque, as mentiras divulgadas sobre a vacina, propagadas via estado brasileiro, representado também na figura de Bolsonaro, fez com que os indígenas tivessem receio quanto à eficácia da vacina.
Mas não é apenas sobre a eficácia. Liebgott ressalta que a informação sobre a transformação do modo de vida dos povos indígenas a partir da vacina, também motivou a falta de imunização nas aldeias amazônicas. “Em algumas mensagens se podia identificar a informação de que, aqueles que fossem vacinados teriam uma vida muito curta e com muito adoecimento, que levaria à morte prematura. Em outras mensagens, o conteúdo dizia que aquele que fosse vacinado perderia a fertilidade e, mais do que isso, em determinadas mensagens, tinha-se a informação de que as pessoas mudariam inclusive de sexo, que homens se tornariam mulheres e mulheres se tornaria homens”, disse.
Outro elemento destacado por Liebgott em relação a essa indústria da mentira, foi o dado propagado de que as pessoas se tornaram animais, neste caso, jacarés. Por mais que pareça mera “piada”, o missionário aponta que esse elemento é aceitável já que, na cosmologia indígena, essa pode ser uma possibilidade marcante. “Nas cosmovisões indígenas a transformação de um homem para um outro ser, nos seus simbolismos, ela é perfeitamente possível. Por isso também, teve a disseminação generalizada entre comunidades indígenas de Sul a Norte do país”, explicou.
Ele traz presente ainda o que denomina “problema de origem”, para tratar da baixa cobertura vacinal. “Qual é o problema? A negação por parte do estado através dos seus governantes, do presidente da república, de seu ministro e de toda equipe que está por trás dessas figuras, de impor à sociedade como um todo, não só aos povos indígenas, mas de impor uma sensação de insegurança diante da vacina. O governo federal é negacionista e essa sua postura é que vem comprometendo todo o processo de imunização no país. A gente tem que, numa análise primeira, levar em conta essa concepção do governo brasileiro, que coloca em dúvida primeiro: a eficácia da vacina. Segundo: propõe que as pessoas não se vacinem e terceiro: a disseminação de mentiras acerca das consequências desse processo de vacinação. Então, esse é o problema de origem”, argumentou.
O missionário refletiu ainda sobre os discursos das autoridades brasileiras que desde o início da pandemia têm feito, em âmbito nacional, a difusão da desinformação, atingindo de forma cruel todas as camadas sociais, mas principalmente, as populações empobrecidas, vulneráveis, que mais necessitam da cobertura vacinal, a exemplo dos indígenas, quilombolas e outros segmentos populacionais do país. “É preciso levar em conta esse vício de origem em que o estado, através de seus governantes, coloca em dúvida a eficácia da vacina e depois se torna negligente no sentido da aquisição das vacinas, compromete, portanto, a possibilidade de uma imunização em massa no Brasil”.
“A falta de imunização pode comprometer a existência de uma comunidade, o futuro de um povo”
A falta de uma imunização completa já apresenta reflexos terríveis para o Brasil. No caso dos povos indígenas, já são mais de mil que tiveram suas vidas interrompidas pela antipolítica do governo Bolsonaro nessa pandemia. “O fato de não haver uma imunização completa, de as pessoas dentro das priorizações não serem devidamente assistidas, isso pode comprometer o futuro de um povo, a existência da comunidade e essa preocupação, retomando o vício de origem que falamos anteriormente, em que os governantes propagam a desinformação, isso vem dentro da lógica da antipolítica, que ao invés da ação em benefício do povo, traz a desconstrução, destruição, aquilo que chamamos de genocídio. Essa lógica vai levar a consumação dessa perspectiva de que o governo Bolsonaro tem, de propagar o genocídio como alternativa contra os povos indígenas, ele propaga a desconstituição dos direitos, a desterritorialização dos povos e a integração, e isso leva ao genocídio”.
“Quando os governantes propagam a desinformação, isso vem dentro de uma lógica da antipolítica, que ao invés da ação em benefício do povo, traz a desconstrução, destruição, aquilo que chamamos de genocídio. Essa lógica vai levar a consumação dessa perspectiva que o governo Bolsonaro tem, de propagar o genocídio como alternativa contra os povos indígenas, ele propaga a desconstituição dos direitos, a desterritorialização dos povos e a integração, e isso leva ao genocídio”.
Como a desinformação foi difundida nas aldeias?
A desinformação sobre o plano de vacinação e as mentiras foram difundidas de diversas maneiras dentro das aldeias, segundo Liebgott. Além do Facebook e WhatsApp, um meio determinante foi o rádio. “A forma mais grave foi através dos meios de comunicação como o rádio e se deu especialmente na região amazônica onde as pessoas não tem acesso à internet, mas ouvem muito rádio. Então, em muitas dessas rádios, especialmente no Pará, um povo vítima desse processo foi o Munduruku”, enfatizou.
Mas a informação falsa não foi transmitida apenas pelas redes sociais virtuais e meios de comunicação de massa como o rádio. Chegaram pela palavra das igrejas neopentecostais, as mais fundamentalistas, que trabalharam no sentido de realizar nas comunidades a pregação contra a vacina. “Levaram a mentira sobre a eficácia, sobre os impactos da vacina na vida das pessoas, especialmente sobre o adoecimento e a morte, comprometendo seriamente a possibilidade de uma campanha vacinal mais abrangente”, disse.
Liebgott pontua que a falta de uma orientação pedagógica por parte dos órgãos responsáveis pela vacinação, de levar a boa informação para as comunidades, fez com que as notícias falsas tivessem ainda mais notoriedade. “Diante de um contexto de tanta desinformação e tanta mentira, havia a necessidade de que as equipes de saúde se preparassem para bem informar as comunidades. A gente percebeu que foi muito negligenciado. Houveram falhas nesse processo a partir dos contatos que nós estabelecemos com as comunidades, em que eles diziam que as equipes simplesmente chegavam e informavam que estariam vacinando as pessoas e aí houve a negativa. Então, tem um conjunto de fatores que comprometem a imunização de forma mais completa nas comunidades indígenas”.
“Houve falhas nesse processo a partir dos contatos que nós estabelecemos com as comunidades, em que eles diziam que as equipes simplesmente chegavam e informavam que estariam vacinando as pessoas e aí houve a negativa. Então, tem um conjunto de fatores que comprometem a imunização de forma mais completa nas comunidades indígenas”.
Segundo Liebgott, ao considerar essa conjuntura da desinformação e o impacto disso na vida dos povos indígenas, o CIMI desempenhou o papel de levar a informação adequada para as comunidades. “Os/as missionários/as têm esse compromisso de informar adequadamente as pessoas, acerca da importância da vacinação diante de um problema grave que tem origem não do Brasil, mas vem para o Brasil e assola a vida de todo mundo. Uma das alternativas de enfrentamento é uma aceitação a proposta de vacinação. Isso precisa ser feito dentro de um processo de diálogo adequado, por isso se conta com auxílio de intérpretes indígenas, pois muitas vezes a nossa linguagem, o português, para ser transmitido precisa de um intérprete que vai comunicar de forma adequada, só assim existe diálogo, possibilidade de esclarecimentos e isso deveria ter sido feito desde o início também pelo governo e sua equipe”, contextualizou.
Liebgott finaliza dizendo que é imprescindível que se considere o modo como os povos indígenas trabalham com a saúde e a doença, destacando que estes possuem os seus médicos tradicionais, os pajés, e por isso, o diálogo se faz tão importante. “Existem pessoas que no âmbito do seu povo são especialistas no tratamento de doenças, então, eles também precisam ser devidamente informados. As maneiras como eles apresentam a relação de tratamento também precisa ser respeitada. Na campanha de vacinação é preciso conjugar o saber tradicional com a nossa medicina, no sentido de que um complemente o outro”.