A antipolítica indigenista do governo ameaça os povos indígenas livres
Segundo os dados coletados pelo Cimi sobre as violências praticadas contra os povos indígenas em 2019, um total de 24 terras indígenas onde existem registros da presença de 48 povos isolados está invadida
O pior cenário para os povos indígenas se confirmou com a posse do novo governo federal em janeiro de 2019. Observa-se que o desmatamento, as queimadas e as invasões das terras indígenas e das unidades de conservação crescem assustadora e impunemente na Amazônia, estimuladas pela ação e omissão do governo com a finalidade de favorecer a exploração predatória das riquezas naturais da região. Diariamente, os órgãos de fiscalização são desaparelhados para deixar de cumprir sua finalidade institucional. A Fundação Nacional do Índio (Funai) age, cada vez mais, como uma extensão dos interesses econômicos de terceiros no interior das terras indígenas. Os povos indígenas, as comunidades tradicionais, seus aliados e os defensores do meio ambiente são vistos como inimigos a serem combatidos.
Todos os aspectos da política indigenista anterior, com a finalidade de assegurar direitos e beneficiar coletivamente os povos indígenas, passam a ser combatidos abertamente ou solapados para que não se concretizem. Inicia-se uma anti-política indigenista com a intenção de promover uma nova onda de esbulho das terras indígenas, favorecendo a sua apropriação por terceiros e a exploração indiscriminada das suas riquezas naturais.
Essa antipolítica se faz sentir também fortemente em relação aos povos indígenas livres ou isolados. O sistema de proteção oficial a esses povos com relativa autonomia de ação, mas já absolutamente insuficiente, sofre com a escassez de recursos humanos e financeiros, e está sendo inviabilizado.
Criminosos ambientais e todo tipo de exploradores ilegais das riquezas naturais se sentem respaldados pelo discurso oficial e encontram facilidades diante da desconstrução do aparelho fiscalizador do Estado para invadir e explorar as terras indígenas, inclusive com a presença de indígenas isolados
A perspectiva integracionista, que agride as formas indígenas próprias de organização social, mesmo superada pela Constituição, é defendida pelo governo e sinaliza para a retomada dos contatos forçados com os povos indígenas isolados. Corrobora, nesse sentido, a nomeação de um pastor evangélico para a chefia da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Conta (CGIIRC), pelo fato dele compor um setor fundamentalista que insiste na promoção da conquista religiosa desses povos.
Criminosos ambientais e todo tipo de exploradores ilegais das riquezas naturais se sentem respaldados pelo discurso oficial e encontram facilidades diante da desconstrução do aparelho fiscalizador do Estado para invadir e explorar as terras indígenas, inclusive com a presença de indígenas isolados. Um grito de alerta parte dos funcionários das Frentes de Proteção Etnoambiental (FPE), da Funai, que em carta dirigida “à sociedade brasileira e às autoridades competentes”, em novembro de 2019, manifestam sua preocupação diante do quadro assustador de ameaça à vida dos povos indígenas isolados. Eles revelam, no documento, sua angústia e impotência diante da falta de condições e de segurança para exercerem o seu papel de proteção dos territórios.
Segundo os dados coletados pelo Cimi sobre as violências praticadas contra os povos indígenas em 2019, um total de 24 terras indígenas onde existem registros da presença de 48 povos isolados está invadida, seja por madeireiros, garimpeiros, grileiros, caçadores, pescadores ou extrativistas
Uma das medidas adotadas pelo governo, com enorme potencial de ameaça aos povos isolados, é o Projeto de Lei (PL) 191/2020, já encaminhado para o Congresso Nacional, que autoriza a exploração mineral, inclusive garimpeira em terras indígenas.
Segundo os dados coletados pelo Cimi sobre as violências praticadas contra os povos indígenas em 2019, um total de 24 terras indígenas onde existem registros da presença de 48 povos isolados está invadida, seja por madeireiros, garimpeiros, grileiros, caçadores, pescadores ou extrativistas; não são consideradas aqui as regiões com presença desses povos onde não existe nenhuma providência em termos de demarcação e proteção de suas terras. O Cimi tem registros no Brasil de 116 povos indígenas isolados. A Funai confirma oficialmente a existência de 28.
Algumas das situações mais críticas em que as ameaças aos povos indígenas isolados são particularmente graves:
1. Na Terra Indígena (TI) Vale do Javari (AM), que concentra o maior número de povos indígenas isolados no país, com 18 registros, em 2019, aconteceram quatro ataques a tiros contra a Base de Proteção Etnoambiental do Rio Ituí-Itacoaí denunciados pela União das Nações Indígenas do Vale do Javari (Univaja) e confirmados pelos funcionários da Funai que trabalham nessas bases. Um colaborador da Funai dessa Base de Proteção foi assassinado, em setembro 2019, em Tabatinga (AM).
2. Paulo Paulino Guajajara, guardião da floresta, foi assassinado a tiros, em 1º de novembro de 2019, numa emboscada armada por invasores no interior da TI Arariboia (MA), habitada pelo povo Tenetehara/Guajajara e por grupos Awá-Guajá livres. Laércio Guajajara, que acompanhava Paulo Paulino, foi atingido por dois tiros, um no braço e outro nas costas. A TI Arariboia sofre com a invasão de madeireiros e caçadores há décadas. São indivíduos que se sentem à vontade para atacar os indígenas no interior de suas terras e são uma grande ameaça aos grupos isolados.
3. Na TI Yanomami, onde existem notícias sobre a presença de pelo menos cinco grupos indígenas isolados (sendo um confirmado pela Funai), avança, de modo ostensivo, a invasão garimpeira, degradando a floresta, contaminando de mercúrio as águas e os peixes e espalhando doenças entre os indígenas. Lideranças Yanomami, em 2019, denunciaram que mais de 20 mil garimpeiros exploram, ilegalmente, seu território tradicional, que deveria ser protegido pelo Estado.
4. Na região central de Rondônia se tornam cada vez maiores os riscos à sobrevivência de três povos isolados localizados no interior da TI Uru-Eu-Wau-Wau. Nela, constata-se, também, um evidente aumento dos invasores a partir de 2019, que se sentem respaldados pelo discurso anti-indígena do governo federal. Estima-se que o número atual de invasores seja superior a mil pessoas, diretamente associados aos índices crescentes de desmatamento verificados naquela terra indígena.
5. Na bacia do Rio Xingu, no Pará, o desmatamento explodiu, em 2019, na TI Ituna-Itatá, que tem portaria da Funai de restrição de uso devido à presença de um povo indígena isolado. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), houve um aumento de 656% do desmatamento nessa área, em comparação com o ano de 2018. Com a construção do Complexo Hidrelétrico de Belo Monte, a região passou a ser alvo da ação de grileiros e madeireiros, que invadiram massivamente o território indígena.
6. Na TI Inãwébohona, localizada na Ilha do Bananal, o avistamento, no dia 9 de outubro de 2019, de oito indígenas isolados, por um brigadista do PrevFogo, durante uma ação de combate a um grande incêndio florestal, denuncia a situação de risco em que eles se encontram. A Funai, informada constantemente nos últimos anos, tanto por indígenas da região como pelo Cimi, sobre a presença desse povo indígena isolado na Ilha, jamais confirmou a sua existência e muito menos adotou qualquer medida de proteção. Mesmo provocadas a agir pelo Ministério Público Federal (MPF), as autoridades se mantêm em silêncio e omissas, apesar das evidentes ameaças à vida desse povo isolado devido ao grande número de invasores e dos devastadores incêndios no período seco.
7. Os povos indígenas isolados, que se deslocaram para os lugares mais inacessíveis da Amazônia para fugir da violência das frentes de expansão econômica capitalista e para manter a sua liberdade, têm direito à vida e a seus territórios e devem ser respeitados pela opção que fizeram, assegurados pela legislação brasileira e pelos tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário. A ninguém cabe desrespeitá-los, muito menos àqueles a quem foi confiada a responsabilidade de zelar pelo cumprimento da lei e da proteção dos povos originários e da natureza, como determina a Constituição Federal.