Violações ao direito de consulta prévia de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais são denunciados na CIDH
Denúncias de violações no Brasil, Colômbia, Peru e México foram apresentadas durante audiência virtual temática da Comissão Interamericana de Direitos Humanos
Nesta sexta-feira (09), a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) realizou uma audiência com o tema “O direito à consulta e ao consentimento prévio, livre e informado dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais”.
Realizada em formato virtual devido à pandemia, a atividade foi proposta por 38 organizações da sociedade civil do Brasil, Colômbia, Peru e México, entre elas o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), além de duas organizações regionais.
O objetivo da audiência foi o de refletir sobre os 30 anos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o cenário atual de violações e retrocessos aos direitos dos povos indígenas, afrodescendentes e comunidades tradicionais na América Latina. Estas violações – e o seu agravamento em meio à pandemia de covid-19 – transpareceram na fala de diversos representantes de povos, comunidades e organizações da sociedade civil que se manifestaram durante a uma hora e meia que durou o evento.
Adotada pela OIT em 1989, a Convenção 169 estabeleceu um importante marco para o reconhecimento do direito dos povos e comunidades tradicionais à Consulta Prévia, Livre e Informada acerca de qualquer projeto, medida ou iniciativa que afete seus direitos, suas vidas e seus territórios.
A audiência, que integrou o 177º período de sessões da CIDH, apontou para uma perspectiva ainda mais ampla que o cumprimento das determinações da Convenção da OIT, indicando a necessidade de se encarar o direito à consulta e ao consentimento como um direito humano, ligado ao direito à autodeterminação dos povos.
“Queremos que a comissão nos ajude nesse sentido, de fazer com que o Estado brasileiro cumpra com aquilo que ratificou”
Violações no Brasil
Os brasileiros foram os primeiros a se manifestar no debate, com a fala de Cláudia de Pinho, representante da Rede de Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil. Liderança pantaneira, Cláudia destacou a diversidade étnica e cultural do país e chamou atenção para as variadas violações sofridas por esses povos e comunidades, destacando a omissão no reconhecimento e proteção de seus territórios e a falta de ações efetivas de combate à pandemia de covid-19.
“A saúde é a nossa maior riqueza, e fomos afetados com a disseminação da covid-19. Trago vozes diversas denunciando a omissão do Estado brasileiro, que não construiu planos emergenciais de caráter preventivo, pró-ativo e protetivo para nossos grupos”, relatou.
O Pantanal, bioma onde vive a comunidade tradicional da qual Cláudia faz parte, sofre com as queimadas e bateu recorde histórico de incêndios florestais no mês de setembro. “Temos enfrentado o fogo e suas consequências, enquanto o Estado brasileiro desmonta os órgãos ambientais de prevenção, controle e fiscalização”, denunciou a pantaneira.
“Esses empreendimentos que estão sendo construídos e os futuros vão atingir milhares de vidas”
Complementando a situação apresentada por Cláudia, Denildo de Moraes, da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), denunciou o total desrespeito ao direito de Consulta Prévia das mais de 5.900 comunidades e 6.000 territórios quilombolas no Brasil.
“Temos, somente nos territórios quilombolas, mais de 1200 empreendimentos, e em nenhum momento fomos ouvidos. Há, inclusive, empreendimentos que estão sendo construídos agora, no período da covid-19, e as comunidades são ouvidas somente no início das obras, não tem nenhuma orientação”, afirmou a liderança quilombola.
“Queremos que a comissão nos ajude nesse sentido, de fazer com que o Estado brasileiro cumpra com aquilo que ratificou”, pediu Denildo. “Esses empreendimentos que estão sendo construídos e os futuros vão atingir milhares de vidas”.
Além das situações apresentadas por Cláudia e Denildo, as violações ao direito à Consulta Prévia, Livre e Informada no Brasil foram relatadas à CIDH num relatório executivo, construído em conjunto com as organizações dos demais países.
O documento destaca, no caso brasileiro, o desmonte da participação em espaços de elaboração e controle social de políticas públicas, a existência de projetos legislativos que afetam os territórios de povos indígenas, quilombolas e demais povos e comunidades tradicionais sem que eles sejam ouvidos e a omissão no reconhecimento de direitos territoriais.
O relatório também apresenta exemplos práticos de projetos de infraestrutura e mineração que resultaram em violação ao direito à consulta e ao consentimento.
A desativação do Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) e do Fórum de Presidente dos Conselhos Distritais de Saúde Indígena (FPCondisi) são citadas como medidas que restringiram os canais de acompanhamento das políticas públicas para os povos indígenas.
Uma “consulta online” realizada durante a pandemia pelo DNIT a indígenas do Oiapoque sobre a pavimentação de uma rodovia na Terra Indígena Uaçá foi citada como exemplo de violação ao protocolo de consulta destes povos e à recomendação da própria CIDH. Segundo o relatório, “o governo federal, por meio de diferentes órgãos, tem tentado realizar consultas virtuais, num claro atentado ao direito à consulta”.
“Não queremos nenhuma consulta, se ela só serve para que os governos e as empresas obtenham uma autorização para efetivar projetos em nossos territórios”
Violações pela América Latina
Assim como no Brasil, os representantes dos outros três países destacaram a dificuldade de efetivação do direito à Consulta Prévia, Livre e Informada, mesmo quando este direito é reconhecido em diferentes instrumentos legais.
Na Colômbia, “a compreensão deste direito, por parte do poder público e diversos setores empresariais do país, segue sendo muito limitada”, afirmou Charo Mina Rojas, da Comissão Étnica para a Paz. Ela também criticou o fato de que, com frequência, este direito é apresentado como um “direito de minorias privilegiadas” que “atrapalha o desenvolvimento”.
No caso do Peru, Vanessa Cueto La Rosa, da organização Derecho, Ambiente y Recursos Naturales (DAR), chamou atenção para as propostas de realização de “consultas virtuais” durante o período de pandemia, justificadas pela necessidade de reativação da economia.
“Isto torna os povos indígenas vulneráveis, não apenas pelas dificuldades tecnológicas, mas também porque limita as condições para um diálogo intercultural pleno”, denunciou a peruana, relatando também a existência de “propostas de priorização de ‘acordos prévios’ entre empresas e comunidades indígenas para evitar consultas prévias”.
A representante do Coletivo de Comunidades Maias dos Chenes, Leydy Pech, destacou o fato de que no México “os processos de consulta não acontecem de maneira prévia”, prática que divide comunidades por meio da cooptação de pessoas em situação de vulnerabilidade.
“Nós não queremos nenhuma consulta, se ela só serve para que os governos e as empresas obtenham uma autorização para efetivar projetos em nossos territórios”, afirmou a mexicana.
“A consulta não é uma ferramenta para mitigar a conflitividade social, mas um instrumento para efetivar o direito à livre determinação”
Consulta Prévia e autodeterminação
A Relatora sobre Direitos dos Povos Indígenas e Vice-Presidente da CIDH, Antonia Urrejola, respondeu às observações feitas pelos representantes das organizações peticionárias ressaltando que “a consulta não é uma ferramenta para mitigar a conflitividade social, mas um instrumento para efetivar o direito à livre determinação”.
“A Comissão tem assinalado reiteradamente que o direito à consulta e ao consentimento não são um fim em si mesmos, mas um meio para garantir o exercício de outros direitos em um contexto de diálogo intercultural”, disse ela. Quando os direitos de consulta e consentimento não são garantidos, alertou, “coloca-se em risco a própria sobrevivência dos povos indígenas”.
Urrejola relembrou a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso do povo Kichwa de Sarayaku contra o Estado do Equador, em 2012. “A Corte estabeleceu, precisamente, que o direito à consulta não diz apenas respeito aos Estados que ratificaram a Convenção 169, mas é um princípio fundamental do direito internacional, dos direitos humanos”, afirmou.
Ela também destacou a dificuldade de efetivação do direito à Consulta Prévia, apontada como um problema pelos representantes da sociedade civil de todos os países.
“Lamentavelmente, muitos dos Estados da região reconhecem o direito dos povos indígenas à Consulta Prévia, alguns inclusive em nível constitucional, mas sempre nos deparamos com uma distância muito grande entre o reconhecimento constitucional ou legal e a implementação na prática”, disse a comissionada.
A vice-presidente da CIDH informou, ainda, que a Comissão já aprovou a realização de um informe temático sobre a questão da autodeterminação dos povos para o ano que vem. Este era um dos pedidos apresentados pelas organizações que solicitaram a audiência.
Segundo o Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Livre Prévio e Informado, existem no Brasil ao menos 48 protocolos de consulta, elaborados de forma autônoma pelos povos e comunidades tradicionais
Protocolos de Consulta
Os diversos relatos sobre a construção de protocolos de consulta feitos pelos próprios povos e comunidades chamaram a atenção da relatora da CIDH sobre Direitos dos Povos Indígenas, que pediu mais informações a respeito desses instrumentos.
Os protocolos são voltados a orientar o Estado sobre a forma como os respectivos povos e comunidades desejam ser consultados, de acordo com sua cultura, costumes e formas próprias de organização. Embora existam instrumentos deste tipo em diversos países, o Brasil se destaca pela quantidade de protocolos elaborados de forma autônoma.
“No Brasil, temos quase 50 protocolos autônomos, e a origem deles geralmente é por conflitos, sejam de empreendimentos, ambientais ou sociais. A forma como cada comunidade se organiza para construir seu protocolo possui respaldo jurídico da Constituição e da própria Convenção 169”, explicou Cláudia de Pinho.
“Ele é construído de forma a respeitar os modos de vida e a organização interna de cada grupo ou povo. Com isso, temos protocolos com normas e diretrizes mais próximas da realidade de cada grupo étnico”, prosseguiu a pantaneira.
Citando um levantamento do Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Livre Prévio e Informado, a representante da Rede de Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil informou que existem, no país, ao menos 48 protocolos de Consulta, três dos quais ainda em construção.
O Observatório indica que há hoje no Brasil 22 protocolos elaborados por um ou mais povos indígenas, 13 elaborados por comunidades quilombolas, 9 por povos e comunidades tradicionais e dois protocolos comunitários voltados à preservação da biodiversidade e proteção dos conhecimentos tradicionais; há ainda um protocolo conjunto e outro elaborado por indígenas Warao, em situação de refúgio no Brasil.
“O reconhecimento de que somos sujeitos de direito nesse processo e que os protocolos autônomos podem ser instrumentos jurídicos para a defesa de nossas vidas e territórios é importante”, destacou a liderança pantaneira.
Clique aqui para ver a lista completa das organizações peticionárias e confira, abaixo, os pedidos gerais feitos à CIDH.
Pedidos gerais à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)
– Que se manifeste sobre a necessidade dos Estados da região respeitarem o autorreconhecimento de Povos Indígenas, Comunidades Negras, Quilombolas e demais Povos Tradicionais e de reconhecê-los como sujeitos coletivos do direito de consentimento livre, prévio e informado e de livre determinação;
– Que ordene aos Estados da região que não promovam ou tolerem o deslocamento destes povos que habitam territórios reivindicados, ainda que não oficialmente reconhecidos, especialmente durante a pandemia decorrente da covid-19;
– Que se manifeste reiterando o caráter jurídico e vinculante dos protocolos autônomos de consulta, enquanto exercício de autodeterminação dos povos e disposição de boa fé ao diálogo com os Estados Nacionais, para a garantia da segurança jurídica dos envolvidos nos processos de consulta;
– Que inste os Estados a observarem a Resolução n. 01/2020 “Pandemia e Direitos Humanos nas Américas” (aprovada pela CIDH em 10 de abril de 2020), especialmente quanto à suspensão dos processos de licenciamento de obras de infraestrutura e projetos produtivos e/ou extrativos afetando territórios de povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais;
– Que reitere que a obrigação estatal de consultar e obter o consentimento dos Povos Indígenas, Afrodescendentes e Tradicionais NÃO PODE ser transferida a empresas, ressaltando que os Estados NÃO DEVEM permitir o financiamento de processos de consulta por parte de atores privados interessados em projetos de investimento em territórios indígenas e tradicionais.
– Que elabore um Informe Temático da CIDH sobre o direito à livre determinação de povos indígenas e comunidades tradicionais nas Américas.
– Que se pronuncie sobre o dever dos Estados de reconhecer, regularizar, titular e adequar os territórios tradicionais, em consulta com os respectivos povos;
– Que recomende aos Estados que cumpram suas obrigações internacionais frente a estes povos, implementando a Convenção 169 da OIT e os padrões da CIDH;
– Que recomende aos Estados da região que adequem suas instituições para a realização de processos oportunos de Consulta Prévia, Livre e Informada;
– Que repudie as iniciativas dos governos da região de realizar processos de consulta virtuais, online ou remotos, a flexibilização destes processos ou outras formas de restrição ao direito ao consentimento durante a pandemia de covid-19.