Gerson Souza Melo, cacique dos Pataxó Hã-hã-hãe, morre por Covid-19
A violência e perseguição imposta pelos inimigos lhe rendeu uma vida marcada pelas ameaças de assassinato e criminalização
Uma das mais longas e árduas lutas territoriais dos povos indígenas no Brasil, a retomada da terra Indígena Caramuru Paraguaçu, na Bahia, perdeu um de seus maiores líderes, Gerson Souza Melo, vítima da Covid-19. A tragédia chega a um momento onde a epidemia está falsamente controlada no Brasil, mas ainda não somente muito mortal, como provocando impactos profundos nos povos indígenas. Gerson Pataxó deixa um legado de luta que entra para a história.
O que constitui um grande líder indígena? A sua capacidade de entrega na luta? O conhecimento detido da cultura, da tradição e do território? A preocupação com o registro da história do seu povo? A articulação com outros povos e outras lutas? Pois Gerson Pataxó tinha todas estas características, e mais a permanência constante junto a seu povo e o acompanhamento incessante dos acontecimentos que ocorrem cotidianamente em suas comunidades.
Certos acontecimentos, que muitas vezes possam passar despercebidos, e serem, supostamente, de âmbito estritamente doméstico, podem provocar alterações profundas na vida dos povos. Um líder precisa ser vigilante. E foi em uma dessas situações, em mais de 20 anos de relação com os povos indígenas, que conheci Gerson Souza Melo, em maio de 1999, na sede do Ministério Público Federal, na cidade de Ilhéus, sul da Bahia. Meses antes, Gerson se encontrava muito atento às transformações que a saúde indígena vinha sofrendo com a “Lei Arouca” (nº 9.836/99), e promoveu, junto a outras lideranças do povo Pataxó Hãhãhãi, um diagnóstico de saúde das três aldeias (Caramuru, Bahetá e Panelão), que então compunham partes da Terra Indígena Caramuru-Paraguaçu. Em função desse diagnóstico, Gerson e a comunidade tiveram dimensão da grande quantidade de mulheres esterilizadas nas comunidades, e a partir daí teve início um processo que trouxe alterações profundas na organização sócio política do povo Pataxó Hãhãhãi e reorientou a luta pelo território.
Esse nosso primeiro encontro na sede do MPF ocorreu em função dos depoimentos de algumas das mulheres esterilizadas no contexto de campanha política. Eu ambicionava pesquisar o ocorrido para a monografia de conclusão do meu bacharelado em Ciências Sociais, na Universidade Federal da Bahia. Como um grande líder, Gerson reconheceu que aquele meu interesse poderia fortalecer as denúncias e passamos dois dias conversando e combinando como poderia ocorrer a pesquisa. Ele era muito entusiasta das pesquisas e pesquisadores, incentivava e apoiava que os parentes muito estudassem e se tornassem cientistas, professores, médicos e historiadores do seu povo. Certa vez, permaneceu dias no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, selecionando e lendo documentos do então Serviço de Proteção aos Índios sobre a Reserva Caramuru-Catarina Paraguaçu, interesse que despertou à equipe do Museu a publicação de um livro com textos analíticos sobre a documentação e resumos de todos os documentos. Era mais uma importante peça conquistada para comprovar o direito de seu povo à terra que reivindicava.
Gerson era do povo Pataxó Hãhãhãi, mas seu troco velho, sua etnia, como ele mesmo enfatizava, era Kariri-sapuyá. Família pela qual tinha muito orgulho e engendrava esforços para unir e registrar a trajetória, desde Pedra Branca, no Recôncavo da Bahia, até a Reserva Caramuru-Paraguaçu, conduzida pelo etnólogo Curt Nimuendaju, lá pelos idos de 1937. Seu respeito pelos mais velhos e pela luta e persistência ancestral garantiram a ele a “voz da tradição”, qualidade que os Pataxó Hãhãhãi costumam referir a quem “sabe contar as histórias”, a quem “escutou os mais velhos”. Foi Gerson Souza Melo e sua prima, Ilza Rodrigues, hoje também cacique, que esforçaram-se para me fazer compreender o que seria a organização social que utiliza etnônimo englobante (Pataxó Hãhãhãi), mas que aciona a ênfase em etnias (Tupinambá, Gueren, Kariri-Sapuyá, Kamacã, Hãhãhãi, Baenã) por famílias ou famílias por etnias para marcar ações de luta – como as retomadas.
Olympio Serra certa vez fez uma analogia ao equivalente ocidental, sobre o papel desempenhado por Gerson junto ao seu povo, que seria algo como “primeiro-ministro”, ou alguém que está dentro e está fora, também, no papel de representação. Papel esse que obteve justo reconhecimento externo ao ser homenageado com o Prêmio de Direitos Humanos, ainda no ano 2000. A dor sentida por estar em Brasília, na companhia do primo Galdino Jesus dos Santos, quando este foi assassinado, em 1997, queimado vivo em Brasília, acentuou seu senso de justiça e pressão sobre o Estado Brasileiro. Ele por vezes narrava sobre os tensos encontros com o presidente Fernando Henrique Cardoso, que sempre fazia certas ironias com as lideranças indígenas, sugerindo que cada líder só estaria interessado na demarcação de seu território. Certa vez, Gerson escutou dele “você só quer a demarcação dos Pataxó?”, no que ele retrucou, “o senhor precisa respeitar os índios do Brasil”.
“Eu vi a luta desde pequeno”, dizia ele. Desses tempos de pequeno guardava na memória, a reunião dos parentes na casa de seus pais, ambos já falecidos, Egídia Trajano e Diogo Souza Melo, estrategicamente escolhida para ser o local de encontro do Grupo Luta pela Terra, criado em 1974, quando Gerson tinha ainda 12 anos de idade. Cresceu, também, tendo muita consciência que a luta dos índios é possível e resistente porque dela participa um conjunto de seres encantados, humanos e não humanos. Não deixava de referir ao tio, irmão de Egídia, que envultava, aparecia e sumia, como uma forma de confundir o inimigo. Da sua convivência e parentesco com outros líderes mais velhos, a exemplo de Samado Santos e Desidério dos Santos, foi crescendo e entendendo a história que carregava e que ajudaria a construir.
O povo Pataxó Hãhãhãi muito se orgulha que sua luta para recuperar o território não tenha beneficiado apenas os indígenas. A cidade de Pau Brasil, por exemplo, uma das quais está localizada a terra indígena, foi fortemente impactada positivamente com a conquista dos índios, sua economia cresceu, o comércio prosperou e as relações interétnicas foram apaziguadas. Apesar do forte sentimento anti-indígena que predominou por décadas no município, os indígenas sempre pensaram em Pau Brasil como um lugar de circulação e presença deles, também, e talvez por isso tenham se preocupado, desde o final dos anos 1980, com a política local e como ela poderia lhes afetar. A criação do Partido dos Trabalhadores naquela cidade foi protagonizada pelos Pataxó Hãhãhãi, e nele fizeram vereadores, a exemplo do próprio Gerson.
A violência e perseguição imposta pelos inimigos lhe rendeu uma vida marcada pelas ameaças de assassinato e criminalização. Ele conseguiu escapar de dois cercos de pistoleiros que atiraram contra o carro em que se encontrava, e sobreviveu também a um sequestro orquestrado pelos mesmos inimigos, que lhe ofereciam terras e gado em troca da sua saída da luta e liderança do povo Pataxó Hãhãhãi.
Em novembro de 1999, em viagem de retorno a aldeia, após participarem de uma sessão especial na Assembleia Legislativa da Bahia, em Salvador, Gerson e suas primas, Ilza Rodrigues e Margarida Rocha, foram surpreendidos com a interrupção da viagem no posto da Polícia Rodoviária Federal, em Itabuna. Lá estavam policiais militares do 150 Batalhão que prenderam Gerson, sob mandado do juiz da Comarca de Pau Brasil, Antônio Cândido Garcia de Oliveira. A acusação que pesava sobre ele era a de uma suposta tentativa de homicídio a um fazendeiro, em 1994. Surpreendentemente, ao interpor mandado para o pedido de Habeas Corpus, a FUNAI se deu conta de que o pedido fora expedido às 7:15 da manhã, enquanto a prisão havia sido efetuada às 6:00. O MPF conseguiu que Gerson permanecesse custodiado pela Polícia Federal, em Ilhéus, mas nem ele, e nem eu, nos recordamos de quantos dias ficou encarcerado. Talvez quatro ou cinco dias. Após essa, ele enfrentou ainda outras tentativas de criminalização de sua luta.
Mas, em contexto de genocídio, os indígenas que conseguem sobreviver aos conflitos, podem não sobreviver aos impactos de uma nova doença e ao descaso com a saúde indígena por parte de um governo racista e por si só, adoecedor. Gerson, que nasceu em 12 de janeiro de 1962, cresceu em Pau Brasil vendo a terra do seu povo invadida, mas acompanhando a determinação de seus mais velhos em reavê-las. Ele, que lutou o bom combate para sua reconquista e pôde comemorar a expulsão de cada invasor e algoz da sua terra, não resistiu aos efeitos da Covid, uma pandemia que no Brasil se fortalece com contornos mais sofisticados de descaso e crueldade.
Nesses mais de 20 anos de amizade e relação, falamos em medos, expectativas, certezas, tristezas e muitos planos, mas nunca falamos em morte. Muito embora sempre fosse uma certeza, obviamente, especialmente quando víamos a partida de tantos mais velhos, achávamos que a dele, e a minha, não seria para tão cedo. Desses seus muitos planos, estava a construção de um memorial indígena no Caramuru, que abrigasse tanto os documentos e objetos de memória do povo Pataxó Hãhãhãi, bem como, as duas urnas funerárias que foram retiradas para estudo, do sítio arqueológico Água Vermelha, uma das regiões da terra indígena Caramuru-Paraguaçu.
Gerson foi a primeira liderança indígena que me aproximei, e foi em casa sua, de Selma — sua esposa — e de seus quatro filhos — e agora sete netos — que, em julho de 1999, vivenciei a minha primeira experiência de trabalho de campo. Eles têm uma importância imensa na minha formação como antropóloga e como pessoa, pois mais da metade da minha vida é de conhecimento com eles.
No dia de sua morte, 15 de outubro de 2020, muito impactada pela surpresa do acontecimento e avassaladora tristeza, escutei de uma amiga a sugestão que colocasse a tristeza para fora escrevendo um conto que entrelaçasse a casa de Gerson como um lugar de potência para mim, e a casa de Egídia com o um lugar de potência para os Pataxó Hãhãhãi. Não sei se sou capaz disso, mas quero registrar aqui o quanto uma casa é abrigo. Gerson morreu de forma muito precoce, mas agora estará sempre em casa, como preconizaram seus antepassados.
1- Jurema Machado é professora do Centro de Artes, Humanidades e Letras da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia e presidente do conselho diretor da Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí). Artículo enviado por el Grupo de Trabajo CLACSO Ecologías políticas desde el Sur/Abya Yala.