04/09/2020

Sem territórios demarcados, povos do Nordeste enfrentam ao mesmo tempo a fome e a letalidade do vírus

Ações emergenciais do Cimi Regional Nordeste contra covid-19 chegam a mais de 22 mil indígenas, com quase 500 cestas de alimentos entregues

Cestas de alimentos entregues ao povo Pankararu O Pará, no Pernambuco. Foto: Cimi Regional Nordeste

Por Adi Spezia, com informações do Regional Nordeste do Cimi

Ao entrar no oitavo mês de isolamento social, a pandemia do novo coronavírus tem acirrado ainda mais a situação dos povos indígenas em todo país. São quase 30 mil infectados, 800 mortos e 156 povos diretamente afetados, segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), apesar de todas as medidas adotadas, muitas vezes sem apoio do Estado, para coibir a contaminação e propagação do vírus nas aldeias. A interiorização do vírus é agravada pelas invasões e a não demarcação dos territórios tradicionais, o que força os indígenas a viverem aglomerados nas pequenas parcelas de terras que ocupam.

Em março, com a confirmação do primeiro caso da covid-19 entre indígenas, imediatamente as equipes do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Nordeste se afastaram dos territórios de forma presencial e intensificaram o diálogo por meio de instrumentos tecnológicos. Com atuação no Sergipe, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí e parte da Bahia, as equipes do Cimi Nordeste listam a fome e a não demarcação dos territórios como dificuldades que apresentam a mesma letalidade do vírus.

“As equipes do Cimi Nordeste listam a fome e a não demarcação dos territórios como dificuldades que apresentam a mesma letalidade do vírus”

Doações sendo entregues ao povo Kariri-Xoko, em Alagoas. Foto: Cimi Regional Nordeste

Sem nenhum Plano Emergência de enfrentamento à covid-19 por parte do Estado brasileiro e com esta realidade imposta, os povos criaram suas próprias medidas de proteção. De imediato fecharam os territórios, criaram barreiras sanitárias, montaram equipes e passaram a monitorar os contágios.

No caso do povo Potiguara na Paraíba, essas decisões foram tomadas pelo cacique geral e pelo Conselho de Lideranças, que realiza reuniões periódicas e tem sido responsável pela tomada de decisões. “O povo Potiguara conta com uma população aproximada de 20 mil pessoas, vivendo em 33 aldeias”, relata Alcilene Bezerra da Silva, coordenadora do Regional Nordeste do Cimi.

“O povo Potiguara conta com uma população aproximada de 20 mil pessoas, vivendo em 33 aldeias”

Entrega dos alimentos ao Grupo das Mulheres Guerreiras Potiguara, na Paraíba. Foto: Cimi Regional Nordeste

No caso de Alagoas, são trezes povos indígenas espalhados nas regiões Zona da Mata, Agreste, Sertão e Baixo São Francisco, fora aqueles povos que são desaldeados, ou seja, são forçados a viver fora de seus territórios tradicionais. No caso do povo Kariri-Xocó em Porto Real do Colégio, entre os acometidos pela covid-19 estão mais de 40 indígenas infectados e dois óbitos confirmados.

O número de casos revela ainda outra realidade. Com a não demarcação dos territórios tradicionais, estes povos são forçados a viverem em pequenas parcelas de terra, aglomerados, sem saneamento básico adequado e em casas que não permitem o isolamento social conforme orientam os órgãos de saúde.

Com o processo de demarcação do território tradicional parado e intensiva ocupação por posseiros, os Kariri-Xocó estão entre os povos mais populosos do Nordeste. De um lado, sua principal aldeia está praticamente dentro da cidade de Porto Real do Colégio; por outro, situa-se às margens da BR-101, a segunda maior rodovia federal do país, fatores decisivos na infecção da população.

“Sem territórios demarcados os povos são forçados a viverem em pequenas parcelas de terra, aglomerados, sem saneamento básico e em casas que não permitem o isolamento social”

Caixa de água entregues ao povo Kariri-Xoko, em Paulo Afonso – Bahia. Foto: Cimi Regional Nordeste

 

Ações solidárias que matam a fome

Quase em todas as aldeias do país, a base econômica dos povos indígenas tem seu principal alicerce na produção e comercialização de artesanatos e dos frutos da terra. Fragilizados pela necessidade do isolamento social, as comunidades têm encontrado dificuldades na autossustentação.

Como medida de apoio aos povos da região, o Cimi Regional Nordeste mobilizou alimentos e itens de higiene e limpeza. Junto ao povo Potiguara, na Paraíba, para a montagem de 100 cestas básicas e 100 kits de higiene e limpeza, o Regional buscou o apoio da Organização da Juventude Indígena Potiguara (OJIP). Da mesma forma houve o envolvimento do Grupo das Mulheres Guerreiras Potiguara. Estas mulheres têm na venda de artesanato aos turistas uma das suas principais fontes de renda – a qual, com a pandemia e o fechamento do território, foi duramente prejudicada.

“Neste momento de pandemia a necessidade é enorme, porque não estamos podendo vender nosso artesanato”

Cestas de alimentos entregues ao povo Potiguara, na Paraíba. Foto: Cimi Regional Nordeste

“Neste momento de pandemia a necessidade é enorme, porque através do nosso artesanato, que não estamos podendo vender, a não ser que os turistas passem nas nossas aldeias. É muito difícil a venda dos artesanatos Potiguara no isolamento”, esclarece Maria Soares Gomes, presidente da Associação das Mulheres Guerreiras Potiguara.

A equipe, junto com a juventude Potiguara, realizou o mapeamento das famílias mais necessitadas das 33 aldeias, montou os kits e organizou as entregas de modo a não causar aglomeração e com todas as precauções necessárias, assegura a coordenadora do Regional. As primeiras entregas formam para as famílias com crianças, gestantes e anciões; em seguida, as mulheres guerreiras e as demais famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade social devido à pandemia.

“Não há nada melhor do que receber essas doações, esses alimentos vão fortalecer nossas crianças”

Entrega das doações ao povo Warao, que vivem em contexto urbano no Recife. Foto: Cimi Regional Nordeste

Sobre as doações, Maria agradece pelo apoio e conta que “não há nada melhor do que receber essas doações, esses alimentos vão fortalecer nossas crianças”.

Junto os Kariri-Xocó, as ações chegaram a pelo menos 2.100 indígenas. “Com habitações precárias e baixas condições econômicas, muitas famílias se encontram em situação de risco, por isso a prioridade em ajudá-las”, explica Alcilene. Ainda em Alagoas, foram entregues mais 290 cestas de alimentos aos povos Kalankó, Koiupanká, Karuazu e Geripankó, numa parceria com a Associação dos Agricultores Alternativos, município de Igaci e Unidade Popular Pelo Socialismo (UP) de Alagoas.

As cestas de alimentos entregues são compostas por pelo menos 2kg de feijão; 3kg de arroz; 2kg de açúcar; 3 pacotes de macarrão; 3 pacotes de café; 4 pacotes de bolacha ou biscoito; 2 pacotes de leite em pó; 3 latas de sardinha; 5 pacotes de flocão de milho; 3 pacotes de fubá; latas de doce; óleo de soja e gordura alimentar de origem vegetal. Já os kits de limpeza são compostos por sabão em barra, sabão em pó e água sanitária.

“Com habitações precárias e baixas condições econômicas, muitas famílias se encontram em situação de risco”

Caminhão carregado com as cestas de alimentos e os kits de higiene e limpeza. Foto: Cimi Regional Nordeste

De Paulo Afonso, na região Norte da Bahia, o cacique Jailson Kariri-Xocó conta que as doações vieram quando seu povo mais precisava. “Os Kariri-Xocó só tem a agradecer, as doações vão ajudar muito”, afirma. O agradecimento vem também em forma de desejos, “se cuidem aí, que nós nos cuidamos aqui também”, completa o cacique.

Numa parceria com a Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espirito Santo (Apoinme), aos Kariri-Xocó foram entregues 60 cestas básicas, kits de material de higiene e limpeza e 2 mil máscaras de tecido doadas pela Caritas Diocesana de Palmeira dos Índios (AL). As ações emergenciais de enfretamento à covid-19 buscam amenizar a fome e a vulnerabilidade social impostas pela pandemia.

“As ações emergenciais de enfretamento à covid-19 buscam amenizar a fome e a vulnerabilidade social impostas pela pandemia”

Mulheres do povo Geripankó levando as doações. Registro feito em Alagoas. Foto: Cimi Regional Nordeste

Mulheres do povo Geripankó levando as doações. Registro feito em Alagoas. Foto: Cimi Regional Nordeste

 

Apoie, as ações precisam continuar

Impossibilitados de realizar atividades remuneradas fora dos territórios, o isolamento social ainda é a forma mais eficiente de preservar a vida, e produções da agricultura tradicional de vazante como plantações de arroz e pesca artesanal, praticas que garantem a sustentação nas aldeias nordestinas, a pandemia tende a agravar ainda mais a condição de vulnerabilidade dos indígenas.

Na busca por amenizar os efeitos da pandemia junto aos povos, o Cimi tem mobilizado parceiros, agências de cooperação e pessoas físicas em todas as regiões de atuação da entidade. Essa articulação se reflete nas ações realizadas junto aos povos, estejam eles em seus territórios ou em contexto urbano.

“O Cimi tem mobilizado parceiros, agências de cooperação e pessoas físicas em todas as regiões de atuação da entidade”

O povo Kariri-Xocó está entre os povos mais populosos do Nordeste. Foto: Cimi Regional Nordeste

Os que recebem têm agradecido. Da aldeia Três Rios, na Paraíba, Joseci Potiguara conta que as famílias têm sido gratas a todos que tem feitos as doações. “Por isso, a gente agradece as pessoas vivem na luta pelo melhor ao nosso povo, especial o Cimi que entregou essas cestas”. O cacique foi uma das lideranças que recebeu as cestas e assumiu a responsabilidade de distribuir os kits entre as famílias na aldeia. “Como eu sou o responsável, primeiro vão para as famílias mais carentes”, assegura ele.

Aos que desejam apoiar as ações de enfrentamento à covid-19 junto aos povos indígenas, o Cimi mantém em seu site um canal destinado a esta função. Saiba, abaixo, como apoiar a entidade e sua presença junto aos povos indígenas:

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