10/08/2020

Dona Domingas Damásio, anciã tupinambá, morre vítima de covid-19

Lembrada pela atuação destacada na luta pela demarcação territorial e pelo direito à educação escolar indígena, dona Domingas vivia em Sapucaieira, na Terra Indígena Tupinambá de Olivença, sul da Bahia

Da esquerda para a direita: Seu Pedro Braz (esposo), Pedrísia (Filha) e Dona Domingas. Foto: Nathalie Le Bouler Pavelic

Da esquerda para a direita: Seu Pedro Braz (esposo), Pedrísia (filha) e Dona Domingas. Foto: Nathalie Le Bouler Pavelic

Por Haroldo Heleno, Nathalie Le Bouler Pavelic, Daniela Fernandes Alarcon e Patrícia Navarro Couto*

Mais uma estrela de brilho maior se apaga no céu luminoso do povo Tupinambá, no sul da Bahia. Dona Domingas Damásio agora pertence ao panteão de lutadores no mundo dos antepassados e encantados, de onde continuará mobilizada junto aos Tupinambá. Ela morreu no dia 5 de agosto, vítima da Covid-19. Guerreira que resistiu a numerosos ataques, foi retirada de seu povo em meio à necropolítica do governo federal, que tem atingido fortemente as “bibliotecas vivas” de coletividades indígenas de todo o país. Também em consequência da Covid-19, em 17 de maio, os Tupinambá já haviam perdido seu Pedro Alcântara, ancião que vivia na localidade do Acuípe do Meio.

Sempre muito presente na luta pela recuperação do território tupinambá, dona Domingas atuava ao lado de seu companheiro, também batalhador, seu Pedro Braz, falecido em maio de 2018. Juntos, eles construíram na região da Sapucaieira, onde viviam em um sítio com membros de sua família extensa, um espaço de mobilização, articulando-se com outras famílias indígenas em defesa dos direitos tupinambá. Dona Domingas vivenciou na infância a toma das terras de sua família. Ela era sobrinha-neta de Marcellino José Alves, que, nas décadas de 1920 e 1930, mobilizou-se junto a outros companheiros para tentar barrar o avanço não indígena no território tupinambá. Após ter sido preso seguidas vezes, em 1937 ele desapareceu.

No início dos anos 1980, o sítio de dona Domingas e seu Pedro se tornou ponto de referência para as atividades da Pastoral da Criança na região, atraindo parentes para a pesagem das crianças e outros encontros. As ações desenvolvidas ao longo das décadas de 1980 e 1990 junto à Pastoral e a organizações relacionadas à educação popular e a outras frentes de luta por direitos, como veremos adiante, possibilitariam a ativação de uma rede ampliada de parentes.

Ao lado de dona Nivalda Amaral (que, a partir de Olivença, impulsava as atividades da Pastoral), Núbia Batista (professora envolvida em iniciativas de educação popular) e Valdelice Amaral (que seria a primeira cacica do povo Tupinambá), a professora Pedrísia Damásio de Oliveira, filha de dona Domingas e seu Pedro, tornou-se à época uma das figuras mais proeminentes da mobilização tupinambá. As movimentações desencadeadas então levariam, no começo dos anos 2000, à demanda em face do Estado brasileiro por reconhecimento dos direitos territoriais dos Tupinambá.

Iniciado em 2004, o procedimento de demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença (que se estende por partes dos municípios de Buerarema, Ilhéus, São José da Vitória e Una) ainda não foi concluído, violando-se todos os prazos legais. Em dezembro de 2019, o então ministro da Justiça Sérgio Moro devolveu à Fundação Nacional do Índio (Funai) os processos de demarcação de 17 áreas, incluindo a Terra Indígena Tupinambá de Olivença, medida que só viria a público no final de janeiro de 2020, com a publicação de reportagem pela Folha de S.Paulo.

No quadro da pandemia, a ausência de regularização fundiária aumenta a vulnerabilidade dos Tupinambá, elevando os riscos de contaminação. De acordo com o último boletim Covid-19 Monitoramento entre Povos e Terras Indígenas na Bahia, publicado em 7 de agosto pela Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí) e pelo Movimento Unido dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba), já se contabilizam entre os Tupinambá 92 contágios acumulados. E há ainda 31 pessoas sintomáticas à espera do resultado dos testes. Ainda segundo o boletim, os casos se espalham por diversas aldeias.

Dona Domingas, filhas, netos e netas. Foto: Susana Matos Viegas

Dona Domingas, filhas, netos e netas. Foto: Susana Matos Viegas

A trajetória de dona Domingas

Dona Domingas nasceu na década de 1930 na Serra das Trempes, no território tupinambá. Devido ao parentesco direto com  Marcellino, sua família foi vítima de perseguições recorrentes. Uma notícia publicada pelo Diário da Tarde em 7 de novembro de 1929 (reproduzida pela antropóloga Susana Viegas em seu livro Terra calada: os Tupinambá na Mata Atlântica do Sul da Bahia, de 2007) informa a prisão de Marcellino e cinco parentes, incluindo o avô e o pai de dona Domingas.

“Conforme noticiamos ontem, em longa reportagem, foram presos juntamente ao famigerado Caboclo Marcellino, um irmão e 4 sobrinhos deste, coniventes do ‘homem-bugre’ nas suas últimas tropelias dos campos de Cururupe. A polícia, depois de ouvir os comparsas de Caboclo Marcellino, cuja culpa única era a de darem sua solidariedade às façanhas daquele seu parente e chefe, resolveu mandá-los em paz, com as devidas recomendações e conselhos. Foram cinco ao todo: Antonio Damasio [avô de dona Domingas], irmão de Marcellino, e que, surpreendido pelos sitiantes, foi apontar a casa do caboclo, e João Damasio, Antonio Damasio Filho [pai de dona Domingas], Custodio e Lio Damasio, todos filhos de Antonio e sobrinhos do ‘homem-bugre’” (português atualizado).

Em entrevista de 2002, dona Nivalda — anciã falecida em 2018, que, como vimos, teve papel destacado já no início da luta — descreveu a violência sofrida por um de seus familiares, também parente de dona Domingas, que teve as unhas arrancadas por policiais das volantes que estavam no encalço de Marcellino. Ela se lembrava de estar na soleira da porta quando o tio se aproximou com os dedos cheios de sangue, depois que “o soldado tirou as unhas dele todas”, com um sabre, “no cru”. As torturas infligidas a indígenas para que denunciassem Marcellino e seus companheiros povoam até hoje a memória dos Tupinambá. Na perspectiva partilhada pelo povo, tais perseguições se atualizam no presente, expressando, sob o atual governo e no contexto da pandemia, um caráter genocida.

Ainda na infância, dona Domingas se mudou com os pais para a região da Sapucaieira, onde eles adquiriram um sítio. Ela se recordava do trabalho na roça, ajudando os pais a plantar milho e mandioca. Pequena, perdeu o pai. Com isso, sua mãe, Maria, e seu irmão mais velho, Luiz, passaram a ser assediados por não indígenas que tencionavam tomar as terras da família. “Meu pai morreu, o juiz chegou e me levou para Olivença. Me criei em Olivença [entregue a uma família não indígena]”, rememorou dona Domingas em depoimento inédito de 2018. “Juntaram-se os mais sabidos”, observou seu Pedro na ocasião, “tiraram [de Maria] os meninos de menor, que eram ela [dona Domingas], Ailton (o caçulo) e Iracy. Tiraram para fora, chegaram e tocaram a velha, a mãe deles, e venderam o lugar”.

Em entrevista concedida em 2006 e reproduzida por José Carlos Tupinambá em sua dissertação de mestrado (“O que nós queremos é uma escola com o cheiro do nativo”: os modos de apropriação da escola pelos Tupinambá de Olivença, 2019), seu Pedro se referiu aos sofrimentos de dona Domingas em decorrência do esbulho: “Tiraram tudo dela; o branco que tirou. Depois que o pai dela morreu, tiraram sua força e seu sustento, a terra. Ela sofreu muito, sofreu na mão de fazendeiro trabalhando pesado em farinhada”. Anos após ser afastada da família, dona Domingas conseguiu retornar a Sapucaieira, onde viveu até o fim da vida. Com o primeiro companheiro, teve seis filhos, e, com seu Pedro, Pedrísia.

A construção de um projeto contemporâneo de educação escolar indígena entre os Tupinambá tem raízes profundas e conectadas à luta pela terra, remetendo à mobilização de dona Domingas, seu Pedro e outros indígenas

A primeira escola Tupinambá

Além de seu envolvimento na luta pela terra, dona Domingas assumiu papel central na mobilização pelo direito à educação escolar indígena. Ainda no início dos anos 2000, ela e seu Pedro cederam parte de seu sítio, onde ficava a antiga casa da família, para a construção da Escola Estadual Indígena Tupinambá de Olivença (EEITO), hoje Colégio Estadual Indígena Tupinambá de Olivença (CEITO). Criada em 2002, a escola teria sua sede inaugurada em 2006, na área cedida. Até que as obras fossem concluídas, as aulas aconteciam em uma sala improvisada na antiga casa de farinha do casal.

Em referência às mobilizações para a garantia da educação escolar indígena, seu Pedro assinalou, em depoimento concedido em 2018: “esse direito indígena nasceu aqui”. Muitos consideram Sapucaeira o “centro da aldeia”, tanto em função de sua situação geográfica e de seu papel histórico como zona de refúgio, como por concentrar algumas das primeiras articulações para o reconhecimento étnico dos Tupinambá e a demarcação da terra indígena.

Desde meados da década de 1980 Pedrísia estava envolvida em iniciativas de educação popular, em particular, de alfabetização e educação de jovens e adultos. Em 1992, junto a Núbia e outras professoras, passou a atuar no Coletivo de Educadores Populares da Região Cacaueira (Caporec). As atividades desenvolvidas pela organização e outras ações do período criaram oportunidade para que histórias de vida fossem compartilhadas e a memória social, atualizada, aos poucos reacendendo o ímpeto para a recuperação territorial. Nos anos de 1998 e 1999, Pedrísia, Núbia e outras educadoras organizaram reuniões e visitas a mais de vinte localidades tupinambá para ouvir os mais velhos a respeito da história de seu povo.

Dona Domingas detinha muitos conhecimentos transmitidos por seus antepassados, que partilhou com os parentes no seio da luta — dos trabalhos na roça à casa de farinha, do cuidado com os bebês à costura, da devoção à Bandeira do Divino Espírito Santo aos remédios de mato. Um depoimento concedido por ela em 2010 e reproduzido por José Carlos Tupinambá dá mostra de seus saberes.

“Antigamente, os índios mais velhos iam para o pé de buraem [também conhecido como buranhém]. De manhã cedinho, quando o sol ia saindo, eles tiravam a casca para fazer xarope, para asma, bronquite, gastrite, úlcera, fígado, rins e também para fazer tintura para cicatrizar ferimentos. Eles falavam que iam tirar de manhã cedo porque assim o sol levava junto dele a doença da pessoa, e tinha que saber a quadra da lua para não aumentar o problema; para sarar de alguma doença, o remédio tinha que ser feito na lua minguante, porque assim a doença ia sumindo igual à lua.”

A Terra Indígena Tupinambá de Olivença conta hoje com cinco colégios estaduais e seus mais de trinta anexos, todos oriundos da EEITO. A construção de um projeto contemporâneo de educação escolar indígena entre os Tupinambá tem raízes profundas e conectadas à luta pela terra, remetendo à mobilização de dona Domingas, seu Pedro e outros indígenas. A preocupação desses anciões com a educação de seus descendentes e com o futuro do seu povo criou condições para que jovens tupinambá de diferentes aldeias acessassem o ensino superior, inclusive a pós-graduação.

Agora que encantou, dona Domingas continuará a guiar com seu brilho, desde outro domínio, a luta do povo Tupinambá

Dona Domingas pintando as crianças com urucum. Foto: Susana Matos Viegas

Dona Domingas pintando as crianças com urucum. Foto: Susana Matos Viegas

“Dona Domingas estará presente”

Desde que circulou a notícia da morte de dona Domingas, vieram a público testemunhos de parentes para quem sua memória é cara. Recordando-a, o professor Erlon Tupinambá, mestre profissional em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais pela Universidade de Brasília (UnB) e vice-diretor da EEITO entre 2009 e 2014, afirmou: “Hoje partiu Dona Domingas, anciã que doou parte de seu terreno para a construção de uma escola, das lembranças que ficam, será a de uma guerreira de palavras certeiras, sabia se posicionar, devota do Divino e elo fundamental na teia da demarcação. Dona Domingas pouco frequentava a escola que ajudou a construir mesmo sendo a vizinha mais próxima, contudo o seu fogão sempre esteve a postos para alimentar quem fome tivesse. Sua chegada na CEITO tinha dia marcado, era a pedido dela que todas as crianças eram enroladas na Bandeira, em certa ocasião disse: Façam sempre isso, se não aprendem em casa, aprendem na Escola”.

Amanayara Tupinambá (Juliana Santana), jovem liderança e professora, mestranda em Antropologia Social na UnB, também prestou a dona Domingas sua homenagem, repercutida pela Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme): “‘Olivença é minha terra, Tupinambá é minha nação! O maracá é o instrumento, instrumento da união.’ Com pesar o povo Tupinambá perde mais uma memória viva, Dona Domingas Damásio encantou e nos deixa em memória o quão foi uma mulher guerreira. Como entoamos no canto Tupinambá, Olivença é minha terra, Tupinambá é minha nação, essa luta pelo reconhecimento étnico do seu povo, ela foi uma das protagonista, esse momento de deixar a nomenclatura caboclos de Olivença e afirmar a sua nação Tupinambá”.

“Junto com seu esposo seu Pedro Braz (in memoriam) cedeu um espaço do seu terreno para a construção do maior patrimônio do povo Tupinambá, o Colégio Estadual Indígena Tupinambá de Olivença. Mãe, esposa, avó, agricultura, guerreira, nos deixou um grande legado, legado de luta pela demarcação da TI Tupinambá e resistência do ser Tupinambá. Vítima desse novo inimigo invisível, o COVID-19, o seu corpo que nasceu da terra voltou para ela. A semente que nasceu, e semeou bons frutos, está no nosso instrumento de união, sempre que balançarmos o maracá e entoarmos os nossos cantos, Dona Domingas estará presente”.

Agora que encantou, dona Domingas continuará a guiar com seu brilho, desde outro domínio, a luta do povo Tupinambá. Seguirá ao lado de Marcellino, Antonio Damásio e filhos, seu Pedro, dona Nivalda e outros guerreiros, que continuarão animando os que aqui ficam a romper com as estruturas estabelecidas, possibilitando a insurgência e a rebeldia contra todo tipo de opressão imposta aos Tupinambá e a todos os povos.

* Haroldo Heleno é educador popular e coordenador do Cimi Regional Leste. Nathalie Pavelic é doutora em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), em cotutela (Antropologia) com a Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS, França). Daniela Alarcon é doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ). Patrícia Navarro é mestre em Antropologia pela UFBA e professora da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). As três têm longa experiência de pesquisa junto aos Tupinambá.

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