Esquecidos pelo Estado: organização e solidariedade garantem alimentos, máscaras e informação a indígenas em Minas, Bahia e Espírito Santo
Ações de solidariedade e enfrentamento à covid-19 organizadas pelo Regional Leste do Cimi alcançam em torno de 40 mil indígenas e pessoas em situação de rua
Cinco meses após a chegada do coronavírus ao Brasil, o governo federal segue negligente ao avanço da covid-19 e ignora as orientações sanitárias. Em todo país, os povos indígenas criam formas de barrar o contágio e enfrentam mudanças drásticas no modo de vida. Multiplica-se a busca por apoio e se intensificam as denúncias contra o Estado, a Fundação Nacional do Índio (Funai) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) por falta de atenção e atendimento nas aldeias.
Sem nenhum Plano Emergencial de atendimento aos povos frente à covid-19 por parte do governo federal, os povos se organizam para conter e monitorar a entrada do vírus nas aldeias, como as barreiras sanitárias. Nas comunidades próximas aos centros urbanos e praias, “é impossível controlar a entrada e saída de turistas, devido às instalações de condomínios, pousadas, resorts e casas de veraneio”, relatam as lideranças do Sul e Extremos Sul da Bahia. Isso quando não encontraram resistência por parte do Estado.
“Controlar a entrada e saída de turistas, devido às instalações de condomínios, pousadas, resorts e casas de veraneio tem sido um desafio”
Com o isolamento, a renda e os meios de sobrevivência dos povos ficaram comprometidos, pois parte dos indígenas precisa trabalhar fora das aldeias para garantir o sustento da família. A venda de artesanato e dos produtos frutos do cultivo da terra também foram comprometidos.
Para amenizar as consequências da pandemia nos territórios o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) passou a organizar ações de solidariedade, mobilizando parceiros da causa indígena, pessoas físicas e agências de cooperação nacionais e internacionais.
De março a julho, as equipes do Regional Leste do Cimi, que compreende os estados de Minas Gerais, Espírito Santo e Extremo Sul da Bahia, realizaram pelo menos quinze ações concretas em defesa da vida, juntos aos povos indígenas e pessoas em situação de rua. Foram entregues em torno de 1.300 cestas básicas, 500 kg de arroz e 1.800 kg de alimentos oriundos da agricultura familiar e camponesa, produzidos pelos assentados da Reforma Agrária, organizados pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de Teixeira de Freitas, Bahia.
“Vamos fazer chegar aos indígenas e às famílias carentes. É bênção, graça, solidariedade e fraternidade com aqueles que mais precisam neste tempo de pandemia”
O padre Ronaldo Cardoso de Oliveira, da Paróquia Nossa Senhora de Fátima de Itamaraju, assegura que os alimentos têm chegado a quem mais precisa. “Vamos fazer chegar aos indígenas e às famílias carentes. É bênção, graça, solidariedade e fraternidade com aqueles que mais precisam neste tempo de pandemia”.
O cacique Ramon Tupinambá, da Aldeia Tucum, na Terra Indígena (TI) Tupinambá de Olivença, conta que as cestas básicas foram distribuídas de forma coletiva. “Priorizamos primeiro as famílias em situação de maior vulnerabilidade, pois as doações vêm fortalecer as ações que estão sendo realizadas nas aldeias”, reforça o cacique.
Além das cestas básicas e dos alimentos agroecológicos, a equipe mobilizou a entrega de aproximadamente 400 kits de higiene com álcool em gel, 200 cobertores para amenizar o frio e 2.200 máscaras para proteção individual. Fortaleceu as barreiras sanitárias e também as medidas de prevenção de contágio. Foi criada também uma Rede de Comunicação Emergencial, via grupo de Whatsapp, com o objetivo de produzir conteúdo e compartilhar informações. Para facilitar o entendimento, os materiais também formam produzidos na língua dos povos.
“A poesia busca relatar o momento, animar e encorajar os povos a enfrentar e superar o desafio de forma criativa, consciente e poética”
A poesia passou a fazer parte das estratégias de comunicar, como uma medida importante de formação, informação e comunicação em linguagem acessível. “A poesia busca relatar o momento, animar e encorajar os povos a enfrentar e superar o desafio de forma criativa, consciente e poética”, conta Haroldo Heleno, coordenador do Cimi, Regional Leste.
Com os tecidos doados, algumas comunidades produziram suas próprias máscaras. Em outras, como na aldeia Coroa Vermelha (BA), do povo Pataxó, o Centro Ação Mulher está fabricando máscaras e toucas de tecido para distribuir nas escolas e posto de saúde da aldeia.
No conjunto, as ações chegaram a cerca de 40 mil indígenas dos povos Pataxó, Pataxó Hã-Hã-Hãe, Tupinambá de Olivença, Tupinambá de Belmonte, Xakriabá, Maxakali, Xucuru-Kariri, Kaxixó e Kamakan. Foram movidas pela solidariedade de organizações como CNBB, Cese, Cáritas e demais entidades vinculas à Igreja, e de parceiros locais envolvidos nas ações solidárias e de cidadania. Haroldo também aponta o apoio de agências de cooperação nacionais e internacionais.
“São sempre bem-vindas, acabamos de receber as cestas do Cimi e quero agradecer a cada parceiro que tem contribuído”
Quem recebe as doações tem agradecido. “São sempre bem-vindas, acabamos de receber as cestas do Cimi e quero agradecer a cada parceiro que tem contribuído”, expressa José de Araújo Souza (Deda), que é professor de Cultura da Aldeia Imbaúba (MG). Ele também fala como tem se dado a comunicação entre as aldeias. “Sempre passamos para todas as aldeias as orientações de se manter em casa e, quando precisar sair, usar máscara e o álcool em gel”, explica Deda. Da Aldeia Sirihyba (BA), o cacique Gildo Amaral Tupinambá de Olivença reforça o pedido aos parentes: “fiquem nas suas aldeias”.
Pessoas físicas chegaram a construir um grupo chamado “Amigos do WhatsApp”, forma que encontraram para se organizar e contribuir nas ações. Por meio das articulações do Regional, a Secretaria de Trabalho e Renda do Governo da Bahia e demais órgão do estado também foram acionadas.
“Sempre passamos para todas as aldeias as orientações de se manter em casa e, quando precisar sair, usar máscara e o álcool em gel”
Ações e iniciativas brotam e se multiplicam nos territórios
Se, por um lado, o Estado brasileiro descumpre e esvazia o seu papel na proteção aos povos indígenas, desrespeitando princípios constitucionais importantes e necessários à sobrevivência dos povos indígenas, por outro, é notório o compromisso, responsabilidade e contribuição dos povos indígenas em todos os processos de enfrentamento à covid-19, por mais que estas ações impactem o cotidiano do povo.
Nos territórios, passaram a realizar o próprio mapeamento do avanço do vírus. Participam de reuniões com outras lideranças indígenas do Brasil, avaliando, atualizando a conjuntura e principalmente acompanhando as demandas apresentadas aos governos federal, estadual e municipal.
“A juventude assume papel estratégico na comunicação, elaboração e envio de projetos”
A juventude assume papel estratégico na comunicação, elaboração e envio de projetos aos editais criados pelos fundos solidários, em especial aqueles destinados ao atendimento emergencial e à situação de vulnerabilidade causada pela pandemia. O fortalecimento das ações formativas, informativas e de comunicação interna e externa fazem parte dessa estratégia. A divulgação de panfletos e o uso de carros de som com mensagens em linguagem acessível sobre os cuidados e a proliferação do vírus viraram rotina nas aldeias.
Entre as medidas adotadas pelos povos estão o acompanhamento e monitoramento da saúde de trabalhadores indígenas e caciques, lideranças e anciões que precisam deixar as aldeias e a criação de protocolos para acesso aos territórios, com medidas protetivas e de restrição definidas coletivamente e registradas em documento.
“Estamos focados na nossa produção de alimentos e precisamos desse apoio para produzir nossos produtos agrícolas, orgânicos e sem agrotóxico”
Devido às chuvas, em todos os territórios que o Regional Leste do Cimi tem atuação, as comunidades indígenas iniciam os plantios. “Estamos focados na nossa produção de alimentos e precisamos desse apoio para produzir nossos produtos agrícolas, orgânicos e sem agrotóxico que possam impactar na nossa saúde e território”, expõe Ramon.
Essas ações, fundamentais para a permanência nas aldeias, são fortalecidas por mutirões e ações comunitárias, multiplicam as práticas ancestrais e o uso de ervas medicinais e fortalecem as aldeias. As lideranças contam que a figura do pajé tem sido essencial para orientar a comunidade neste período pandêmico. “Que Tupã, Nhanderú, os grandes espíritos da floresta possam iluminá-los cada vez mais”, deseja Ramon, que agradece a histórica parceria do Cimi com os povos.
Com o isolamento nas aldeias, as famílias passaram a conversar mais e a rotina de reuniões interna também aumentou. De todas elas, o pedido mais urgente é a demarcação e regularização dos seus territórios, uma forma de defesa dos povos indígenas, e não só nestes tempos de pandemia.
“De todos os pedidos o mais urgente é a demarcação e regularização dos seus territórios”
Ampliação da atuação do Regional Leste do Cimi
Ampliar a atuação junto às comunidades indígenas na Bahia tem sido um desafio colocado ao Regional Leste do Cimi pelos próprios povos. Na última Assembleia, dia 2 de julho, o Regional deliberou a efetivação de uma nova equipe com atuação direcionada ao Oeste da Bahia. Os trabalhos nos territórios devem iniciar quando a pandemia não for mais um risco à vida.
Hoje, a atuação do Regional alcança pelo menos de 44.500 indígenas nos estados de Minas Gerais, Bahia e Espírito Santo. Com a nova equipe, pelo menos mais dez povos devem contar com o apoio do Cimi no Oeste da Bahia.
A XXXVII Assembleia do Regional Leste foi a primeira a ser realizada online na história da entidade e contou com a participação de lideranças indígenas. O tema “38 anos semeando esperanças em meio a pandemias” faz parte das celebrações de 50 anos da entidade, que traz como elementos motivadores a Memória que move e motiva, a Resistência e a Mística como alimentos para a constante caminhada e a Utopia como horizonte, explica Haroldo.
A pandemia exige cuidados e as comunidades precisam de ajuda
A organização interna das comunidades indígenas tem sido fundamental no enfretamento à covid-19. Com a dinâmica nos territórios modificada pela necessidade do isolamento e distanciamento social e diante de um cenário de incertezas, os caciques e lideranças têm reivindicado a garantia de medidas que possam assegurar as necessidades emergenciais.
“Pedimos apoio para manter os trabalhos de monitoramento e prevenção da saúde do nosso povo”
Os pedidos vão desde produtos de higiene e limpeza a cestas básicas para atender a demanda de alimentação. Do Estado, cobram o atendimento das demandas apresentadas às autoridades, melhores condições de prevenção, acompanhamento e aquisição de equipamentos de segurança, em especial para os servidores de saúde e a população indígena.
Da Aldeia Riacho do Brejo (MG), Adailton Cavalcante Bezerra reforça o pedido e destaca a importância das doações, em especial para o fortalecimento das barreiras sanitárias e o monitoramento da covid-19 nos territórios, que já completa cem dias. “Venho aqui agradecer a todos os parceiros e aliados, mas também pedir apoio para manter os trabalhos de monitoramento e prevenção da saúde do nosso povo”, apela a liderança.
Em todo país, o Cimi tem mobilizado agências de cooperação, organizações, movimentos populares e pessoas físicas e criado redes de solidariedade, com o objetivo de estimular doações e ações que deem condições aos indígenas de permanecer no isolamento social. Para isso, mantém em seu site uma campanha de arrecadação de recursos. Os valores são revertidos em cestas básicas, kits de saúde e higiene e também destinados à manutenção das barreiras sanitárias e do trabalho de formação e informação nos territórios. Saiba, abaixo, como apoiar o Cimi e sua presença junto aos povos indígenas.