“Não sabemos até quando vamos continuar resistindo e existindo”, afirma indígena após tekoha sofrer novos ataques a tiros
Em menos de uma semana, o tekoha Y’hovy, no oeste do Paraná, sofreu dois ataques a tiros. Os disparos foram feitos em três pontos da aldeia
Nem mesmo a pandemia tem inibido os ataques e agressões contra o tekoha Y’hovy, em Guaíra, oeste do Paraná. Em menos de uma semana, os Avá-Guarani sofreram dois ataques a tiros, disparados em pelos menos três pontos diferentes da aldeia que compõe a Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá.
Na noite de 28 de maio, um carro que passava pela avenida Martin Luther King, em frente ao tekoha Y’hovy, no sentido de Guaíra para a Vila Eletrosul, efetuou vários disparos de arma de fogo em direção à aldeia. “No começo da aldeia dispararam uma sequência de tiros, outra sequência na entrada e depois no final da aldeia. Passado uns 10 minutos, o carro voltou da Vila em direção à cidade, e novamente efetuou vários disparos nos mesmos pontos”, relata o cacique Ilson Soares.
Três dias depois, a comunidade indígena sofre novo ataque. Indivíduos em um carro preto disparam contra a aldeia e partiram em alta velocidade rumo à cidade de Guaíra. Apesar da apreensão da comunidade, ninguém ficou ferido nos ataques.
“Por racismo e preconceito eles têm nos tratados como inimigos”
Os Avá-Guarani revelam a insegurança diante da atual conjuntura de pandemia e negação dos direitos indígenas. Recolhidos no tekoha, cumprindo as orientações dos órgãos de saúde e as normativas da quarentena, o povo segue isolado. “Não mexemos com ninguém, não provocamos ninguém. Estamos isolados antes mesmo da pandemia, a gente sempre esteve isolado da sociedade vizinha. Por racismo e preconceito eles têm nos tratados como inimigos”, desabafa o cacique Ilson.
Sem saber quem efetuou os disparos, os Avá-Guarani chamaram a polícia, registraram um Boletim de Ocorrência e estão mantendo distância da rua e da entrada do território para que não sejam surpreendidos por um novo ataque. Isso porque o tekoha Y’hovy tem um largo histórico de ataques.
Nos últimos meses, a TI Tekoha Guasu Guavirá registrou várias tentativas de atropelamento, uma delas deixou ferido um indígena. Duas tentativas de assassinatos, uma terceira resultou na morte de Virgínio Tupa Rero Jevy Benites Avá-Guarani. Duas invasões à Terra Indígena e agressões a pedradas, relata Ilson. Ameaças de morte, atendimento de saúde preconizado e a omissão do Poder Público fazem parte da realidade dos Avá-Guarani.
“O clima começou a ficar tenso. Estão achando que podem nos expulsar com força bruta”
As agressões estão relacionadas a não demarcação do território tradicional dos povos Avá-Guarani e Guarani Mbya, agravadas com a revogação da demarcação em Guaíra e Terra Roxa e a anulação do relatório de identificação e delimitação da TI Tekoha Guasu Guavirá, que compreende 14 aldeias Avá-Guarani localizadas em ambas as cidades.
A sentença foi proferida em fevereiro deste ano pelo juiz Federal Gustavo Chies Cignachi, que determinou a suspensão de qualquer ato de demarcação de terras indígenas nos municípios de Guaíra e Terra Roxa. Na avaliação do assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Rafael Modesto “a decisão apresenta diversas ilegalidades, contraria determinações de instâncias superiores e não tem condições de se sustentar”.
Na ocasião, as lideranças receberam com preocupação a decisão. “O clima começou a ficar tenso. Estão achando que podem nos expulsar com força bruta”, afirma liderança Avá-Guarani.
Agressões, assassinatos e resistência dos Avá-Guarani
Com o procedimento demarcatório suspenso, os conflitos em Guaíra e Terra Roxa se intensificam causando insegurança aos povos indígenas. Os Guarani acreditam que esses ataques estão ligados à luta pelo território tradicional e ao ódio dos não indígenas.
“Somos tratados com discriminação e arrogância, onde quer que chegamos, até no atendimento à saúde a gente tem tido muitas dificuldades em ter acesso. Pessoas de carro sempre tentam atropelar os indígenas, algumas vezes até atropelam, mas sempre é levado como acidente de trânsito e na verdade eles atropelam propositalmente. Sofremos ameaças verbais, ameaças de todos os lados, é já tivemos parentes mortos, assassinados por não indígenas”, conta o cacique Ilson.
“A gente não sabe até quando vamos continuar resistindo, não sabemos até quando vamos continuar existindo”
Em 2011, Bernardino Goularte foi assassinado a tiros, no mesmo ataque uma criança de 10 anos ficou baleada na cabeça. Em agosto de 2013, uma jovem indígena foi sequestrada, ameaçada e abusada sexualmente por três homens enquanto saía de casa para o trabalho. Além da violência sexual, o objetivo era obter informações à força e deixar um recado para lideranças indígenas e a Fundação Nacional do Índio (Funai).
Em março de 2015, Ananias Nunes Avá-Guarani, de 56 anos, foi linchado por não indígenas na cidade de Guaíra. Em 2018, Donecildo Agoeiro ficou paraplégico após ser alvejado por arma de fogo, durante atentado à TI. Em novembro de 2019, Demilson Ovelar foi assassinado a pedradas, dois membros da Y’hovy foram ameaçados de morte e tiveram armas apontadas para o rosto por um fazendeiro da região.
“Tudo isso é mais uma ameaça vinda de não índios, porque nós não estamos desrespeitando ninguém. Tudo o que queremos é ser respeitados da mesma forma que respeitamos a essa sociedade chamada sociedade civilizada, mas infelizmente não somos respeitados, pelo contrário: somos oprimidos e temos os nossos direitos violados todos os dias”, denuncia o cacique Avá-Guarani.
O desrespeito e o racismo estão presentes nas escolas, nas agências de empregos. O que resta aos povos indígenas do oeste do Paraná é continuar resistindo e persistindo na luta pela terra, pela continuidade de sua existência e permanência em seu tekoha. “Mas a gente não sabe até quando vamos continuar resistindo, não sabemos até quando vamos continuar existindo”, finaliza o cacique Avá-Guarani.