30/04/2020

Sobre um presidente genocida e sobre a responsabilidade extensiva de quem se omite ou é conivente

“E daí?”. Em artigo, Roberto Antônio Liebgott analisa os discursos e ações do presidente da república diante a pandemia do Coronavírus. Para o missionário do Cimi, “o genocídio, que foi anuncio, se presentifica” diante descaso do governo federal.

Foto: José Cruz/Agência Brasil

Por Roberto Antônio Liebgott*, para Desacato. info

O presidente da República, quando perguntado sobre os alarmantes índices de morte de pessoas pelo Covid19, retrucou: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou o Messias, mas não faço milagre”. E os sobreviventes dessa doença que o presidente chamou de gripezinha dirão o quê sobre essa afirmação? O que devem dizer um pai e uma mãe, a avó e o avô, o irmão e a irmã de uma vítima dessa doença devastadora? O que passa na mente e no coração das pessoas que são conscientes do lugar onde vivem e ocupam na sociedade, na comunidade, na família quando ouvem o presidente – que deveria zelar pelo Sistema Único de Saúde, assegurar recursos financeiros, infraestrutura, medicamentos, leitos, profissionais e equipamentos de prevenção, proteção e segurança – desdenhar da dor, sofrimento e morte daqueles que deveria se preocupar e zelar?

Os tempos são sombrios. O mundo todo está em alerta permanente e os governantes, pelos quatro cantos do planeta, lutam a fim de encontrar saídas econômicas para assistir e proteger suas populações e para encontrar tratamento e cura para a doença. Na maioria dos países, os agentes de estado não pensam em outra coisa que não na busca de soluções em contexto de pandemia e no bem estar das pessoas. Mas no Brasil não, aqui temos um psicopata no comando do país, ocupado em salvar seu clã de corruptos de investigações criminais, em criar crises políticas, em propagar atitudes irresponsáveis e em debochar daqueles que não tem outra escolha além de arriscar-se para ter o que comer. Ao que parece, ele tem como objetivo perpetuar-se num esquema de poder que se pretende totalitário. Nas imagens cômicas, nos memes, nos cartoons que circulam como forma de protesto, Bolsonaro lidera um rebanho, conduz o gado, e essas imagens são alegóricas de seguidores ferrenhos de Bolsonaro que, contra todas as evidências de irresponsabilidade na gestão do país, ainda seguem o seu “mito”.

Obviamente a população brasileira não é uma manada, um rebanho. Há contextos sociais, culturais, políticos e econômicos muito diferenciados e temos uma sociedade multicultural. Há protestos, panelaços, manifestações explícitas de descontentamento, de desalento, de repúdio contra os atos deste presidente e contra o veemente deboche que ele manifesta quando se solicita esclarecimentos do chefe de estado. Mas há também aqueles que se reconhecem nas falas, no deboche, na irreverencia irresponsável de Bolsonaro. Há aqueles que enxergam, no presidente da república – com suas ideias e concepções sobre cultura, educação, religião, política e economia – a expressão de seu próprio rosto.

O presidente representa, para uma boa parcela da população, um tipo de sujeito hostil e rancoroso que se escondia nos porões do pensamento comum, enquanto a maioria das pessoas lutava para construir outras perspectivas de relacionamento, outras percepções de mundo, buscando valorizar as liberdades e os direitos individuais e coletivos e lutando para solidificar as bases de uma sociedade democrática. O pensamento fascista sempre se esgueirou por entre as tramas de um pensar democrático, sobreviveu na surdina, ferindo sem alarde aqueles que estavam ao seu alcance, até encontrar condições oportunas para mostrar a cara. Bolsonaro se elegeu presidente mobilizando esses sentimentos rancorosos, ativando discursos de ódio, permitindo a emergência e a clara explicitação do que antes não era aceitável, não se podia dizer em voz alta, do lado mais perverso e desprezível daqueles lobos em pele de cordeiro.  E efetivamente ele governa para lobos, enquanto age como se conduzisse manadas. Não são os rancorosos do dia a dia, aquele vizinho ou parente que agora se orgulha dos atos do presidente, que se beneficiam dos desmandos de Bolsonaro, e sim aqueles que sempre obtiveram lucro, que enriquecem com a exploração dos trabalhadores, que não podem abrir mão, nem em tempos de pandemia, de seus ganhos abusivos.

A pandemia que assola o Brasil, mata mais do que na maioria dos outros países e não por acaso.

A doença deveria ser enfrentada e não desdenhada.

O governo Bolsonaro, com essas atitudes e discursos, propaga a ignorância como valor sobre o conhecimento, incentiva o ódio contra aqueles que não pensam como a manada, propaga a violência no lugar da pacificação e trata a morte prematura como parte  de uma lógica de que alguns devem viver e outros morrer, como dano colateral de um modo de vida que não pode ser revisto, que só deve acentuar a exploração.

Bolsonaro e seus seguidores são genocidas.

Aqueles que o seguem, e assumem esse lugar de manada que o presidente deseja liderar, também são responsáveis por toda morte, toda dor, toda violência que assola o nosso país. Eles incentivam a contaminação propondo medidas de flexibilização religiosa, econômica, social e trabalhista. As ações adotadas, ao longo do primeiro mês da pandemia – no que se refere às medidas de combate e prevenção ao coronavírus – teve uma única intenção, a de proteger da doença os mais ricos, assegurar a eles os melhores hospitais e leitos, dar-lhes a segurança de ficarem em casa,  garantir-lhes os subsídios econômicos para as suas empresas não terem prejuízos e possibilitar aos familiares daqueles que viessem a falecer, e que  foram poucos, a segurança de um enterro digno, com carro fúnebre, ritual de despedida e cobertura midiática. Essa fase da pandemia passou e hoje os que vivem situados no topo da pirâmide social estão abrigados, protegidos e seus investimentos resguardados.

A pandemia deixou de ser a preocupação no topo da pirâmide social e agora passa a atingir de forma avassaladora os pobres.

Aqueles que já eram obrigados as saírem de suas casas para trabalhar ou tentar fazer bicos, procurar emprego ou vislumbrar a possibilidade de sacar 600 reais de bônus pela condição de miserabilidade e vulnerabilidade a que foram submetidos ao longo das décadas.  E as ruas e avenidas, as lotéricas e as agências da Caixa Econômica Federal estão lotadas de gente, com filas a perder de vista.  Os mais pobres estão expostos – ao vírus, ao constrangimento, à cobertura jornalística, ao desespero de não poder contar com um sistema público que ajudam a manter com cada imposto pago. Some-se a isso o fato de estarem sobrecarregados os hospitais públicos e o sistema de saúde já estar em situação de quase colapso. Os pobres já adoecem às centenas. Os equipamentos de proteção são escassos e os trabalhadores da saúde estão expostos ao risco de adoecimento.

Hoje, passados quase dois meses, não se observa mais jornalistas, repórteres fazendo cobertura em frente aos hospitais de primeiro mundo, também existentes no Brasil, para falar das pessoas ricas infectadas. Hoje eles estão diante de hospitais públicos superlotados, desequipados e em colapso. Hoje, falam diante de hospitais de campanha, grandes conglomerados de lona plástica, de onde registram os casos de infectados pobres e de seus parentes e amigos, que estão do lado de fora, aos prantos. Hoje se vê as imagens de containers e caminhões frigoríficos armazenando corpos de pobres, negros e indígenas – especialmente em Manaus (AM). Hoje não se vê mais as imagens de carros fúnebres e cemitérios ou crematórios de luxo, que também tem no Brasil, mas se vê caminhões carregando corpos que são empilhados dentro de covas comuns.

E o período da agonia dos pobres, ao que parece, está só começando. Foi anunciado pela mídia que, em alguns estados, não há mais caixões para os mortos, serão enterrados dentro de sacos plásticos e de que o governo federal já comunicou que não há verbas para cremar corpos ou fornecer caixões. Agora que a pandemia chegou no cotidiano daqueles que estão sem moradia digna, emprego fixo, que não podem ficar em casa, precisam estar nas ruas, nos empregos a ordem do governo e relativizar o isolamento e deixar se contaminar e morrer. E já se escuta ressoar algumas vozes, recolhidas no conforto de belas casas, de que o isolamento já perdura tempo demais, que a “máquina da economia” não pode parar.

O genocídio, que foi anuncio, se presentifica.

A resposta do presidente da República acerca do que se pode fazer para aliviar a dor das vítimas foi de que ele é “messias, mas não faz milagres”. Sintomas de um pensamento perverso que encontra eco em muitos empresários brasileiros. A imagem de trabalhadoras e trabalhadores do comércio, vestidos com uniformes da empresa e ajoelhados, humilhados, forçados a implorar que o isolamento social seja suspenso para garantir seus empregos é marca visível e material de que o fascismo nos espreita e se manifesta, não apenas nas falas do presidente.

Essas palavras de um presidente da República, anunciando seu descaso em forma de cinismo e sarcasmo, já seriam suficientes para uma intervenção judicial ou legislativa. Vamos ver até onde vai a conivência dos demais Poderes Públicos com os desmandos genocidas de um presidente. Até agora a responsabilidade recai sobre o psicopata que governa a nação, mas haverá conta a ser paga pelos demais, pela omissão, negligência e conivência.

*Roberto Antônio Liebgott é missionário do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Formado em Filosofia e Direito.

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