17/04/2020

Coronavírus, uma outra ameaça à vida das populações indígenas

Em artigo para o Portal Desacato, Roberto Liebgott, do Cimi – Regional Sul, analisa os efeitos do COVID-19 para os indígenas. “A pandemia afeta, muito particularmente, comunidades que não têm terras demarcadas”.

Movimento de estudantes indígenas e quilombolas em Brasília. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Movimento de estudantes indígenas e quilombolas em Brasília em 2016. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Por Roberto Liebgott*, publicado em Portal Desacato 

No Brasil, assim como em todo o mundo, o COVID-19 afeta dramaticamente a vida das pessoas. Preocupa-nos, em especial, a situação dos povos indígenas, uma vez que eles sofrem os efeitos de uma história de mais de 500 anos de violências atrozes e de negação dos seus direitos fundamentais à terra e à diferença.

Neste contexto, o coronavírus surge como um grave problema que vem se somar aos demais enfrentados cotidianamente por povos indígenas e por outras comunidades originárias e tradicionais. A situação de alerta e de risco à vida, que todos enfrentamos nestes tempos de pandemia, é agravada, no caso dos povos indígenas, em função de alguns fatores, em especial a omissão e negligência criminosa dos gestores do Estado, que não demarcam e regularizam os territórios, ou que permitem tácita ou expressamente, que ocorram invasões em áreas demarcadas, nas dos povos em situação de isolamento e risco, bem como naquelas que estavam com procedimentos de demarcação em andamento e foram paralisados. Nunca se depredou e se invadiu tantas terras como nos dois últimos anos! E essa parece ser uma tendência crescente, fruto da lógica que orienta as políticas do governo brasileiro para indígenas, quilombolas e outras comunidades que habitam o campo e as florestas.

Nunca se depredou e se invadiu tantas terras como nos dois últimos anos!

Tendo, portanto, esse panorama de que as políticas públicas estavam sendo estruturadas para esvaziar e desconstruir os direitos resguardados constitucionalmente, as ações e serviços em saúde também passavam por reformulações e rearranjos, pois se objetivava impedir que a base do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, que são os distritos sanitários especiais, estivesse sob administração e controle dos povos indígenas.

Pretendia-se a transferência da gestão da política para municípios ou para a inciativa privada.

E, ao longo de mais de um ano do governo Bolsonaro e do Ministro da Saúde Mandetta (demitido ontem, quinta-feira, pelo governo Bolsonaro), o foco esteve voltado para estas iniciativas que acabaram por esvaziar as ações e serviços em saúde nas áreas indígenas. Não houve planejamento ou ações mais especificas e direcionadas para comunidades étnicas e culturalmente diferenciadas, a exceção de alguns serviços básicos de atenção nas aldeias, mas com equipes fragilizadas, sem capacidade ou recursos para uma intervenção qualificada no âmbito das ações de prevenção, de vacinação e de controle de endemias. O governo Bolsonaro, neste curto espaço de tempo, investiu na mudança de modelo de atenção à saúde indígena – em direção à municipalização e privatização –, rompeu com o programa “mais médicos”, por meio do qual se assegurava a presença de médicos em atendimento a estas populações, instituiu suspeita e desconfiança quanto à gestão e ao uso dos recursos financeiros por parte de governos anteriores e dos prestadores de serviços terceirizados.

É, portanto, no interior de um processo de desmonte da política de atenção à saúde indígena, que a pandemia do COVID-19 chegou ao Brasil.

Em função dela se torna visível a falta de profissionais em saúde – especialmente médicos, enfermeiros, técnicos em enfermagem e epidemiologistas –, a ausência de infraestrutura para atendimento nos postos de saúde, em polos-base, a precariedade dos equipamentos para o enfrentamento de endemias e epidemias. A chegada do COVID-19 também evidencia as frágeis estruturas de comunicação e de informação, mostra que não foram tomadas medidas imediatas de esclarecimento das populações indígenas quanto a essa pandemia, ficando a atribuição sob a responsabilidade de equipes de agentes de saúde.

A pandemia afeta, muito particularmente, comunidades que não têm terras demarcadas.

Afeta aquelas comunidades que habitam áreas devolutas, muitas vezes degradadas, e que estão há muito tempo em situação de vulnerabilidade, pois lhes falta saneamento básico, água potável, alimento, espaço para sustentar adequadamente suas formas de vida. Há famílias que não tem o que comer, pois o governo federal, que em períodos anteriores mantinha uma política assistencial para comunidades vulneráveis, deixou de fornecer cestas básicas já faz alguns meses. Em parte, a subsistência destas famílias era obtida com a venda de artesanato, o que se tornou inviável com a pandemia. Como viver sem terra, nas margens de rodovias, sem habitação adequada, em barracos improvisados e, ainda assim, enfrentar uma pandemia?

Nas últimas semanas, em função das denúncias feitas pelos povos indígenas e seus apoiadores, o Ministério da Saúde passou a divulgar boletins – através da Secretaria Especial de Atenção à Saúde Indígena/SESAI – informando a situação das comunidades e publicando relatos acerca de medidas adotadas para realizar a proteção e o isolamento dos indígenas em todas as regiões do país. Não se pode negar, nesse sentido, o esforço e compromisso daqueles servidores que estão atuando em área indígena neste período. Eles prestam um serviço exemplar, dadas as limitações de infraestrutura e de pessoal. E a medida mais concreta foi tomada no dia 15 de abril, com a edição, pelo Ministro da Saúde, da Portaria 55/2020, denominada “Resposta Rápida” – que prevê a contratação de profissionais em saúde no âmbito dos distritos sanitários. O governo pretende agora, em meio à pandemia, assumir com mais eficiência as demandas das comunidades indígenas para evitar a propagação do Coronavírus. Tais medidas já deveriam ter sido adotadas e não podem ser proteladas por burocracias e falta de planejamento.

É necessário enfatizar que a situação dos povos indígenas, de Sul a Norte do país, é bastante grave. Nas regiões Sul, Sudeste, Centro Oeste e Nordeste, muitas comunidades estão excluídas do direito à terra, sem água para beber, para banhar-se, lavar roupas e utensílios, preparar os alimentos e cozinhá-los. Nestas circunstâncias, como irão se prevenir da propagação do coronavírus? Já na região Norte, a maioria da população vive em suas terras, mas estas são invadidas, são devastadas e muitas comunidades estão submetias a violências físicas, ameaças de morte e homicídios. Num contexto como este, é difícil proteger-se da pandemia, pois nestas terras circulam grileiros, posseiros, madeireiros, garimpeiros que, para além das ameaças usuais, ainda podem ser disseminadores da pandemia.

Diante desta realidade, tornam-se imprescindíveis ações de solidariedade para aqueles grupos e povos que estão em situação de maior vulnerabilidade neste período de pandemia, aliadas a políticas que visem a garantia dos direitos constitucionais. Torna-se necessário, também, encontrar formas de fortalecer as lutas por direitos, por políticas públicas diferenciadas e pela proteção ao meio ambiente e aos territórios. Graças à articulação dos povos indígenas com outras comunidades tradicionais, com entidades indigenistas, movimentos sociais, populares, de direitos humanos, no Brasil e no exterior, vem ocorrendo, nestes tempos sombrios, gestos e ações que mobilizam apoios concretos no combate à fome e na luta pela garantia da vida dos povos indígenas.

*Roberto Antônio Liebgott é Missionário do Conselho Indigenista Missionário/CIMI. Formado em Filosofia e Direito.

Share this:
Tags: