01/04/2020

Coronavírus coloca povo Guarani Kaiowá em alerta na reserva mais populosa do País

O sistema público de saúde conta com cerca de apenas 35 leitos de UTI no município de Dourados. “Se entrar aqui na Reserva será uma catástrofe”, diz indígena

Viatura e agentes do Departamento de Operações de Fronteira (DOF) na estrada vicinal próxima ao local do conflito e à Reserva. Foto: povo Guarani e Kaiowá

Viatura e agentes do Departamento de Operações de Fronteira (DOF) na estrada vicinal da Reserva de Dourados. Crédito da foto: povo Guarani e Kaiowá

Por Renato Santana, da Assessoria de Comunicação – Cimi

Na Reserva Indígena de Dourados vivem 18 mil indígenas Guarani Kaiowá e Terena dividindo 3.475 hectares de área. Tal extensão vem há décadas se mostrando insuficiente para a reprodução física e cultural dos indígenas, sobretudo de acordo com o modo de vida dos Guarani Kaiowá. Espremidos, os indígenas padecem com a ausência de direitos básicos, como acesso a água potável e políticas públicas.

A pandemia do novo coronavírus, causador da Covid-19, em um ambiente social com desafios bastante semelhantes às favelas nas periferias dos centros urbanos, tem gerado preocupação em uma projeção de disseminação do vírus na Reserva. São duas aldeias, Bororó e Jaguapiru, além de oito retomadas a menos de 4km do centro da cidade de Dourados – proximidade que a transforma em um grande bairro periférico e empobrecido.

Mesmo sem a pandemia, a política de atenção à saúde indígena em Mato Grosso do Sul tem falhas estruturais e nos hospitais os indígenas costumeiramente sofrem com o preconceito em um sistema público com cerca de apenas 35 leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) no município de Dourados.

“Se entrar aqui na Reserva será uma catástrofe. Não vai ter como atender”, explica a enfermeira Indianara Machado Ramires Guarani Kaiowá

O relatório epidemiológico do último dia 27 de março da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não aponta casos confirmados ou suspeitos no Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) do Mato Grosso do Sul. No Brasil, são 13 casos suspeitos entre indígenas, sendo quatro do DSEI Interior Sul, um no Alto Rio Solimões, um em Alagoas e Sergipe, um no ceará, um em Cuiabá, um no Amapá e Norte do Pará e dois no Maranhão.

A Sesai confirmou nesta quarta-feira, 1o, que uma indígena do povo Kocama, de 20 anos, Agente Indígena de Saúde (AIS) na região de Santo Antônio do Içá, no Amazonas, DSEI Alto Rio Solimões, testou positivo para o Coronavírus. Ela e mais 12 pacientes indígenas e 15 profissionais de saúde tiveram contato com um médico que havia sido diagnosticado com a doença após retornar de férias.

Mesmo sem casos suspeitos entre os indígenas no Mato Grosso do Sul, por enquanto, o temor existe porque o governo federal não apresentou até o momento um plano de combate ao novo coronavírus junto às aldeias. Tampouco os povos indígenas foram considerados como grupo de risco pelo Ministério da Saúde, o que não implica cuidados específicos e diferenciados.

Na Reserva de Dourados, além da grande quantidade de indígenas em pouco espaço, a falta de água é constante em algumas regiões e persiste há mais de uma década. Muitas famílias precisam caminhar por horas para conseguir água ou contar com o abastecimento, feito de forma esporádica.

Orientações sobre quais são os principais sintomas da Covid-19 e as alternativas de prevenção para driblar as precariedades inerentes à condição da Reserva em meio à pandemia são oferecidas por Agentes Indígenas de Saúde. “Mas ainda assim é insuficiente. Na nossa opinião o governo federal deveria colocar os povos indígenas no grupo de risco”, afirma a enfermeira Indianara Guarani Kaiowá.

A indígena atende na Unidade de Saúde localizada na Reserva e tem ajudado caciques e demais lideranças a entender a doença e estabelecer formas de prevenção. Ela explica que a orientação é a de não ir para a cidade além do necessário, não levar crianças ou idosos e evitar ao máximo o contato pessoal. “Esse ponto complica porque a Reserva é pequena, vivemos amontoados. O isolamento social é mais difícil”, diz.

Para Indianara, caso os povos indígenas fossem colocados no grupo de risco, o governo seria obrigado a traçar um plano mais detalhado, garantir os equipamentos adequados às equipes de saúde, em falta em muitos DSEIs do país, cuidar para que as cestas básicas não faltem nas aldeias que necessitam delas, evitando a saída dos indígenas à cidade, e  garantir o acesso à água potável de forma emergencial.

“No caso das reservas, e aqui no Mato Grosso do Sul existem outras, seria até necessário pensar em hospitais de campanha, sim. Em caso de contaminação, esperamos que não, mas é possível pelas condições, pode ser uma forma de não gerar o caos nos hospitais públicos. Os particulares não irão nos atender, não temos como pagar”, conclui Indianara.

“Temos idosos, diabéticos e hipertensos. Planos de contingência e monitoramento são parte do processo, mas é preciso fortalecer alguns pontos: garantir água nas casas, garantir alimentos chegando dentro da aldeia. A longo prazo é trabalhar como grupo de risco, não apenas para monitorar”, reitera.

A virada do mês é caracterizada pela expectativa da chegada das cestas básicas, fornecidas pelo governo do estado. A Sesai local recomendou ao governo estadual evitar aglomerações na distribuição e, sobretudo, garantir a chegada dos alimentos. “Sem alimentos o organismo fica fraco, vulnerável ao vírus. E se não chegar, famílias precisarão ir para a cidade”, explica a enfermeira.

Rezadores oram sobre as cinzas da ogapysy na aldeia Jaguapiru, em Dourados. Foto: povo Guarani Kaiowá

Rezadores oram sobre as cinzas da ogapysy na aldeia Jaguapiru, em Dourados. Crédito da foto: povo Guarani Kaiowá

Bolsa família e aposentadorias

Outra rotina comum neste período é a retirada de benefícios assistenciais, como aposentadorias e o Bolsa Família. Com o dinheiro as famílias compram o que precisam, pois na Reserva não conseguem garantir a subsistência. “Geralmente são os filhos ou netos que vão retirar os benefícios. Reforçamos que isso deve se manter no período da pandemia. Mas é o que eu disse: monitorar só não adianta”, finaliza.

No último dia 27 de março, o Ministério Público Federal encaminhou ofícios aos proprietários de mercados e mercearias de Dourados requisitando que eles evitassem contato com os indígenas, especialmente o transporte de idosos até caixas eletrônicos para o pagamento de produtos alimentício. A prática é comum nesses períodos do mês, já que muitos comerciantes da região costumam reter, de forma ilegal, os cartões com que os indígenas acessam o Programa Bolsa Família e aposentadorias.

As aldeias Bororó e Jaguapiru têm tomado outras medidas para evitar que a pandemia chegue à Reserva, caso da proibição da entrada de vendedores ambulantes. Conforme declarou ao Dourados News Gaudêncio Benitez, “apesar do projeto de melhorias aprovado, a verba liberada e até parte dos materiais comprados, as obras na Bororó estão paralisadas. A empresa que ganhou a licitação não deu prosseguimento”.

Sem água, os Guarani Kaiowá e Terena não conseguem cumprir uma das mais básicas orientações das autoridades sanitárias: lavar as mãos com água e sabão. “Até limpar e fazer o religamento das bombas, ficamos pelo menos três dias sofrendo com a falta de água. Não podemos ficar assim nesse momento de contaminação pelo coronavírus”, explica Gaudêncio.

Indígenas que apresentam algum sintoma são encaminhamos para o atendimento de saúde. “Temos divulgado, fomentado as informações. As equipes têm monitorado. O que acontece é que temos problemas com a aplicação de políticas públicas, normalmente, e com a pandemia fica mais difícil. Basicamente o que a comunidade tem buscado é não ir para a cidade”, explica Indianara.

Foto: Laila Menezes/Cimi

Liderança Guarani Kaiowá durante reunião na sede da Funai, em Brasília, reivindicando demarcação de terras. Crédito da foto: Laila Menezes/Cimi

Problema crônico e precarização

Para o antropólogo e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) Spensy Pimentel, que estuda há mais de uma década o povo Guarani Kaiowá, a falta d’água é o problema principal para pensar na questão do combate a uma pandemia na Reserva de Dourados e nas demais reservas, que acumulam problemas similares pela forma como foram estabelecidas pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI).

Pimentel esteve em janeiro na Reserva de Dourados. “É um problema crônico. Há várias décadas que existem diversos locais da Reserva que a água não chega. Conversando com moradores da aldeia Jaguapiru, ouvi relatos de que chega a faltar água durante sete dias na semana. Há ainda as casas em que não há caixa d’água, mas mesmo nas que têm há problemas de abastecimento”, analisa.

À situação somam-se as precariedades generalizadas vividas pelos indígenas. O antropólogo cita um dado para que se possa mensurar o tamanho da encrenca: a média brasileira é de 20% de famílias com Bolsa Família. Na Reserva de Dourados, 75% das famílias eram dependentes do Bolsa Família há alguns anos.

“Isso decorre do fato de que as reservas não foram estabelecidas para comportar a população que comportam hoje. Foram formadas pelo SPI numa época que moravam apenas algumas centenas. Amambai e Caarapó também são reservas superlotadas. Todo tipo de suprimento para esses lugares é um desafio. A questão da água, da terra, do saneamento, dos serviços públicos. Se tornaram áreas muito precarizadas”, diz.

Indígenas Guarani Kaiowá fortalecem reivindicação contra violação de direitos humanos em visita da delegação da CIDH. Crédito da foto: Ascom – MPF/MS

Campo de refugiados e hospital de campanha

Para o missionário Flávio Vicente Machado, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Mato Grosso do Sul, a ausência de um plano do governo federal contra a disseminação do vírus na Reserva de Dourados pode gerar uma tragédia sem precedentes. “No entendimento do Cimi, o governo deveria montar um hospital de campanha, com leitos de UTI, para atender a Reserva”, afirma.

De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde, há 515 leitos de UTI em sete municípios do estado. Dourados é um deles e possui 100 leitos, somando aparelhos públicos (35) e privados (65). “Muito pouco. Se formos pensar, são oito reservas indígenas em situação semelhante reunindo cerca de 80% da segunda maior população indígena do país, os Guarani Kaiowá (43 mil indígenas, IBGE/2010)”, pontua o missionário.

Apenas a Reserva de Dourados concentra por volta de 20% da população indígena total do Mato Grosso do Sul, com 61 mil indígenas (IBGE, 2010). “Em Dourados os indígenas são naturalmente tratados mal no sistema de saúde municipal e não seria estranho eles serem preteridos em uma situação de se ter que escolher quem ocupa os poucos leitos de UTI. Mas a questão principal é a falta de saneamento”, diz.

Machado traça um paralelo entre a Reserva e um campo de refugiados. “São pessoas que foram deslocadas forçadamente e obrigadas a viver em um local sem nenhuma condição de subsistência. A mídia internacional tem cobrado as autoridades como conter a Covid-19 nestes campos pelo mundo. Precisamos olhar para as reservas como espaços muito similares e que demandam cuidados específicos”, defende.

A vida dos indígenas que vivem nas retomadas que ladeiam a Reserva de Dourados também está sob risco. “Estão no anel viário com um fluxo de passagem alto. São cerca de 2 a 3 mil indígenas. Por hábito cultural os Guarani transitam muito. Será uma tragédia se houver um surto ali. Mesmo com a população muito jovem, mas são aldeias que contam com muitos idosos, desassistidos, vivendo em barraquinhas”, declara.

São oito retomadas no entorno da Reserva de Dourados, de acordo com lideranças locais: Nhu Vera I, Nhu Vera II, Nhu Vera Guasu III, Araticoté, Abaeté I e II, Ivu Vera, Jaihepiru e Itapoty. Cerca de 270 famílias vivem nelas em barracos de lona e sob ataque permanente de seguranças privados.

Manifestação Guarani e Kaiowá em frente ao STF. Foto: Michelle Calazans/Cimi

Manifestação Guarani Kaiowá em frente ao STF pedindo a garantia territorial à comunidade de Guyraroká. Crédito da foto: Michelle Calazans/Cimi

Retomadas, acampamentos e aldeias

Nas retomadas, acampamentos e aldeias Guarani Kaiowá a orientação passada por caciques e lideranças é para que todos e todas se mantenham em suas casas. Algumas destas casas são barracos de lona instalados na beira de estradas e ao lado de fazendas, sem água corrente, banheiros e acesso a sabão.

As informações são trocadas entre os indígenas por whatsapp e sistematizadas pelos integrantes da Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani Kaiowá, principal organização política do povo. O medo em meio à pandemia do novo coronavírus existe para os Guarani Kaiowá, mas no tekoha – lugar onde se é – Guyraroka o problema é outro.

“No Guyraroka os nossos doentes ainda são por causa do veneno que os fazendeiros usam a poucos metros de distância da escola, das casas. Diarreia, vômito”, explica Erileide Guarani Kaiowá. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) esteve na comunidade no dia 20 de março.

“Mesmo assim a informação é pouca. Estamos aqui por nós mesmos. Ao redor, nas cidades, a gente sabe que esse vírus tá afetando”, diz. A alimentação é uma preocupação. “Só pegou mandioca. O que resto que plantou não deu. Meu avô começou uma horta, mas ainda dependemos das cestas básicas”, afirma.

As cestas básicas chegam, a depender da localidade, a cada 30 dias, mas para os Guarani Kaiowá a pandemia torna tudo ainda mais incerto. “Não sabemos se eles vão trazer. A Funai e a Sesai não colocam os pés aqui. As cestas básicas tão deixando na aldeia Bororo e temos de ir lá buscar”, diz Laurentino Guarani Kaiowá.

O indígena vive na retomada Araticoté, uma das nove abertas no entorno da Reserva Indígena de Dourados, onde fica a aldeia Bororo. Nos locais vivem cerca de 270 famílias morando em barracos. “Temos comida, mas pra essa semana. Depois a gente não sabe como fica. Isso preocupa porque temos muitas crianças e idosos”, afirma.

Crianças Guarani Kaiowá em protesto pedindo a demarcação das terras Guarani Kaiowá. Crédito da foto: Ascom – MPF/MS

Questões centrais

Membro do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Roberto Liebgott, missionário do Cimi Regional Sul, aponta as questões centrais, debatidas no âmbito do CNS, envolvendo as comunidades indígenas durante o período em que durar a epidemia. O primeiro ponto envolve a “falta de qualquer planejamento ou ação mais específica e direcionada para populações vulneráveis e, em condição, de diferenças étnicas e culturais”, diz.

Liebgott defende também que não há infraestrutura médica, de servidores e de equipamentos hospitalares, para tal demanda. Acrescenta-se a isso “outro aspecto, bastante relevante, e que as comunidades que não vivem em terras demarcadas ou habitam áreas devolutas ou sagradas, não possuem alimentos. As famílias não têm o que comer e o governo federal deixou de fornecer cestas básica faz alguns meses para comunidades localizadas em retomadas ou em áreas não regularizadas”, diz.

O missionário explica que em parte a subsistência das famílias era obtida pela venda de artesanato. “Com a pandemia não há para quem vender e sua fonte mínima de renda não existe. Como viver sem terra, sem assistência, sem água, sem saneamento básico, sem comida? Como viver sem terra, em beira de estrada, sem casa ou em barracos improvisados?”, questiona.

Para Liebgott a situação dificilmente muda no âmbito do governo federal com a forma “debochada e irresponsável” com a qual o presidente da República trata a pandemia. A Funai, por sua vez, suspende demarcações em pleno avanço do vírus no lugar de traçar um plano de ação – caso da Terra Indígena Tekoha Guasu Guavirá, em Guaíra, no oeste do Paraná.

“O próprio  Ministério Público Federal (MPF) vai precisar agir, inclusive na esfera jurídica, e requerer  providências do Estado para que os indígenas sejam adequadamente assistidos”, conclui.

Fonte: Por Assessoria de Comunicação - Cimi
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