02/03/2020

Povo Guajajara resiste às invasões territoriais e registra 48 assassinatos em menos de 20 anos

Indígena Guajajara carrega foto de Paulo Paulino Guajajara, assassinado por madeireiros na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Indígena Guajajara carrega foto de Paulo Paulino Guajajara, assassinado por madeireiros na Terra Indígena Arariboia, no Maranhão. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Por Renato Santana e Tiago Miotto, da Assessoria de Comunicação – Cimi | Reportagem publicada na edição 422 do Jornal Porantim

Edward Said escreveu sobre o destino dos palestinos como, de algum modo, o de não terminar onde começaram, mas em algum lugar inesperado e remoto. Se o Oriente Médio parece uma fronteira distante, a realidade a aproxima das terras tradicionais no Brasil em busca de infligir ao destino dos povos indígenas a mesma sina dos palestinos. Não terminar onde começaram, mas em algum lugar inesperado e remoto.

Como em um pesadelo saído de um conto de Julio Cortázar, onde a casa vai sendo invadida cômodo a cômodo, confinando seus moradores ao diminuto espaço da despensa escura e apagada, os palestinos se deparam com o governo de Israel se apossando de seus territórios, descumprindo acordos internacionais.

Os Guajajara, autodenominados Tenetehar, ano após ano, convivem com os incêndios de origem criminosa, além da invasão de madeireiros e grileiros ocupando as terras demarcadas. Se antes havia a morosidade do Estado em combater as ações criminosas, com o atual governo há o incentivo e a autorização do presidente da República, não por coincidência aliado do governo de Israel desde antes da posse.

Se dezenas de palestinos entregam as vidas em defesa de seu chão, os Guajajara seguem também marcados por tal sina. O Relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), registrou, nos anos 2000, pelo menos 48 casos de assassinatos de indígenas do povo Guajajara – 47 deles no Maranhão e um no Pará. O ano de 2019 já é o quarto a registrar mais assassinatos de Guajajara no período, com seis casos identificados até o dia 19 de dezembro, entre eles o de Erisvan Guajajara, de 15 anos, morto na cidade de Amarante. Nos últimos vinte anos, os maiores números de assassinatos Guajajara foram registrados nos anos de 2007 e 2016, com dez casos cada, e de 2012, com sete casos.

O que faziam os madeireiros no território indígena, fortemente armados, numa área regularizada e de usufruto exclusivo dos povos indígenas?

Segundo os dados, o território mais afetado pela violência contra os indígenas é a Terra Indígena (TI) Arariboia, que registrou 18 assassinatos de indígenas do povo Guajajara – mais de um terço do total. A terra é compartilhada pelos Guajajara com os Awá-Guajá livres, em situação de isolamento voluntário. Além destes casos, foram também registrados outros seis homicídios ocorridos nos municípios de Grajaú e Arame, aos quais esta terra indígena se sobrepõe – o que significa que o número de casos na TI Arariboia e seu entorno chega a 24, ou metade do total.

Mais detalhes sobre os assassinatos de indígenas do povo Guajajara podem ser acessados na plataforma Caci – Cartografia de Ataques Contra Indígenas, atualizada com os casos já registrados em 2019.

Assassinado em 2016 na Terra Indígena Arariboia, Assis Guajajara - na foto, à frente - foi um dos Guardiões da Floresta vitimados pelo conflito que assola seu povo. Foto: Luis Carlos Guajajara

Assassinado em 2016 na Terra Indígena Arariboia, Assis Guajajara – na foto, à frente – foi um dos Guardiões da Floresta vitimados pelo conflito que assola seu povo. Foto: Luis Carlos Guajajara

Guardiões da floresta e emboscada

Nos últimos anos, a TI Arariboia tem sofrido com a forte investida de madeireiros, e também de fazendeiros – no início de 2019, indígenas denunciaram a invasão e o loteamento de partes da terra indígena. Sem a fiscalização necessária, dificultada ainda mais pelos cortes orçamentários da Fundação Nacional do Índio (Funai), os indígenas vêm organizando grupos de Guardiões da Floresta para fiscalizar o território e repelir os invasores. No contexto de proteção territorial que os guardiões Paulino Guajajara e Laércio Souza Silva sofreram uma emboscada no início de novembro, quando partiram da aldeia Lagoa Comprida, norte da Terra Indígena, a 100 km do município de Amarante, para caçar. Já na mata, foram surpreendidos por cinco madeireiros armados.

Os homens exigiram que Paulino e Laércio entregassem arcos e flechas, instrumentos tradicionais usados para caçar. Como Guardiões da Floresta, portanto conhecidos destes habituais invasores da TI Arariboia, os Guajajara não tiveram muita chance de defesa. Sem esperar qualquer reação, os madeireiros, em maior número, começaram a atirar contra os indígenas. Um dos disparos fatais atingiu Paulino no rosto. Laércio foi alvejado no braço e nas costas, conseguindo escapar pela mata para pedir socorro.

O ano de 2019 já é o quarto a registrar mais assassinatos de Guajajara, com seis casos identi cados até o dia 19 de dezembro, entre eles o de Erisvan Guajajara, de 15 anos, morto na cidade de Amarante

Prima de Paulino, a liderança indígena Sônia Guajajara, da coordenação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), declarou à imprensa que “o racismo mata, e foi esse racismo que matou meu parente Paulo Paulino Guajajara, no Estado do Maranhão (…) Convidamos a todas e todos para lutarmos juntos contra esse genocídio programado”. A indígena estava percorrendo países europeus no dia do ataque. “Nossa agenda é de denúncia ao que vem ocorrendo contra os povos indígenas no Brasil. Liguei pros meus parentes e confirmei. Foi uma dor, mas aproveitamos para levar a notícia ao mundo”, disse.

De 2006 para cá, a TI Arariboia detém o segundo maior número de registros de invasão no estado do Maranhão, com 20 casos identificados no banco de violências do Cimi. As terras em que houve registro de assassinato de indígenas Guajajara neste período tiveram 44 casos de invasão possessória. Quase metade destes casos – um total de 20 – ocorreram nos últimos cinco anos. Foi nesse contexto que, em 2016, ocorreu uma sequência de quatro assassinatos de lideranças da TI Arariboia em apenas um mês.

Paulo Paulino Guajajara, Guardião da Floresta assassinado na Terra Indígena Arariboia. Foto: Sarah Shenker/Survival International

Paulo Paulino Guajajara, Guardião da Floresta assassinado na Terra Indígena Arariboia. Foto: Sarah Shenker/Survival International

Terras indígenas Cana Brava e Bacurizinho: juntas, 15 assassinatos

Além da Arariboia, destacam-se nos casos de assassinatos de indígenas do povo Guajajara as TIs Caru, com 13 assassinatos, Cana Brava/Guajajara, que registrou oito homicídios, e Bacurizinho, que teve sete casos. Homicídios de indígenas do povo Guajajara também foram identificadas nas TIs Morro Branco (1) e Rio Pindaré (1). O recente assassinato de dois caciques da TI Cana Brava ilustra um modo muito comum de se eliminar lideranças Guajajara neste período de levantamento realizado pelo relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil.

Quando voltavam de uma reunião na aldeia Coquinho , onde se encontraram com diretores da Eletronorte Energia, um grupo de indígenas do povo Guajajara foi atacado a tiros num sábado, 7 de dezembro, enquanto percorria em motocicletas um trecho da rodovia BR-226 próximo à aldeia El Betel, na TI Cana Brava, município de Jenipapo dos Vieiras. Firmino Prexede Guajajara, de 45 anos, da aldeia Silvino, TI Cana Brava, e Raimundo Benício Guajajara, de 38 anos, da aldeia Decente, TI Lagoa Comprida, morreram em razão dos disparos. Dois indígenas ficaram feridos. Na reunião, participaram 60 caciques e lideranças Guajajara.

Dos 130 casos de invasão registrados no Maranhão entre 2006 e 2019, 44 ocorreram em terras onde foram registrados assassinatos de indígenas Guajajara

O coordenador da Funai no Maranhão, Guaraci Mendes, declarou à Agência Amazônia Real que “apenas as principais lideranças Guajajara estavam reunidas para tratar dos recursos da compensação com a Eletronorte. Era toda a cúpula, caciques e lideranças, da Terra Indígena Cana Brava. Parece que foi ação planejada”.

Desde outubro de 2018, após o segundo turno das eleições presidenciais, as organizações indígenas e indigenistas denunciam o aumento da violência, invasões, emboscadas, atentados e ameaças. “Parece que se sentem autorizados, é como se dissessem: agora podemos barbarizar com os indígenas, chegamos ao poder”, declarou Dinamã Tuxá, da coordenação da Apib, durante o Acampamento Terra Livre (ATL) 2019.

O indígena Nelsi Olímpio Guajajara levou um tiro na perna e escapou com vida de emboscada armada em janeiro contra lideranças Guajajara. Crédito da foto: Mídia Índia

Pouca demarcação, muita violência

De 2006 para cá, incluindo dados preliminares de 2019, as terras indígenas localizadas no Maranhão registraram 130 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais e danos diversos ao patrimônio. Mais da metade destes casos – 72, no total – foram registrados nos últimos cinco anos. Embora a diferença possa assinalar uma possível subnotificação de casos no período, é mais um indicativo do avanço das pressões sobre os territórios indígenas no estado.

Mais de um terço destes casos – 44, no total – ocorreram em terras nas quais foram registrados assassinatos de indígenas do povo Guajajara. A TI Arariboia é a segunda com o maior número de registros de invasão no Maranhão de 2006 para cá, com 20 casos identificados no banco de violências do Cimi. A intensificação dos ataques e invasões, denunciada por diversos povos ao longo do primeiro ano do governo Bolsonaro, é agravada pela baixa execução do orçamento destinado à fiscalização das terras indígenas no Brasil.

Em 19 de dezembro, o governo federal havia liquidado apenas 59,7% dos 37 milhões de reais destinados neste ano à demarcação e fiscalização de terras indígenas

Segundo dados do Siop, em 19 de dezembro o governo Bolsonaro havia liquidado apenas 59,7% dos 37 milhões de reais destinados neste ano à regularização, demarcação e fiscalização de terras indígenas e proteção dos povos indígenas isolados. A situação é ainda mais grave se levarmos em conta que, nos últimos cinco anos, o mesmo período que concentra a maior parte dos casos de invasão e violência, o orçamento destinado a esse conjunto de ações caiu quase pela metade.

“Estamos diante de um ataque programado, organizado, com a intenção de expulsar os povos indígenas de seus territórios. O aval tem sido periodicamente dado pelo pre-sidente da República. O extermínio dos povos indígenas se tornou uma política de governo”, aponta Gilderlan Rodrigues, coordenador do Cimi Regional Maranhão. “Não é apenas um cenário de guerra, estamos num campo de batalha onde o ódio disseminado pelas forças políticas conservadoras, autoritárias, racistas são estimuladas pelo fascismo que já extrapolou todos os seus limites”, completa Sônia Guajajara.

 

Diante da escalada da violência, os Guajajara passaram a realizar inúmeras mobilizações

Nota do Cimi: inquérito da PF sobre assassinato de Paulino Guajajara reforça ciclo de impunidade

Se calarem a voz dos profetas, as pedras falarão!” (Lc, 19-40)

Conselho Indigenista Missionário – Cimi vem a público repudiar a conclusão da Polícia Federal no inquérito cuja finalidade foi investigar a exe-cução do indígena Paulo Paulino Guajajara e o ataque ao indígena Laércio Sousa Silva, baleado no braço, conforme divulgada pela imprensa. O fato ocorreu no dia 1º de novembro de 2019, no interior da Terra Indígena (TI) Araribóia, nas proximidades da aldeia Lagoa Comprida, a 86 km do município de Amarante do Maranhão.

Conforme o relato feito pelo sobrevivente Laércio, os indígenas foram vítimas de uma emboscada enquanto caçavam dentro do seu território. Segundo ele, quando pararam para tomar água, ouviram barulho no mato e logo em seguida os tiros. Paulo Paulino tombou no local após receber um tiro no ouvido, não havendo tempo para se defenderem. Laércio se protegeu atrás de uma árvore, sendo alvejado nas costas e no braço direito, conseguindo escapar com o quadriciclo que estavam usando na caçada a porcos do mato. Laércio assegurou que não avistou nenhum corpo de não indígena caído no local.

É de conhecimento geral que os Guajajara da TI Arariboia, bem como outros povos indígenas, atuam como Guardiões da Floresta nas TIs Alto Turiaçu, Caru, Governador, Krikati e Pindaré, realizam ações de proteção do seu território e são reconhecidos pela Funai e pelo Ibama para realizar essas ações, uma vez que o Estado, que deveria proteger e fiscalizar seus territórios, não o faz. É sabido também que, por conta da atuação dos Guardiões, os indígenas têm recebido ameaças, e em 2016, quatro indígenas Guajajara foram assassinados dentro da Terra Indígena Arariboia. Dois deles eram Guardiões e nenhum desses casos foi investigado pela Polícia Federal.

Foi também neste contexto que, em 2007, Tomé Guajajara, liderança de 60 anos, foi assassinado por madeireiros na aldeia Lagoa Comprida, no interior da TI Arariboia e, em 2008, Maria dos Anjos Guajajara, de apenas sete anos de idade, foi assassinada enquanto assistia televisão em sua casa, na aldeia Anajá, localizada no mesmo território. Em ambos os casos, as aldeias foram invadidas por madeireiros em represália às ações de fiscalização e denúncia dos indígenas.

Nos últimos vinte anos, o Cimi registrou o assassinato de pelo menos 48 indígenas do povo Guajajara no Maranhão. Destes, 18 eram da TI Arariboia.

Embora a situação nas terras do povo Guajajara tenha se agravado recentemente, o ambiente de violência e insegurança também afeta os demais povos indígenas do estado do Maranhão, sejam aqueles que vivem em terras demarcadas, como a TI Alto Turiaçu, que viu Euzébio Ka’apor ser assassinado em 2015 após ações autônomas de fiscalização e denúncia contra madeireiros, sejam os que ainda lutam pela regularização de seus territórios tradicionais, como o povo Akroá Gamella, vítima de um atentado que deixou mais de vinte feridos em abril de 2017.

Questionamos se esse contexto foi levado em consideração pela Polícia Federal ao concluir que “foi possível afastar as hipóteses relacionadas a conflitos étnicos ou mesmo por emboscada de madeireiros a indígenas, tudo convergindo para a conclusão de que o lamentável episódio se originou da troca de tiros motivada pela posse de uma das motocicletas utilizadas pelos não indígenas”, segundo passagem de uma nota da PF divulgada pelo site do jornal O Globo.

O que faziam os madeireiros no território indígena, fortemente armados, numa área regularizada e de usufruto exclusivo dos povos indígenas?

Historicamente há conflito étnico por conta da retirada ilegal de recursos naturais de dentro do território, e as vítimas são sempre os indígenas. Se não foi emboscada, tampouco foi confronto. O que faziam os madeireiros no território indígena, fortemente armados, numa área regularizada e de usufruto exclusivo dos povos indígenas?

A Polícia Federal, ao reduzir o assassinato de Paulino Guajajara a um lamentável episódio de troca de tiros, desconsidera uma história de mais de 40 anos de conflitos com madeireiros nesse território, ao longo dos quais os indígenas vêm sendo assassinados e tendo seus territórios destruídos sem que nenhum assassino seja punido.

Ao desprezar o contexto de violência e de violações aos direitos e territórios indígenas, mesmo quando se trata de terras indígenas já demarcadas, a Polícia Federal demonstra sua opção política pela criminalização dos povos e de seus processos de luta por direito e por território, naturaliza o racismo institucionalizado pelo Estado e acaba por reforçar, com esta posição, as políticas de extermínio dos povos originários.

Exigimos uma investigação que considere as iden-tidades, os direitos, os indícios e as vozes dos próprios povos, e que acabe com a impunidade dos que matam e mandam matar os povos indígenas e suas lideranças. Repudiamos ainda a atuação de parte da mídia que, ao reproduzir os argumentos falaciosos, reforça a criminalização e a posição desse governo e desse Estado etnocida.

Conselho Indigenista Missionário – Cimi, 8 de janeiro de 2020

 

 

 

 

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