MPF quer direito de resposta para indígenas em perfis do governo brasileiro por declarações discriminatórias
Ação demonstra danos aos povos indígenas, em especial ao povo Waimiri-Atroari, pelos constantes discursos de autoridades contra os modos de vida indígenas, protegidos pela Constituição
O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública contra a União e a Fundação Nacional do Índio (Funai) em razão dos constantes discursos desumanizantes e discriminatórios proferidos por autoridades do atual governo federal contra os modos de vida dos povos indígenas. Falas frequentes do presidente da República Jair Bolsonaro (sem partido) e de ministros se referem aos povos como “pré-históricos”, dizem que vivem em “zoológicos”, que atrapalham o progresso da nação e são manipulados por estrangeiros. Para os procuradores da República, isso já traz danos concretos aos indígenas, como no caso dos Waimiri-Atroari, que sofreram agressão em seu território por parte de um deputado estadual de Roraima, Jeferson Alves (PTB), no final de fevereiro.
O parlamentar, munido de uma motosserra e de um alicate corta-vergalhão e acompanhado de assessores, se dirigiu ao limite da Terra Indígena Waimiri-Atroari, entre os estados do Amazonas e Roraima, no dia 28 de fevereiro, e cortou as correntes que controlam o tráfego de carros na BR-174, que atravessa o território. Indígenas que faziam a vigilância no local foram trancados em uma guarita, enquanto o deputado gravava toda a ação. Ao final do vídeo, dedicou a agressão ao presidente da República.
“O episódio mostra como o discurso parcial e contrário aos povos indígenas, associado a políticas enviesadas e à falta de preocupação com os ritos e procedimentos legais, favorecem um discurso de ódio e práticas violentas contra os grupos étnicos ou contra os seus territórios”, diz o MPF na ação iniciada essa semana, na Justiça Federal em Manaus. A ação pede que o governo brasileiro seja condenado fazer um pedido de desculpas público dentro da terra indígena, a elaborar um plano de combate ao discurso de ódio contra os povos indígenas brasileiros, a financiar uma cartilha contando a história do povo Waimiri-Atroari e a dar direito de resposta, por meio da publicação de uma carta desse povo, tanto no site da presidência da República quanto no perfil do presidente da República no Twitter e na transmissão semanal que o presidente faz no Facebook.
O direito de resposta no Twitter deve se dar por meio de uma sequência de tuítes em que conste a íntegra da carta feita pelos indígenas, que deve ficar fixada no topo do perfil durante o prazo de um ano. O direito de resposta na chamada ‘live’ do Facebook deve ser através da participação dos Waimiri-Atroari em três transmissões consecutivas do presidente da República, ocupando pelo menos ¼ do tempo total de cada transmissão. A ação pede ainda que, nos termos da convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) contra todas as formas de discriminação racial, seja feito documento e manifestação pública dos ministérios e da presidência da República pedindo que nenhuma autoridade incite ou encoraje a discriminação racial.
A ação tramita na 3ª Vara Federal do Amazonas, sob o número 1004416-31.2020.4.01.3200.
Defesa de projeto integracionista – “Desde 1º de janeiro de 2019, o Estado brasileiro vem expressamente afirmando que pretende omitir-se no seu dever de proteção aos povos indígenas e que vai adotar políticas públicas não mais autorizadas pelo texto constitucional”, diz a ação do MPF, que sustenta que o governo brasileiro vem “destinando aos povos indígenas e ao povo Waimiri-Atroari um tratamento público que não observa a Constituição, baseado na defesa aberta, a começar pelo Presidente da República, de um projeto integracionista que contraria a lei fundamental por hierarquizar os diferentes grupos que compõem a sociedade brasileira.”
A ação enumera discursos do presidente da República, Jair Bolsonaro, do ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, da ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves e da presidência da Funai que “menosprezam” os modos de vida indígenas, com alta carga preconceituosa e discriminatória e grande potencial de estimular violências que, incontidas, podem culminar em processos genocidas, como já ocorreu antes na história do Brasil.
O MPF lembra que o próprio povo Waimiri-Atroari foi vítima de um dos mais graves processos de genocídio indígena já registrados no Brasil, durante a ditadura militar e sob a justificativa da “integração” à sociedade e de permitir o “desenvolvimento nacional”. Dois terços do povo foi dizimado pelo contato forçado, por ataques militares, por destruição ambiental e epidemias provocadas quando os governos ditatoriais invadiram o território indígena para a construção da BR-174, da usina hidrelétrica de Balbina e para permitir que uma empresa fizesse exploração minerária na região. O caso é relatado nos documentos da Comissão Nacional da Verdade e objeto de um processo judicial movido pelo MPF.
Discursos de ódio – Frases da autoridade máxima da nação durante a transmissão semanal no Facebook são consideradas pelo MPF como discurso de ódio, como quando disse que “o índio mudou, está cada vez mais um ser humano igual a nós”. Em suas manifestações diárias na entrada do palácio da Alvorada, em Brasília, também há registros de falas violentas, como quando disse aos repórteres, mencionado especificamente os Waimiri-Atroari e a construção de um linhão de transmissão de energia entre Manaus e Boa Vista, que “a gente não consegue fazer o Linhão de Tucuruí, não consegue fazer porque (há) achaque de ONG, índio que quer dinheiro”. De acordo com a ação, a afirmação contraria a realidade sobre o caso do linhão, em que há um diálogo estabelecido entre a Funai e os indígenas, mas não houve qualquer retratação do presidente da República para corrigir a inverdade.
No perfil presidencial no Twitter também são constantes os discursos que podem estimular violências contra os povos indígenas, sobretudo os que repisam a visão, ultrapassada no ordenamento jurídico nacional e internacional, de que indígenas precisam ser “assimilados” ou “integrados” à sociedade. “Reintegrar os índios à sociedade levando até a estes condições para que possam se sentir brasileiros e não apenas serem tratados como massa de manobra e divisão do povo para contemplar planos de poder”, disse o presidente em sua conta verificada, em fevereiro de 2019.
Para o MPF, os discursos do atual governo brasileiro promovem uma omissão estatal no dever constitucional de proteger os povos indígenas. As falas se traduzem em tentativas frequentes de “minar todo o arcabouço legislativo e administrativo de respeito à autonomia dos povos indígenas”. “No caso do povo Waimiri-Atroari, o discurso discriminatório tem como pano de fundo principal a implantação de uma linha de transmissão que pretende cruzar o território indígena, mas não se limita a esse tema, abrangendo também outros temas de interesse da sociedade regional, como a disputa pela circulação na rodovia BR-174. Com isso, cria-se um cenário favorável a práticas de violência contra esse povo, as quais já não são mais meramente potenciais”, dizem os procuradores da República que assinam a petição inicial.
O discurso é violento por impor uma única visão sobre os modos de vida dos povos indígenas, ao sentenciar que “eles querem ser como nós” e que precisam adquirir um modo específico de vida. “Por conseguinte, povos que adotem outros modos de vida são tidos como “pré-históricos”, “manipulados por ONGs” e não merecedores de qualquer atuação de reconhecimento por parte do Estado”. Tais discursos, para o MPF, tentam colocar a sociedade contra os indígenas, dando a entender que eles estão impondo exigências indevidas, quando na verdade reivindicam deveres estatais e direitos previstos na legislação, através de procedimentos administrativos e jurídicos que são ignorados nas falas do governo brasileiro.