11/02/2020

Povo Xukuru recebe indenização do governo após sentença da CIDH que condenou o Estado por violações de direitos humanos

A indenização é apenas uma parte do cumprimento da sentença da CIDH. A conclusão da demarcação é outro ponto determinado ao Estado

Povo Xukuru de Ororubá, durante manifestação no Acampamento Terra Livre (ATL) de 2017, em Brasília. Foto: Guilherme Cavalli/Cimi

Por Assessoria de Comunicação – Cimi

Depois da mobilização do povo Xukuru, o governo federal depositou na conta da Associação Xukuru a indenização de US$ 1 milhão como parte do cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), publicada em 5 de fevereiro de 2018. A CIDH condenou o Estado brasileiro no caso envolvendo violações sofridas pelo povo. A sentença declarou o Estado brasileiro internacionalmente responsável pelas violações do direito à garantia judicial, pela violação dos direitos de proteção judicial e à propriedade coletiva previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos.

No final da semana passada, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Regina Alves assinou o Acordo de Cumprimento de Sentença redigido em dezembro de 2019 e o pagamento foi realizado. A Corte fixou que a indenização constituirá um Fundo de Desenvolvimento Comunitário para os Xukuru do Ororubá a título de indenização compensatória coletiva por danos imateriais sofridos pelo povo nos termos da sentença proferida em fevereiro de 2018.

Conforme o Acordo de Cumprimento de Sentença, a Associação Xukuru deverá prestar contas anualmente sobre o empenho deste recurso de acordo com a execução do Plano de Atividades para a Utilização dos Recursos do Fundo de Desenvolvimento Comunitário, definido pelo próprio povo. “O recurso será para ajudar nosso povo, nossas famílias necessitadas, em ações coletivas, que sejam todos beneficiados”, explica o cacique Marcos Xukuru.

O cacique explica que para o povo Xukuru é uma sensação de alívio, de encerramento do caso. “Se finaliza e concretiza a etapa, mesmo com algumas pendências ainda. É a sensação de dever cumprido. Também é a sensação de que todo processo que vivenciamos mostra que estávamos certos e convictos, de que estávamos fazendo os procedimentos corretos, dentro da lei. Sofremos injustiças que ocorreram durante a demarcação. Assim estabelecendo a sensação de paz, tranquilidade e missão cumprida”, explica. Se para o povo Xukuru significa o fim de um ciclo, para os povos indígenas do país, conforme o cacique Marcos, se trata de uma conquista importante.

“Essa vitória representa muito para os povos do Nordeste, do Brasil e da América Latina. É o déficit que o Estado brasileiro tem com os povos indígenas nesses quase 520 anos sendo questionado, de alguma maneira reparado. É um marco legal, na conjuntura atual, onde os povos indígenas vêm sofrendo bastante ataque. Representa exatamente que há um despreparo nos procedimentos administrativos na demarcação das terras indígenas associado à violência. Portanto, a vitória na CIDH pode dar balizas no contexto político e jurídico do país”, entende o cacique.

“Essa vitória representa muito para os povos do Nordeste, do Brasil e da América Latina. É o déficit que o Estado brasileiro tem com os povos indígenas nesses quase 520 anos sendo questionado”, diz cacique Marcos Xukuru

Para a coordenadora do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) Regional Nordeste, Alcilene Bezerra, é a comprovação de que o Estado tem deixado de proteger os territórios e viabilizar a permanência dos povos neles. “A indenização não repara totalmente o povo pelas mortes de suas lideranças, os anos de criminalização e os constrangimentos e privações, mas reconhece que houve violação e agressão física, moral e cultural ao povo”, defende.

O pagamento da indenização, para a coordenadora do Cimi, tem um destaque especial na atual conjuntura por conta do governo expressamente anti-indígena. “Esse governo terá de pagar a indenização e isso traz um sentimento de dever cumprido e de reconhecimento de que lutar não é em vão. É um recado muito nítido aos povos. O Estado é negligente e omisso, então esperamos que essa sentença sirva como exemplo no país para povos que estão tendo seus direitos violados, sofrendo violências terríveis, para que lutem, não desistam ou se entreguem”, diz.

Indígenas do povo Xukuru participaram do ato no CCBB, sede da equipe de transição do governo Jair Bolsonaro. Foto: Tiago Miotto/Cimi

Indígenas do povo Xukuru participaram do ato no CCBB, sede da equipe de transição do governo Jair Bolsonaro. Zenilda Xukuru, esposa de Xikão, à frente do toré. Crédito da foto: Tiago Miotto/Cimi

Outros pontos do sentença

A indenização é apenas uma parte do cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). “O Estado deve concluir o processo de desintrusão do território indígena Xukuru, com extrema diligência, efetuar os pagamentos das indenizações por benfeitorias de boa-fé pendentes e remover qualquer tipo de obstáculo ou interferência sobre o território em questão, de modo a garantir o domínio pleno e efetivo do povo Xukuru sobre seu território, em prazo não superior a 18 meses, nos termos dos parágrafos 194 a 196 da presente Sentença (SIC)”.

Sobre este ponto, ainda “há pendências com a regularização fundiária, o pagamento de  algumas indenizações. Algumas pessoas precisam ainda receber. É o que falta agora. Inclusive estão nos procurando para saber quando vão receber. Estamos no aguardo”, explica o cacique.

O Estado deve garantir, de maneira imediata e efetiva, o direito de propriedade coletiva do Povo Indígena Xucuru sobre seu território, de modo que não sofram nenhuma invasão, interferência ou dano

A Corte, no entanto, dispõe que o Estado deve garantir “de maneira imediata e efetiva o direito de propriedade coletiva do Povo Indígena Xucuru sobre a totalidade de seu território, de modo que não sofram nenhuma invasão, interferência ou dano por parte de terceiros ou agentes do Estado que possam depreciar a existência, o valor, o uso e o gozo de seu território”. Seis famílias permanecem ocupando 160 hectares da TI Xukuru. Estas presenças gerou uma disputa judicial, sendo que há uma sentença de reintegração de posse de 300 hectares, cuja execução encontra óbce na Sentença da Corte Interamericana.

Nesse sentido, a Corte determinou que “o Estado deve garantir, de maneira imediata e efetiva, o direito de propriedade coletiva do Povo Indígena Xucuru sobre seu território, de modo que não sofram nenhuma invasão, interferência ou dano, por parte de terceiros ou agentes do Estado que possam depreciar a existência, o valor, o uso ou o gozo de seu território, nos termos do parágrafo 193 da presente Sentença (SIC)”, diz.

Descida da Serra do Ororubá, o já consagrado 20 de maio do povo Xukuru. A data lembra o assassinato do cacique Xikão Xukuru. Crédito da foto: Renato Santana/Cimi

Histórico do caso

A Serra do Ororubá, em Pesqueira (PE), município encravado no Vale do Ipojuca, é o cenário de um contexto com mais de três séculos de espoliação e morte do povo Xukuru. Mas, nos anos 1980, essa trajetória começou a mudar. Com a nomeação de Xikão como cacique, os Xukuru se articularam e, após quase 20 anos de luta, em 2001, conseguiram a homologação dos 27.555 hectares em que vivem. Essas mesmas terras que já viram tanta morte abrigam, hoje, mais de 11 mil indígenas que lutam diariamente contra o preconceito e a violência para manter sua cultura viva.

Com o fim do regime militar e a transição democrática, a Constituinte de 1988 tornou-se o centro da luta do movimento indígena. Em Brasília (DF), Xikão e outras importantes lideranças indígenas e entidades indigenistas percorreram gabinetes, arregimentaram apoiadores, discutiram propostas, organizaram manifestações e, no final, viram entrar na nova Constituição o direito dos povos originários a suas terras tradicionais.

A vitória trouxe ânimo e, em 1990, os Xukuru iniciaram a retomada de partes de seu território tradicional, enquanto aguardavam a demarcação de sua terra pelo Estado

No decorrer dos anos 90, frente ao atraso da demarcação, uma sucessão de retomadas levou os fazendeiros a reagir. Em 1992, Pajé Zequinha teve o filho assassinado e, em 1995, o advogado da associação, Geraldo Rolim, também procurador da Funai, foi morto a tiros pelas costas. Xikão sempre acreditou que a base da mudança de seu grupo estava na educação e na organização.

Promoveu ainda a criação de comissões de saúde e educação nas aldeias e da Associação do Povo Xukuru – sistema que funciona até hoje e estimula a participação dos indígenas nas decisões do grupo, geralmente discutidas em assembleias e seminários. Na manhã de 20 de maio de 1998, Xikão saía de casa, no bairro Xukuru, em Pesqueira, quando percebeu a chegada de um pistoleiro. Não teve chance de defesa. O assassinato teve repercussão internacional e mobilizou seu povo. Três anos depois, o líder da aldeia Pé de Serra, Chico Quelé, foi assassinado.

No dia 7 de fevereiro de 2003, com a terra Xukuru homologada há dois anos, a história mais uma vez se repetiria. Uma emboscada contra o cacique Marcos, filho e sucessor de Xikão, resultou na morte de dois indígenas responsáveis por sua segurança. Ao saber do atentado, os Xukuru decidiram reagir. Na véspera do carnaval daquele ano, um rastro de fumaça no céu indicava que a Vila de Cimbres havia sido retomada pelos Xukuru, 300 anos depois de construída em território sagrado indígena pelos colonizadores portugueses.

A reação dos Xukuru resultou na condenação de 35 indígenas, entre eles o cacique Marcos, a quatro anos de prisão. As investigações e denúncias afirmam que Marcos armou o atentado e a morte de dois indígenas para aguçar a revolta do seu povo e a saída das famílias não índias da vila. O mesmo ocorreu nas investigações dos assassinatos do cacique Xikão e de Chico Quelé, pelos quais foram acusados indígenas Xukuru.

À direita, pajé Zequinha realiza ritual na Pedra D’água, lugar sagrado para o povo Xukuru e local onde Xikão foi plantado. Cacique Marcos Xukuru está no centro da foto. Crédito da foto: Renato Santana/Cimi

A tramitação do processo na CIDH 

O processo envolvendo o povo Xukuru teve início na Comissão Interamericana de Direitos Humanos em outubro de 2002, com petição apresentada pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos, pelo Gabinete de Assessoria Jurídica das Organizações Populares (GAJOP) e pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi). Em 2009, a Comissão aprovou o Relatório de Admissibilidade Nº 98/09 e no ano de 2015 aprovou o Relatório de Mérito Nº 44/15, em conformidade com o art. 50 da Convenção Americana. Em seguida, no ano de 2016, a Comissão submeteu o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, que realizou audiência com as partes no ano de 2017, momento em que a comunidade indígena contou com a contribuição da Justiça Global.

A sentença que condenou internacionalmente o Estado brasileiro por violações aos direitos humanos do povo Xukuru foi publicada no dia 5 de fevereiro de 2018

Para Adelar Cupsinski, um dos advogados que representou as vítimas no caso Povo Xukuru versus Estado brasileiro, a sentença da CIDH corrige as injustiças sofridas pelos indígenas. Além disso, a sentença da Corte Interamericana deve repercutir nas instâncias de poder internamente, no Brasil,especialmente, no Poder Judiciário. “Espera-se que a sentença possa servir como fundamento para o aperfeiçoamento do sistema de Justiça brasileiro em relação aos direitos indígenas, que também são sujeitos de direitos”, afirma Cupsinski.

Para o advogado indigenista, o fato de o Estado brasileiro acordar em fazer o pagamento de US$ 1 milhão de dólares para a constituição de um Fundo de Desenvolvimento Comunitário diretamente para para a associação Xukuru, a título de indenização compensatória coletiva por danos imateriais sofridos pelo povo, consiste em um procedimento avançado e inovador, pondo fim ao processo tutelar.

“Desta maneira, o Estado brasileiro reconhece os povos indígenas como sujeitos coletivos de direitos e os povos indígenas demonstram sua capacidade de gestionar seus recursos, conforme seus usos, costumes e sistemas produtivos próprios, sem a intermediação ou tutela de não indígenas. Cumpre-se assim a Constituição Federal de 1988 e as normas internacionais de que o Brasil assinou”, encerra Cupsinski.

 

Fonte: Por Assessoria de Comunicação - Cimi
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